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Universidade Federal de Goiás
tráfico de pessoas

Proposta irrecusável? Desconfie!

Em 31/10/17 11:50.

Mesa-redonda desta edição discute o tráfico de pessoas no Brasil

tráfico de pessoas

Ascom e Rádio Universitária

Fotos: Carlos Siqueira/ Ilustração: Ministério da Justiça

Todos os anos milhares de pessoas são traficadas no mundo para trabalho forçado ou exploração sexual. Há no Brasil, entre ações na justiça, inquéritos policiais e investigações do Ministério Público Federal, cerca de 225 casos de tráfico de pessoas na mira das autoridades. Esse ainda é um número muito pequeno se considerarmos as demais formas de exploração no tráfico interno. No ano passado, por exemplo, o Disque 180 recebeu 317 denúncias sobre tráfico interno e externo.

Para falar sobre esse assunto, a mesa-redonda convidou o gerente do Instituto de Identificação da Polícia Civil de Goiás, Antônio Maciel Aguiar Filho, o secretário-executivo no Brasil do Projeto Resgate Brasil, Marco Aurélio de Souza e o membro do Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária Federal, Fabrício Rosa.

O que é o tráfico de pessoas?

Marco Aurélio – A Organização das Nações Unidas (ONU), no Protocolo de Palermo, define que o tráfico de pessoas ocorre por meio do recrutamento, transporte, transferência, abrigo e guarda de pessoas quando por meio de ameaças, uso da força, coerção, fraude, enganação, abuso de poder ou vulnerabilidade. A pessoa recebe pagamento ou benefícios que facilitem  o consentimento para que uma tenha o controle sobre a outra com a finalidade de explorá-la. Isso pode ser desde a exploração da prostituição por terceiros ou outras formas de exploração, como sexual, trabalho, serviços forçados, escravidão, servidão por dívidas, casamento servil, adoção ilegal ou remoção de órgãos. O fato de a pessoa ter seus documentos retidos  ou sua liberdade cerceada para a restituição de supostas dívidas contraídas por ela já constitui uma evidente forma de cárcere mesmo que no local não haja cercas ou grades. Porém, em alguns casos, as vítimas chegam a ficar trancafiadas em espaços com grades ou algemas. Afinal, aquela vítima é uma fonte de recursos, um “bem adquirido” e o aliciador precisa se certificar de que não a perderá.

Fabrício Rosa – É muito importante que as pessoas saibam que o tráfico de pessoas está mais próximo do que imaginamos. Ele aconteceu e acontece no país com muita frequência, desde aquela menina que é retirada do interior e trazida para ser explorada pelas famílias da capital, adolescentes que são levados para pequenos clubes de futebol e ali são explorados, até meninas que são convencidas de que  vão ser modelos em outro país, tudo isso é tráfico de pessoas.

Antônio Maciel – O papel, sobretudo da Polícia Civil, é tentar gerar a identificação dessas pessoas. O  que facilita esse tipo de  mercado, que  é muito lucrativo, é que o país não possui um sistema integrado de informações biométricas. Em Goiás, agora temos um projeto chamado Goiás Biométrico, em que pretendemos colocar todo mundo em um banco de dados e isso vai possibilitar maior controle. O nosso objetivo é tecnicamente, na atividade pericial, garantir a identificação dessas pessoas.

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É possível estimar quantas pessoas são vítimas do tráfico humano? Existe um perfil de pessoas que são traficadas?

Marco Aurélio – O tráfico de seres humanos é quase sempre subterrâneo, feito no escuro,  o  que o torna quase invisível. Dessa forma, quantificar com números exatos é impossível, mas a OIT, a ONU e todas as grandes organizações de luta contra essa escravidão moderna afirmam que existem cerca de 21 milhões de pessoas traficadas em todo o mundo e que essa exploração geraria valores de lucros perto de 40 bilhões de dólares por ano, colocando essa modalidade criminosa como a terceira mais rentável do mundo, ficando atrás apenas do comércio de armas e drogas. Vale lembrar que todos os países são origem, trânsito ou destino do tráfico humano. Todas as estatísticas afirmam e nossa experiência comprova que as mulheres são sempre o maior grupo para a exploração sexual, seguidas das crianças; os homens  se  destacam  no  segmento do trabalho forçado. Recentemente, o grupo LGBT tem aparecido nos relatórios como um segmento que vem crescendo como vítimas para exploração sexual. O estado de Goiás, por várias vezes, foi incluído como sendo rota de origem e passagem de vítimas  desse crime. Porém, com o passar do tempo, a intensificação das campanhas e uma ação mais presente dos órgãos de repressão, essas ocorrências têm diminuído.

Antônio Maciel – No Brasil, cerca de 40 mil pessoas desaparecem anualmente. Desses, há uma grande incidência de adolescentes. Os motivos que levam as pessoas a desaparecerem ou serem traficadas são a fuga de casa, por maus tratos, violência doméstica, ou drogas.

Fabrício Rosa – A principal vítima com certeza é a mulher. E Goiás figura em um ranking lamentável como sendo um dos estados com mais tráfico de mulheres no país. O que percebemos é que existe uma rede doméstica, informal, de amigas, vizinhas e irmãs de igreja, inclusive, especialmente no norte de Goiás, que acaba influenciando essas mulheres que estão em busca de um sonho legítimo, porque é legítimo sonhar e correr atrás do que a gente acredita ser melhor para nós. Mas os homens também são vítimas, mais para a finalidade trabalhista, especialmente trabalho escravo. Participamos de muitas operações de combate ao trabalho escravo e Goiás é mais um estado que recebe trabalhadores escravos dos bolsões de pobreza do Nordeste e um pouco do Norte. Pará e Mato Grosso figuram entre os estados onde há mais casos de trabalho escravo em fazendas, carvoarias e mineradoras. As pessoas se esquecem que há um tráfico intenso de mulheres e homens também dentro do país. Já fizemos operações em motéis de Aparecida de Goiânia e quase a totalidade daquelas mulheres e travestis foram trazidas de outros municípios e de outros estados brasileiros.

Como a polícia e outras organizações se empenham no combate ao tráfico humano?

Antônio Maciel – Uma das medidas mais adotadas na investigação é exatamente tentar identificar corpos que são encontrados porque se não identificamos, não há como iniciar uma investigação. Infelizmente a legislação brasileira ainda permite o reconhecimento facial, o que tem gerado muitos transtornos porque qualquer pessoa pode se passar por parente e liberar o corpo. O que temos tentado fazer por meio da perícia é garantir a identificação e não o reconhecimento, que é muito falho. Temos cerca de 700 pessoas enterradas como indigentes. É um número muito expressivo que pode estar associado ao tráfico de pessoas, porque muitas vezes essas pessoas são mortas depois de exploradas por muito tempo.

Marco Aurélio – O tráfico de pessoas ainda é um “crime invisível”. As autoridades de repressão trabalham de acordo com as denúncias que chegam a elas. Uma forma de ampliar esse combate  é a união de forças entre todos os envolvidos. O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas está constituído sobre um tripé que envolve a prevenção, repressão e atenção à vítima.

Quem são e como agem os  aliciadores?

Marco Aurélio – O tráfico de seres humanos é um crime que se alimenta da vulnerabilidade das vítimas. Todos possuem sonhos, desejos, ilusões que, de repente, por meio de uma proposta tentadora tem a possibilidade de serem realizados. Esse é o grande fator motivador. As redes que se estabelecem para o tráfico quase sempre são “caseiras”, são pessoas próximas que oferecem a possibilidade da realização do sonho. Quando você não tem a máquina do Estado por perto, oferecendo lazer, esporte, cultura e educação para uma melhor projeção de vida dos vulneráveis, o aliciador entra nessa brecha. Em outros casos, como conflitos armados e crises humanitárias que levam pessoas ao desespero para sair do lugar em que vivem, elas acabam assumindo um risco maior de serem vítimas, tanto para a exploração sexual e o trabalho forçado, quando para a remoção de órgãos, a servidão e outras formas de exploração.

Fabrício Rosa – É muito importante dizer que o aliciador não tem cara de traficante internacional. É uma pessoa que tem uma cara normal, que inicialmente goza da confiança daquela pessoa que vai ser aliciada. Pode ser uma mulher que se passa por amiga, ou um homem, que, no caso do trabalho escravo, chamamos de gato. Imagine um rapaz do interior do Maranhão, que  ganha um Bolsa Família de  130  reais.  Chega um gato e oferece para ele 800 reais para trabalhar em uma lavoura em Goiás, o que significa uma modificação enorme na vida dele, e ele acredita. Mas é importante dizer que o aliciador não é só essa pessoa. Todos podemos ser aliciadores à medi- da que somos negligentes com essa situação. O tráfico de pessoas é permanente e a gente tem de alertar e sensibilizar o nosso olhar. Há muito desconhecimento e muito preconceito a respeito do assunto, principalmente quando se trata de mulheres. Quando se fala de tráfico de drogas, todo o sistema funciona e vai atrás, mas quando  é a própria pessoa que é traficada, muitas vezes os órgãos públicos não se sensibilizam. Precisamos melhorar o funcionamento dos órgãos públicos e isso vale para toda a cadeia do sistema  de justiça criminal. São pouquíssimas as pessoas punidas neste país por tráfico de pessoas, especialmente porque muitos casos envolvem grandes políticos e empresários.

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Quais são as principais dificuldades de se tratar esse problema? E o retorno dessas pessoas a suas famílias?

Antônio Maciel – Um assunto que ainda não abordamos e é muito preocupante é o tráfico de bebês e o tráfico de órgãos. Uma operação da Polícia Federal feita entre 1985 e 1988 estima que 12 mil crianças foram traficadas no Brasil, na região Sul, porque o perfil dos bebês loiros e de olhos azuis era exatamente o que esses aliciadores procuravam. Eles compravam de pessoas de baixa renda por cerca de um salário mínimo e vendiam por até 40 mil cada criança. Não é fácil combater esse tipo de prática, mas acho que o tema exige uma manifestação da sociedade cobrando maior atenção dos órgãos públicos. Por exemplo, estamos criando uma proposta de lei propondo uma forma de minimizar isso com a identificação biométrica do bebê e do polegar da mãe. Essa é uma solução técnica para combater esse tipo de crime.

Marco Aurélio – Talvez a principal dificuldade de se tratar do tema no sentido das investigações seja a ausência ou as poucas denúncias confirmadas pelas próprias vítimas. Por parte delas, há sempre medo, insegurança sobre o que acontecerá se ela confirmar a denúncia. Por se tratar de um crime quase sempre praticado por alguém próximo da vítima ou com quem ela mantém laços afetivos e/ou amorosos, o temor da denúncia se confirma. Além disso, existe a vítima que não se vê como tal, pois o aliciador acaba por fazê-la entender que ele a está ajudando, tirando-a  de uma situação de miséria e que agora sua vida é muito melhor do que se ela ainda estivesse no local de origem. De repente, o explorador se torna a “mãezinha” ou o “protetor”, fazendo com que ela não se reconheça ou se enxergue como uma vítima. Temos de ressaltar a ação dos órgãos da justiça. Goiás, por exemplo, se destaca como o Estado que mais penalizou os criminosos, mesmo diante de leis tão frágeis quanto as que se imputam a esse tipo de crime. Nossa esperança é que as novas leis de migração e repressão ao tráfico de pessoas tragam mais poder e condições para a justiça penalizar com severidade os criminosos.

Fabrício Rosa – É importante entendermos que não é fácil regressar. Pense numa mulher que foi para a Europa trabalhar na prostituição, lembrando que é lícito trabalhar na prostituição na maior parte dos países do mundo, inclusive no Brasil. Ela vai voltar com dívidas, problemas psiquiátricos, sofrer preconceitos talvez da própria família, os mesmos preconceitos que a levaram a ir para esses locais. Falando em preconceito, podemos falar das travestis: como é que elas voltam para casa se é de lá que foram expulsas? As travestis que encontramos na situação de tráfico de pessoas muitas vezes foram expulsas de casa, da escola, do sagrado, das relações trabalhistas, então, como essas pessoas retornam? Com relação ao trabalho escravo, conseguimos encontrar casos de retorno, inclusive, nas operações que fazemos, levamos essas pessoas de volta e elas têm direito a receber seguro desemprego. Mas não é simples retornar, é muito difícil na prática.

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Como identificar alguém que está nessa situação e fazer uma denúncia?

Antônio Maciel – Esse é um grande problema porque muitas vezes a pessoa não fala para a família que está indo com aliciador, fala simplesmente que vai viajar e desaparece. O que acontece é que os aliciadores tomam os passaportes e as pessoas não podem mais entrar em contato com seus familiares. Mas as pessoas geralmente não fazem isso até porque muitas delegacias não estão capa- citadas para esse tipo de situação, considerando outras ocorrências mais importantes. É por isso que estamos discutindo a criação de uma delegacia especializada para pessoas desaparecidas, preparando os próprios policiais para lidar com  a informação. Fazer a ocorrência do fato é muito importante para combater esse tipo de delito.

Fabrício Rosa – Existem vários números de emergência no Brasil, inclusive o nosso país é desorganizado quanto a isso. São dezenas de números. Mas existe um número que tenta unificar questões relativas ao tráfico de pessoas ou a direitos humanos em geral, que é o Disque 100. Em todos eles a pessoa pode ligar, não precisa se identificar, mas é muito importante que traga a maior quantidade de elementos possíveis para que a polícia possa trabalhar. Então, se você souber, Disque 100. As pessoas precisam de fato sensibilizar o seu olhar e parar de acreditar em propostas absurdas. Essas coisas maravilhosas não caem assim tão fácil não. Se alguém da sua família recebeu uma proposta para trabalhar na Europa e ganhar não sei quantos mil euros por mês, desconfie, denuncie, ligue para a polícia.

Confira programa da TV UFG sobre o assunto.

 

 

Fonte: Ascom UFG

Categorias: Mesa-redonda Edição 92