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Universidade Federal de Goiás
Defesa mestrado

Mulheres que fazem a diferença

Em 21/03/19 15:22. Atualizada em 25/03/19 14:38.

Primeira indígena e primeira quilombola a se tornarem mestres em antropologia social pela UFG defenderam suas dissertações no dia 8 de março

Texto: Mariza Fernandes

Fotos: Pedro Gabriel, Carlos Siqueira e Natalia Cruz

Nos tempos atuais, em que a pesquisa e a pós-graduação se tornam cada dia mais competitivas, a qualidade, em muitos casos, se confunde com produtividade. A linha tênue entre a objetividade científica e a objetificação dos sujeitos do estudo parece cada vez mais frágil. No último dia 8 de março, no entanto, duas pesquisadoras do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFG) chamaram a atenção para algo que anda esquecido e que não tem lugar no currículo Lattes: é possível (e necessário), fazer pesquisa com amor. A primeira indígena e a primeira quilombola a se tornarem mestres em antropologia social pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Letícia Jôkàhkwyj Krahô e Marta Quintiliano, defenderam suas dissertações no Dia Internacional da Mulher e a escolha da data não poderia ter sido mais significativa.

Em toda a sua diversidade, Letícia e Marta nos lembraram que as mulheres são múltiplas e que, para algumas delas, o sexismo e a misoginia são apenas um dos eixos de opressão. Nascidas em comunidades muito diferentes, inclusive do ponto de vista espacial (Marta nasceu no Quilombo Vó Rita, em Trindade, e Letícia nasceu na Aldeia Nova, em Goiatins - TO), as duas tiveram pontos em comum durante sua trajetória acadêmica. A dissertação apresentada por Marta Quintiliano reflete alguns desses pontos de convergência. Com o título “Redes afro-indigenoafetivas: uma autoetnografia sobre trajetórias, relações e tensões entre cotistas da pós-graduação stricto sensu e políticas de ações afirmativas na Universidade Federal de Goiás”, a pesquisa de Marta aborda as estratégias de estudantes cotistas para sobreviver na academia.

A ciência afetada e o afeto político

Refletindo sobre diversas situações de racismo que sofreu na universidade, Marta Quintiliano encontrou seu tema de pesquisa ao participar de um evento na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). “Eu percebi que lá, os estudantes formavam uma rede. Então, pensando na minha relação com os discentes quilombolas e indígenas da UFG, eu vi as redes afro-indigenoafetivas como uma estratégia de resistência”, explicou. O método escolhido por Marta para realizar o estudo, a autoetnografia, reflete o seu compromisso em pensar novas formas de fazer ciência. “É uma forma de se posicionar enquanto sujeito político e crítico e transcender esse lugar de objeto de estudo em que os sujeitos negros sempre são colocados”, afirmou.

Defesa Dissertação Marta Quintiliano 1
Marta Quintiliano defendeu dissertação diante de banca formada apenas por mulheres

Além do método, a banca avaliadora, formada por mulheres, destacou que a pesquisa apresenta outras inovações, principalmente por lidar com as várias dimensões do afeto, algo tão esquecido pela ciência. “A sua dissertação lida com uma politização dos afetos e apresenta um formato super inovador. É uma inovação epistemológica emancipatória”, apontou a professora Joana Plaza, da Faculdade de Letras, durante a arguição. E de fato, o afeto marcou a sessão de defesa da dissertação. A sala do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena da UFG, onde ocorreu o evento, ficou lotada como quase nunca se vê em sessões de defesa.

Defesa Dissertação Marta Quintiliano 3
Amigos, familiares e vizinhos do Quilombo Vó Rita, em Trindade, estiveram presentes

Além dos colegas de faculdade, alguns familiares e amigos do Quilombo Vó Rita também estiveram presentes. Rememorando a fala da advogada Vercilene Dias, primeira quilombola mestra em direito pela UFG, que também assistiu à defesa, Marta finalizou a apresentação do trabalho afirmando que, apesar de todos os desafios enfrentados para estar na universidade, essa é uma batalha necessária e que, com afroafeto, pode ser menos árdua. “Nesse espaço, onde a disputa é tão grande, a gente adoece. Se não nos juntarmos, seremos derrubados pelo sistema que nos obriga a competir por bolsas de estudos, notas etc. Eu não escrevi esse trabalho sozinha. Muitas pessoas fizeram parte da minha trajetória. Afroafeto é isso”, finalizou a pesquisadora, que durante a fase final da escrita da dissertação, concorreu a uma vaga para o doutorado em antropologia e foi aprovada no processo seletivo do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFG).

De objeto de estudo a pesquisadora

As pesquisas apresentadas por Marta Quintiliano e Letícia Jôkàhkwyj Krahô demonstram que as trajetórias de mulheres indígenas e quilombolas no Brasil se cruzam em diversos pontos. E no dia 8 de março, mais uma vez as duas se encontraram, mas dessa vez para mudar a história. Letícia Jôkàhkwyj Krahô, primeira indígena mestra em antropologia pela UFG, defendeu sua dissertação de mestrado horas depois da defesa de Marta. A pesquisa realizada por ela abordou a educação escolar indígena Krahô ao longo de várias gerações. Para realizar o estudo, Letícia entrevistou a bisavó, a avó e a mãe, Creuza Krahô, que também é mestre pela Universidade de Brasília (UnB). O caminho escolhido para realizar a pesquisa, estudando a própria comunidade e entrevistando as mulheres da família, é apenas uma das inovações que o trabalho de Letícia apresenta.

Defesa Letícia Jôkàhkwyj Krahô
Letícia Jôkàhkwyj Krahô pesquisou a educação escolar indígena Krahô

 

Ao acionar o seu lugar de fala como indicativo de autoridade sobre o tema em estudo, a pesquisadora tensiona a ideia consolidada na ciência tradicional, de que a objetividade científica está relacionada ao distanciamento do pesquisador em relação ao seu objeto. Na banca avaliadora, haviam doutoras da UFG, da Universidade Federal do Tocantins  (UFT) e da Universidade de São Paulo (USP), mas sentada ao lado de Letícia, quebrando o rito tradicional das sessões de defesa de dissertação, estava a mãe da pesquisadora, Creuza Krahô, que ocupava ali dois papéis: o de mãe e o de cientista que estuda e vivencia a educação escolar indígena krahô há mais tempo do que qualquer uma das doutoras. Ninguém poderia questionar a importância da presença de Creuza Krahô na mesa, o que ficou evidente quando ela dialogou com a banca e apontou um dos limites das pesquisas realizada pelos cupe (não indígenas): algumas palavras do idioma krahô não têm tradução para o Português e, portanto, a compreensão do tema fica comprometida quando o pesquisador é de fora.

Defesa Dissertação Letícia 2
Creuza Krahô, mãe de Letícia e mestre pela UnB, também participou da defesa

O estudo realizado por Letícia na escola indígena de Goiatins (TO) identificou uma série de problemas que comprometem a preservação das tradições de sua aldeia. “Está faltando muito interesse, principalmente por parte dos professores não indígenas, que não são preparados”, explicou a pesquisadora. Também aprovada no processo seletivo para o doutorado em antropologia no PPGAS/UFG, Letícia agora vai dar continuidade ao tema pesquisado pela mãe: a importância do resguardo feminino para as mulheres indígenas, um dos costumes que correm o risco de ser esquecidos. “Se a gente que está na academia não lutar por isso, vamos perder as tradições. É um conhecimento oral e isso vai se perdendo aos poucos. Se não deixarmos escrito, não conversarmos com as crianças para explicar a importância, isso vai se perder”, afirmou Letícia, que destacou ainda que considera que tanto o conhecimento indígena quanto o não indígena são importantes para o processo educativo. 

Inclusão na pós-graduação

Desde 2015, a UFG é a primeira universidade federal do Brasil a adotar cotas para negros e indígenas em todos os seus programas de pós-graduação stricto sensu. A Resolução Consuni n. 07/2015 determina uma reserva de 20% das vagas em cada processo seletivo. Após concluir a graduação na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Letícia optou por tentar o mestrado no PPGAS/UFG por avaliar que o programa é mais inclusivo. "Eu pensei em tentar na UFT, mas o meu orientador me desmotivou e disse que eu não estava preparada", explicou a pesquisadora, que agora comemora não apenas a conclusão do mestrado, mas também a aprovação no processo seletivo para o doutorado na UFG. Atualmente, o PPGAS/UFG possui 10 estudantes indígenas matriculados no mestrado; e três indígenas e uma quilombola no doutorado. 

Fonte: Secom UFG

Categorias: Institucional