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Universidade Federal de Goiás
Higor Torres

PANORAMA

Em 06/08/20 16:56. Atualizada em 06/08/20 17:05.

Um olhar para as comunidades quilombolas de Goiás

Hígor Torres

Higor Torres


Situado entre serras e vales, no extremo nordeste do sertão goiano, está situado o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Cujos antepassados, durante o cruel regime escravista do Brasil, se libertaram e se refugiaram em comunidades que hoje são conhecidas como quilombo. Isolados por séculos, resistiram às dificuldades sociais e geográficas da região, mas redescobrindo também que poderiam, ali em comunidade, utilizar aquela região livre e seus recursos para a reconstrução de suas vidas em liberdade.
A história de luta do povo Kalunga resiste e se revela na zona rural dos munícipios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre. Embora estejamos nos referindo a um único povo, os Kalungas se organizam ainda em micro comunidades ou povoados, localizados, em sua maioria, nas zonas rurais desses municípios, e próximas a importantes rios da região. Destaco entre tantos, os povoados do Engenho II, Vão do Moleque, Prata e Vão de Almas.
O conhecimento e manejo da região, por parte do povo Kalunga é riquíssimo. Principalmente referindo-se as plantas medicinais e alimentícias da região. Os povoados abrigam ainda sábios anciões, muitos deles e delas que atuam muitas vezes como parteiras e farmacêuticos naturais, ou raizeiras. Inclusive, em meio à pandemia do Covid19, esta é uma das principais preocupações das comunidades, pois grande parte da população é idosa; não há hospitais nas comunidades; e o posto de saúde mais próximo fica a 29 km de estrada de chão batido, na cidade de Cavalcante Goiás.
O fato de o Sítio Histórico Kalunga e seu povo ocuparem esta região é um fator importante para a manutenção do bioma Cerrado e do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Atualmente a maior parte do território continua intacta, com uma pequena parcela da terra destinada apenas a pequena agricultura familiar e pastagens de poucas cabeças de gado. Entretanto, historicamente o território quilombola sempre foi e é ameaçado pelo agronegócio extrativista, desmatamentos ilegais frequentes, mineração ilegal e possibilidade de construções de barragens; mas seu povo continua lutando pelo direito de propriedade coletiva de suas terras, consagrado pela Constituição Federal desde 1988.
Este ano, o governo federal e o governo de Goiás, por meio da secretaria Cidadã e a Fundação Cultural Palmares, entregaram mais 08 certificados de reconhecimento de comunidades quilombolas no estado, totalizando assim 64 comunidades oficialmente reconhecidas. Este reconhecimento traz mais oportunidades e recursos para essas comunidades, principalmente no que se refere à união, luta, e busca de melhorias para seus territórios. Recentemente, algumas comunidades Kalunga aprovaram o primeiro regimento interno de um quilombo no país, regulamentando assim, quais práticas e usos são permitidos no manejo da terra, por exemplo.
Essa aprovação contribui então para o fortalecimento da autonomia dessas comunidades; e fomenta a busca por melhorias nos setores de educação, saúde e saneamento básico. Uma vez que são setores profundamente marcados pela ausência de políticas públicas efetivas, continuam sendo algumas das principais bandeiras de luta dessas comunidades, que se somam então à luta pela redução das desigualdades nas Comunidades Tradicionais de Goiás.
Segundo dados da organização Movimiento Regional por la Tierra (2017), no quilombo Kalunga, 80% das residências são habitadas por mais de cinco pessoas; a taxa de escolaridade é baixa, sendo que 91% da população possui, no máximo, o ensino fundamental, e apenas 18% estão nas Universidades, fato que atribuímos ao sucesso de programas como o UFGInclui e a programas de formação de professores do campo, como o desenvolvido atualmente na Universidade de Brasília (UNB) e na Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Ainda segundo a organização, o abastecimento de água é, em sua maior parte, realizado através de cisternas, rios e nascentes na região, 58,3% não possuem banheiro e 62% não possuem água encanada. Apenas 3,6% dos moradores receberam recursos do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar e 69,7% delas fazem parte do Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal, outra parte é composta por funcionários públicos municipais e ou estaduais, a exemplo dos professores, merendeiros e agentes comunitários de saúde.
Ao que se refere a questões de infraestrutura, a comunidade carece ainda de diversos outros serviços públicos, como telefonia, asfalto, agua encanada e energia. A questão da energia elétrica é emblemática, pois embora o governo federal tenha lançado o programa Luz Para Todos, com uma comitiva que veio presencialmente à comunidade Engenho II, a mais de 10 anos, 80% do território ainda não possui energia elétrica. Somente este ano, no mês de julho, é que o povoado Vão do Moleque, por exemplo, passou a ter acesso à energia elétrica em casa.
Grande parte dos Kalungas produzem os alimentos em sistema de agricultura familiar, sem uso de fertilizantes ou agrotóxicos. Essa produção, na maior parte, é destinada ao próprio consumo e subsistência dessas famílias. E em alguns poucos casos, o excesso de produção é comercializado na zona urbana dessas comunidades. Recentemente tem se desenvolvido em algumas comunidades Kalunga o ecoturismo como principal fonte de renda desses povoados.
Este é o caso da comunidade do Engenho II, em que se pode observar a substituição da agricultura familiar de subsistência pela atividade turística. Nesta comunidade, tem se observado uma grande demanda principalmente pelo ecoturismo, mas também indica um grande potencial para o turismo cultural e religioso, que podem ser explorados. Nessas comunidades o turismo sustentável mantém a maioria da população, e se divide em diversas atividades e serviços, como loja de produtos locais, restaurantes, lanchonetes, campings, pousadas e serviço de condução de turistas até os atrativos. Cerca de 60% das famílias estão envolvidas em atividades ligadas ao turismo.
Além do fato de grande parte da população dessas comunidades ser idosa, como já citado anteriormente. Este é outro tema que preocupa o povo Kalunga, com relação aos impactos da pandemia do Covid19. Os setores do turismo e dos serviços foram os mais afetados pela pandemia, por conta da recomendação da própria OMS, pela adoção do distanciamento social, e que foi sabiamente acatado pelo governo do estado. Então essas comunidades, que dependiam, quase que exclusivamente do turismo, se viram profundamente afetadas. Para garantir a sobrevivência de muitas famílias, a população e algumas organizações sociais organizaram atividades de mobilizações, com o intuito de arrecadar cestas básicas e garantir a sobrevivência dessas pessoas afetadas.
Enfim, garantir que a juventude Kalunga, não perca suas "raízes" com seu território é um aspecto essencial para a conservação e sobrevivência da memória Kalunga. Neste aspecto alguns programas específicos, voltados para a educação em institutos federais e universidades públicas têm sido essenciais. Como é o caso do Programa UFGInclui, uma iniciativa da Universidade Federal de Goiás, que gera uma vaga extra para estudantes quilombolas e indígenas em todos os cursos da universidade; formando assim, jovens líderes capacitados e engajados na luta por justiça social. Outros projetos também, como o projeto de extensão “Kalunga Cidadão” da UFG e o “Projeto Viver Kalunga”, financiado pela UNB que fomentam à pesquisa, produção, inserção no mercado; além da prestação de serviços essenciais para a melhoria dessas comunidades.
É importante fomentar e discutir também, políticas públicas, tanto em âmbito municipal, como estadual e federal, de desenvolvimento e proteção ambiental, articuladas com as políticas de valorização e capacitação para manejo dos recursos, como plantas e frutos do Cerrado. Sem perder de vista, claro, históricas demandas, como já citadas, por melhorias nos setores essenciais para a dignidade humana, como saneamento básico, educação e saúde. A sociedade avança somente quando todos os cidadãos gozam de direitos humanos plenos, e esses direitos precisam chegar também nas comunidades tradicionais goianas.

Hígor Torres, Quilombola Kalunga da Comunidade Vão de Almas, estudante de Publicidade e Propaganda, na Universidade Federal de Goiás,
Coordenador de Comunicação do Politizar Goiânia.

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos, de inteira responsabilidade de seus autores.

Fonte: Secom UFG

Categorias: colunistas FCS