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Universidade Federal de Goiás
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Sobre o que devemos aprender - Entrevista com José de Souza Martins

Em 16/06/10 07:40. Atualizada em 21/08/14 11:45.
Em palestra ministrada em abril, o sociólogo comentou sobre a importância de dialogar com a sabedoria popular e de ler os sinais do que é construído pelas pessoas no cotidiano. Contudo, ressaltou, isso deve ser feito sem descartar o conhecimento científico

Por Patrícia da Veiga (Ascom/UFG)

 

Ele começou a trabalhar na fábrica de Roberto Simonsen aos 11 anos. Sua família toda era operária, vinda da zona rural. Foi na fábrica que cresceu e, convivendo com as pessoas que por ali passavam, sentiu vontade de estudar. Na mocidade, fazia magistério sonhando em ser professor na roça. O magistério, aliás, era profissão predominantemente feminina. “Minha mãe dizia que eu estava querendo escapar do trabalho duro”, narrou José de Souza Martins.


A marcha da vida levou-o à graduação (bacharelado e licenciatura), ao mestrado e depois ao doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP). Depois de 40 anos dedicados à pesquisa e à docência, seu currículo registra designações como professor-visitante na Universidade da Flórida; membro da Cátedra Simon Bolivar, da Universidade de Cambridge; visitante da Universidade de Lisboa; membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da Organização das Nações Unidas (ONU) contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, além do Prêmio Florestan Fernandes pela Sociedade Brasileira de Sociologia.


Fragmentos de sua trajetória pessoal até a vida privada de pensadores importantes para o Ocidente, como Karl Marx, foram contados pelo próprio José de Souza Martins em palestra ministrada no Cine UFG, em abril, durante a Aula Magna do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Seu objetivo foi explicar ao público que ali compareceu o método regressivo-progressivo nas pesquisas em Ciências Sociais. Desenvolvido pelo marxista francês Henri Lefèbvre, essa forma de compreender a sociedade leva em consideração, em linhas gerais, as dimensões políticas do cotidiano. Dimensões que não são lineares e que rompem com a divisão exata dos espaços público e privado.

Ao longo de sua explanação, o professor lembrou os jardins das residências operárias, que via crescer conforme a ascensão social das pessoas, e do cheiro, semelhante ao produto da fábrica, que cada um de seus conhecidos trazia para casa depois da jornada. As memórias próprias e as memórias dos outros, conforme demonstrou, têm sempre muita valia para um pesquisador, pois dizem de status de vida. Dizem também de uma inspiração antropológica para se realizar a investigação. Inspiração esta que consiste em retirar as interpretações mais das linhas tortas do que das linhas retas, do “espaço vivido” e não apenas do “espaço concebido” ou “percebido”.


As extensões da vida e do humano são diferenciadas, ensina ele, que durante 30 anos acompanhou as “fronteiras” em um “solitário” projeto de pesquisa sobre as “tensões sociais nas frentes de expansão da Amazônia Legal”. Fronteiras que, conforme conclui em obra de 1997, não são apenas delimitações geográficas, mas sim (e também) referenciais de tempo e de processos de colonização; de percepções de si e do outro; de modos de violência e de resistência; de territórios em que convivem tanto o progresso quanto a degradação. Fronteira: a complexidade que nos leva a refletir sobre a história e sobre as tragédias escondidas nessa história.

Ao final da aula-magna, fixada ficou sua preocupação com a humanidade que deve ter a ação do pesquisador, sem que tudo, no entanto, se esvaia pela meta-narrativa. Além da entrevista que você conferiu no Jornal UFG n°36, o professor José de Souza Martins também respondeu às duas perguntas que seguem:

Por que a academia, em regra, parece ter tanta dificuldade para se aproximar da realidade das pessoas?

Em regra, a academia não tem nenhuma dificuldade para se aproximar da realidade das pessoas. Essa ideia decorre de certo preconceito contra a universidade. Nos diferentes campos de conhecimento, seus docentes e pesquisadores trabalham, justamente, com os diversificados âmbitos da realidade. Todas as suas áreas estão voltadas para os problemas do ser humano. Não raro, isso se dá através de mediações que não têm de ser nem podem ser reduzidas ao popular, no sentido de subordinadas ao conhecimento de senso comum. Se assim fosse, a ciência seria desnecessária. Em vez de procurar um hospital, os doentes procurariam um curandeiro. Por seu lado, as ciências sociais trabalham com as dimensões da realidade social que escapam à compreensão do homem comum. Uma dessas dimensões é a da alienação. Nesse sentido, há não só substancial diferença entre conhecimento acadêmico e o senso comum, como há também tensão. A universidade é a instituição do diálogo entre o conhecimento erudito e a sociedade.

Pensadores brasileiros que já leram tudo sobre Marx podem ignorar a obra de um Paulo Freire, por exemplo. Conseguiremos algum dia pensar/analisar/interpretar nossa própria realidade com uma base epistemológica menos dependente da europeia? Como superar a repetição de modelos?

Paulo Freire foi um admirável pedagogo e nos momentos apropriados me referi à sua obra em meus livros. Não era sociólogo nem antropólogo. Sua obra não é propriamente obra teórica, mas uma obra de pedagogia prática e criativa, voltada para questões tópicas da educação popular em sociedades de transição difícil e de sérios bloqueios à escolaridade. Essa obra, com justiça muito respeitada, nada tem a dizer sobre a maior parte dos tópicos do imenso elenco de problemas de pesquisa com que trabalham os cientistas sociais dos vários campos de orientação teórica, não só o que se funda na ciência social de Marx e no seu método dialético. Quem tem a preocupação da pergunta, geralmente ignora que há mais de 70 anos se produz no Brasil uma densa e respeitada ciência social enraizada que, como é próprio da ciência, se estabeleceu com base num criativo diálogo com a universalidade do conhecimento. Convém lembrar que Paulo Freire ignorou completamente a Sociologia e a Antropologia brasileiras.

Confira o conteúdo impresso no Jornal UFG, aqui.

Fonte: Patrícia da Veiga