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Universidade Federal de Goiás
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Se não somos militantes, que tenhamos alteridade

Em 29/09/16 16:02. Atualizada em 04/10/16 13:36.

Professora da Faculdade de Letras da UFG afirma que escolhas linguísticas que fazemos revelam nossas ideologias e atitudes

Tânia Rezende

 

Tânia Rezende*

Em sessão do Supremo Tribunal Federal, no dia 10 de agosto, ocorreu o seguinte diálogo entre o presidente da Casa, ministro Ricardo Lewandowski, e a ministra Carmen Lúcia, recém-eleita à presidência do STF, a partir de setembro:

Concedo a palavra à ministra Cármen Lúcia, nossa presidenta eleita… ou presidente?

Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, não é não?

É bom esclarecer desde logo, não é?

As escolhas linguísticas que fazemos revelam nossas ideologias e atitudes. Foi o que revelou a ministra Carmen Lúcia, ao responder ao presidente do STF, com uma justificativa sustentada na norma linguística (sou amante da língua portuguesa), o tradicional discurso de autoridade; subsidiada pela escola (Eu fui estudante), a agência de sustentação da norma; e legitimada pela nomeação (o cargo é de presidente), o poder da oficialidade. Com isso, a ministra mobilizou, em poucas palavras, poderosas agências de socialização de gênero, em defesa da manutenção da ideologia de gênero vigente na sociedade.

Não se trata, nesse caso, de “correção gramatical”, conforme sentenciam os gramáticos, rapidamente evocados pela mídia. Trata-se de preferência, como defende a mesma mídia. Mais que um fato linguístico, a marca de gênero em “presidenta”, atualmente, é o indicador de uma mudança social maior.  Mikhail Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006), defende que a linguagem, por ser ideológica, é o termômetro mais sensível das mudanças sociais. O embate a que temos assistido entre “presidente” e “presidenta”, desde a eleição de Dilma Rousseff para a Presidência da República do Brasil, em 2010, é a representação linguística de uma transformação social contemporânea.

Por exemplo, há algum tempo, observo, em Goiânia, que alguns homens, para expressar agradecimento a uma mulher, dizem: obrigada. Ou seja, o gênero gramatical concorda com o gênero social da interlocutora. Ao cumprimentar meus amigos indígenas nas redes sociais, pelo aniversário deles, eles me agradecem, dizendo também obrigada.  

Algumas línguas indígenas fazem distinção entre a fala masculina e a fala feminina. Esse background linguístico pode estar orientando o uso do gênero centrado na interlocutora e não no locutor, quando esses indígenas falam em português. O fato de os goianos também marcarem o gênero gramatical do agradecimento, considerando o gênero social da interlocutora, aponta para a possibilidade de influências indígenas na cosmovisão e na epistemologia linguística goianas.

As explicações e as discussões sobre a língua são feitas na própria língua, fazendo com que “a cumplicidade ontológica entre as categorias linguísticas e as categorias sociais pareça natural” quando, na realidade, é construída e imposta. Ou seja, as práticas linguísticas seguem convenções, portanto, as tradições linguísticas são invenções discursivizadas, que podem ser (e são) desinventadas, da forma defendida por Cristine Severo (2016), em A invenção colonial das línguas da América, e muit@s goian@s já as estão reinventando no agradecimento.

Da mesma forma, no uso visibilizado do feminino, como em “bom dia a todas e a todos”, já bastante aceito; no emprego, na escrita, de “alunas e alunos” ou “os/as estudantes”, no lugar do falso genérico masculino “alunos”, “estudantes” para indicar masculino e feminino, invisibilizando ou, pior ainda, excluindo, as mulheres, não está em questão o pressuposto do certo/errado ou o que é ou não correto na língua, considerando o que diz a gramática normativa. Trata-se de uma escolha política de uma regra ideológica para dar existência e visibilidade às mulheres, na sociedade, pela linguagem.

Com relação ao emprego de símbolos, como ‘x’ ou ‘@’, o que está em questão é a ruptura epistemológica: rompe-se com a epistemologia maniqueísta de mundo, com a visão binária de gênero, e propõe-se uma concepção pluralista de gênero. Para além de feminino e masculino, propõe-se dar existência e visibilidade à pluralidade de gêneros existentes na sociedade. Trata-se de uma proposta mais inclusiva.    

Enfim, se não somos e nem queremos ser militantes, temos de reconhecer que as conquistas das mulheres são devedoras das lutas e atuações históricas das militantes. Por isso, se não usamos uma linguagem, sobretudo uma escrita, menos sexista, porque não somos/não queremos ser militantes, usemos, então, pelo menos, por alteridade.

*Tânia Rezende é professora da Faculdade de Letras da UFG

 

 

Fonte: Ascom/UFG

Categorias: artigo Edição 83