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Universidade Federal de Goiás
Baleia Azul

De Dom Quixote à Baleia Azul

Em 29/05/17 16:04. Atualizada em 31/05/17 15:27.

Pais e educadores enfrentam desafio diante da apropriação da tecnologia por crianças e adolescentes

Texto: Kharen Stecca/ Ilustração: Ingrid Costa

Baleia Azul

Você conhece o livro Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes? O livro, escrito em 1605, conta a história de Dom Quixote que ao ler romances de cavalaria, acredita neles e passa a andar pelo mundo em seu próprio romance cavalheiresco. “O livro é uma crítica  à imprensa, a grande inovação tecno- lógica da época que transpôs a oralidade das contações de história para a leitura individual. Uma mudança enorme de apropriação cultural, da oralidade para vozes que falam dentro de sua própria cabeça”, afirmou o professor Daniel Christino, da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC/UFG) durante um debate realizado pelo Laboratório de Educação, Tecnologias e Inclusão para discutir os caminhos e descaminhos das crianças e adolescentes na internet. O debate reuniu também a psicóloga e professora Susie Roure e a pedagoga e professora Cleide Rodrigues, ambas da Faculdade de Educação da UFG, para dar perspectivas diferentes sobre o tema.

E o que Dom Quixote tem a ver com  a internet? Para o professor, criticamos a internet da mesma forma que no passado os livros foram critica- dos, como se fossem algo que vem  de fora. “A tecnologia é extensão do homem e de sua subjetividade, precisamos parar de vê-la como algo a parte”, afirma. Ele explica que a tecnologia, conforme muda, exige de nós habilidades diferentes: “a leitura constituiu a subjetividade moderna e a internet está mudando novamente essa subjetividade”.

E o que incomoda os pais, afinal? Segundo ele, incomoda que os filhos estejam perdendo essa capacidade de mergulhar no conhecimento. “Nosso cérebro se adapta ao tipo de consumo de tecnologia que fazemos, não queremos que essas crianças percam essa capacidade”. Mas se a forma de leitura  se  altera, outras habilidades também. Ele cita algumas dessas modificações: a realidade aumentada, por exemplo – cujo exemplo mais famoso é o jogo Pokemon Go, mas também o Foursquare – muda nossa forma de apropriação do espaço.  A sociabilidade também se altera no mundo virtual. Ao contrário da perspectiva de que a internet nos torna individualistas, o professor cita um estudo antropológico que está sendo realizado em comunidades virtuais de jogadores de games. As conclusões são de que esses espaços são muito mais colaborativos do que competitivos e essas dinâmicas têm impacto na vida dos sujeitos.

E é nessa dinâmica que surge o questionamento sobre o impacto da internet e de jogos virtuais na vida das crianças e adolescentes e o polêmico jogo Baleia Azul. Os pesquisadores são unânimes em afirmar que hoje temos o Baleia Azul, ontem foi o campeonato de asfixia, um pouco antes as comunidades que cultuam a anorexia e que sempre existiu e existirá esse tipo de polêmica. O mesmo ocorre com os games, que são frequente- mente associados a atos explícitos de violência, como em assassinatos em massa. Para Daniel Christino, muitos outros produtos já foram associados a crimes, como filmes e até músicas: “As pesquisas não conseguem afirmar como uma pessoa vai realizar a apropriação cultural. Elas, na verdade, mostram que uma pessoa pre- disposta a uma psicopatologia pode usar  o  produto  da  cultura,  seja um jogo, filme ou série para articular e organizar a ação, mas em geral, elas acabam usando esses produtos como escapismo da realidade”, afirma.

Se por um lado os pais estão preocupados com o assunto, os professores estão também perdidos. A professora Cleide Rodrigues explica que as pesquisas mostram que a tecnologia é usada muito mais em casa do que na sala de aula. Por isso mesmo pesquisadores têm levantado a necessidade de se preocupar mais com o que as crianças estão fazendo com a tecnologia fora da sala de aula. Ela acredita que a escola precisa repensar seu sentido na sociedade contemporânea. “As novas gerações têm um déficit, a desorganização de informações; a escola deveria ser o espaço de organização dessas informações”, afirma. O jovem usa a internet para entretenimento, comunicação e informação de seu interesse.

Por outro lado, apesar da preocupação dos pais, o que a realidade mostra são crianças sem controle nenhum do que veem ou buscam na internet. Outro dado assustador colocado por Cleide é a quantidade de horas que crianças entre 8 e 12 anos ficam na internet: 6 horas para meninos e 8 horas para meninas. E o mais agravante: as pesquisas mostram que as crianças têm pouca ou nenhuma consciência dos perigos que a internet oferece. A professora e psicóloga Susie Roure explica que a cultura e subjetividade se articulam e se transformam dialeticamente. “A tecnologia nos modifica. Os pais e educadores se assustam com a velocidade das mudanças e as pesquisas, que demandam seu próprio tempo, não conseguem acompanhar o ritmo delas e dar as respostas que a sociedade requer”, afirma.

O papel do educador também mudou: “O educador não é mais aquele que mostra o caminho, com a tecnologia essa lógica se inverte”. Ela destacou a importância de que os pais coloquem muito cedo limites aos filhos. “Limites devem ser definidamente claros na infância, e negociados na adolescência, na medida da construção da autonomia. Mas se eles não forem trabalhados na primeira infância, dificilmente serão aceitos na adolescência”. Ela explica que a autoridade vem sendo questionada, pois em um mundo onde o novo deve suplantar o passado, o jovem precisa ser livre e autônomo. Porém, em nenhum momento deve-se confundir autonomia com ausência de normas ou de responsabilidade, que é a base da autonomia. No entanto, ela afirma que para criar jovens com esse perfil é preciso normas e limites na infância: “A liberdade é um direito humano, mas no ponto de vista do sujeito, ela precisa ser conquistada”.

Para Susie, há alguns erros que os pais vêm cometendo. O processo de conquista da autonomia deve ser supervisionado por pais que já passaram pelo processo de maturação, no entanto esses mesmos pais têm se voltado para seu próprio sofrimento e sido egoístas, não planejando suas ações e decidindo o processo no dia a dia, o que acaba dificultando a criação desses limites.

E o papel dos pais e educadores?

Como resposta à pergunta do debate – o que fazer com relação a ansiedade de pais e educadores com relação às crianças e adolescentes na internet –, Daniel Christino acredita que precisamos estudar, adquirir conhecimento, pois só assim seremos menos “usados” pela tecnologia. Cleide Rodrigues destaca que os próprios pais estão fascinados com a tecnologia: “Precisamos mudar nossos olhares, voltá-lo para a cultura digital que estamos construindo e usar a tecnologia de forma consciente”. Já Susie destaca os limites que os pais precisam criar para as crianças: os que devem ser transpostos, por exemplo, a criança precisa saber lidar com a tecnologia corretamente; os que precisam ser impostos: o que pode ser feito e o que é inegociável na infância e dialogável na adolescência (e dialogável não significa negociado), como por exemplo o tempo gasto em frente aos eletrônicos e os limites da privacidade, que são os cuidados com o corpo, com suas ideias e a noção de privacidade. Já do ponto de vista dos educadores, os professores ressaltam a importância de o professor atingir um novo perfil. Nas palavras de Daniel Christino: “O professor deixou de ser um dispositivo para acessar o conhecimento, ele agora precisa dar pertinência a esse conhecimento.”

Quer saber mais sobre  segurança  na Internet para crianças e adolescentes? Acesse o site produzido pelo Centro de Estudos, Resposta e Trata- mento de Incidentes de Segurança no Brasil.

Veja o artigo da professora Cleide Rodrigues sobre o assunto.

Categorias: Comportamento edição 88 internet crianças