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Universidade Federal de Goiás
Mesa-redonda

Terra em Disputa

Em 28/07/17 11:43.

Especialistas discutem conflitos no campo no Brasil

Ascom, Rádio Universitária e TV UFG

Fotos: TV UFG

Mesa

Os conflitos no campo registrados no Brasil aumentaram de 1.217, em 2015, para 1.536, em 2016, o que representa um aumento de 26%, segundo o relatório anual apresentado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 2016, foram registrados 61 assassinatos em conflitos no campo, uma média de cinco assassinatos por mês, sendo  a maioria deles na Amazônia Legal, que compreende toda a região Norte mais partes do Maranhão e Mato Grosso. Além disso, ameaças de morte subiram 86% e tentativas de assassinato, 68%. Os dados mostram o ano passado como um dos mais violentos já registrados pela CPT desde 1985.

No documento da CPT também é destaque a evolução do número de pessoas encarceradas por conflitos no campo, que passou de 80 para 228, o que representa um aumento de 185%. A impunidade nos casos  de assassinato também é alarmante. Entre 1985 e 2016, houve 1.387 assassinatos no campo, com um total de 1.834 vítimas. Apenas 112 casos foram julgados, com 31 mandantes condenados e 14 absolvidos. O relatório destaca ainda a redução, desde 2015, dos direitos já conquistados pela agricultura familiar, indígenas e quilombolas. A conjuntura política e a ausência de ações de estado fazem com que entidades ligadas ao setor temam pelo agravamento dos conflitos.

Para discutir o assunto, a mesa- redonda desta edição convidou o representante da Comissão Pastoral da Terra, Paulo César Moreira Santo; o professor do Instituto de Estudos Socioambientais da UFG, Adriano Rodrigues de Oliveira; e a representante da Direção Estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Elizabet Cerqueira.

Veja a última edição do Caderno Conflitos no Campo Brasil 2016

O ano de 2016 registrou um aumento no número de assassinatos e ameaças de morte no campo, o maior índice desde 2003. Por quê? O que está em disputa?

Paulo César Santos – É uma situação que vem se agravando. Os conflitos têm aumentado em relação a vários grupos. De 15 anos para cá temos o aumento de conflitos contra comunidades tradicionais, mas também de grupos de posseiros e sem terra. Se considerarmos o número de 2014, de 36 assassinatos, e de 2015, 61 assassinatos, até o final de junho de 2017 já temos 43 assassinatos, temos uma escalada de aumento que vem superando os anos anteriores. Isso chama atenção, pois a violência vem se  acirrando desde 2016, com o  golpe institucional, com  o enfraquecimento da política representativa e, ao mesmo tempo, o fortalecimento do agronegócio e da bancada ruralista, que estão encontrando legitimação para perseguir, expropriar territórios e ameaçar pessoas.

Adriano Rodrigues – O  primeiro  aspecto  a  ser salientado é a importância da atuação da CPT e do MST para pensar  essa  temática.  A CPT, com a sistematização de  dados desde 1985,  nos  permitiu  debruçar  sobre  o  tema na academia e entender os desdobramentos deles na sociedade brasileira. Como o Paulo César disse, esse processo teve uma escalada recente por conta do golpe. Nós consideramos que foi um golpe de natureza parlamentar, política e midiática e que tem legitimado as ações do agronegócio brasileiro. Para pensar a questão do agronegócio brasileiro precisamos circunscrever o que Leonardo Boff destacou no último Caderno de Conflitos no Campo, que são as quatro sombras que pairam sobre a sociedade brasileira: o genocídio indígena, a escravidão, o regime colonial e a lei de terras de 1850, que institucionaliza a propriedade privada da terra. Nestes últimos dois anos temos vivido uma escalada de violência atrelada à retirada de direitos. As pequenas concessões que foram estabelecidas durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) têm sido progressivamente retiradas por essa arquitetura propícia que tem sido montada em relação à retirada de direitos sociais do campo, mas isso também extrapola para a cidade. Destaco, sobretudo, a PEC 215, que tira do Executivo a responsabilidade de demarcação de unidades de conservação, unidades indígenas e quilombola, o que é uma clara estratégia de enfraquecimento da ação do Estado em prol dos direitos do campo.

Elizabet Cerqueira – O  que está em  disputa é  a terra. Para nós é um modo de vida, a nossa vivência com nossa família, em colher, trabalhar, plantar e se relacionar, bem diferente do agro- negócio que percebe a terra como mercadoria, são grandes extensões de terra sem ninguém morando, cultivando nada além de commodities. E é algo que não só degrada vidas, como também a fauna, flora e economia local, pois esse dinheiro não fica nos municípios em que o agronegócio se instala. O que percebemos nos relatos de conflitos é que a correlação de forças não é a mesma: de um lado posseiros, sem terra, indígenas, quilombolas e de outro existe um sistema aliado ao capital internacional e aos três poderes do Estado. E é claro que esse último lado terá maior força, até no sentido da visibilização disso. Temos hoje os cadernos fazendo essas denúncias, mas isso acontece há vários anos e não é mostrado por outras fontes. São sempre  os mesmos movimentos do campo que mostram esses dados, com apoio das pastorais e alguns estudiosos do assunto.

Mesa

Elizabet Cerqueira

Elizabet Cerqueira 

 

Qual é o papel da mídia na divulgação e na problematização do tema “violência no campo” no Brasil?

Adriano Rodrigues – Esse é um importante aspecto a ser analisado. O primeiro aspecto é que a mídia convencional não tem nenhuma preocupação com a difusão dos aspectos relacionados à violência no campo. Quando fazemos uma análise histórica de como a mídia cumpre esse papel, por exemplo nos anos de 1990 no massacre de Eldorado dos Karajás e agora em 2017 com os dois massacres que tivemos no Pará e no norte  do Mato Grosso, há uma  diferença  substancial. Na década de 1990 houve uma cobertura de 15 dias e no caso atual a cobertura é de notas de rodapé. Quando muito, a mídia alternativa tem denunciado esse processo. Por isso falo que o golpe foi parlamentar e também midiático. Houve uma confluência para firmar o interesse do agronegócio. Essa é a face moderna do latifúndio no Brasil. Nós não podemos nos esquecer de que a estrutura da propriedade de terra segue inalterada no Brasil e claramente se instala no campo brasileiro um modelo hegemônico do agronegócio que mata; e há a proposta de um modelo pautado na vida, que é o modelo defendido pelas comunidades sem terra, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. São modelos distintos e vemos os conflitos sendo gerados. E o conflito parte de quem? Com a anuência de quem? Qual o papel do Estado Brasileiro? O Estado Brasileiro tem em sua gênese o caráter da violência. Os maiores exemplos de violência estrutural no Brasil sempre têm a presença direta do Estado ou indireta, na medida em que permanece a impunidade. Esse é um aspecto central que devemos debater e que a mídia ocupa papel de destaque.

Elizabet Cerqueira – É impossível falar em Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e não tratar sobre o papel da mídia. Percebemos que as famílias tradicionais conservadoras brasileiras, responsáveis pelos conglomerados de mídia, acabam abordando apenas um lado, que é o latifúndio e o agronegócio. Ninguém fala do MST como maior exportador de arroz da América Latina. É apenas um movimento de vândalos que querem tirar terras de pessoas que trabalharam para conquistar seus latifúndios. Sabemos que a mídia tem esse lado nefasto, de criminalizar, de dar voz apenas a esse lado que nem precisa de espaço. Percebemos que falta uma política que democratize os meios de comunicação, faltam espaços como esse aqui em que podemos falar sem receio. O que esperamos é que as mídias alternativas possam ser potencializadas e que cada espectador tenha autonomia de fazer essa seleção. Se sabemos que esse golpe além de institucional é midiático, devemos boi- cotar esses meios de comunicação e buscar novas mídias autônomas e alternativas. Nós, como movimento social, temos uma contribuição a dar nesse sentido, pois devemos criar outros meios digitais e televisivos de  divulgação.

Paulo César Santos – A questão da mídia é um dos problemas mais graves que temos. Temos uma concentração de renda, de terra e também de poder e isso se reflete na imprensa. Os grandes meios de comunicação no Brasil não são imparciais. Eles são grandes conglomerados econômicos com interesse tanto no campo político quanto no econômico. E isso se reflete nos estados. A imprensa local em estados com conflitos maiores como Pará, Mato Grosso, Amazonas e Goiás, coloca a luta social ligada ao tráfico de drogas ou outros problemas que dizem respeito à polícia. E isso é grave. Temos um papel importante, não podemos ficar totalmente vulneráveis a imprensa no Brasil. O relatório sobre conflitos no campo elaborado pela Comissão Pastoral da Terra aponta diversos motivos para os conflitos, entre eles o uso da água e divergências de dados quanto à delimitação de terras declaradas, que muitas vezes avançam em terras indígenas e de proteção ambiental.

 Mesa

Paulo César Santos

Paulo César Santos

Como esses conflitos ocorrem e quais suas consequências?

Elisabet Cerqueira – O modus operandi do agronegócio é uma junção de forças com o poder executivo, legislativo e judiciário. O presidente irá assinar a Medida Provisória 759, que restringe as terras dos povos tradicionais, ou que deveriam ser destinadas à  reforma agrária  e a colocam a serviço do capital internacional pelo agronegócio, com plantações de commodities como soja e milho. O movimento percebe esse conluio por meio da escalada de violências. Em 2016, como mostra o caderno dos conflitos, vivemos uma escalada de criminalização a partir do momento que organizamos as famílias para lutar pelos direitos sociais. Inclusive em Goiás protagonizamos algo inédito. O movimento social foi enquadrado numa lei de organização criminosa (Lei nº 12850/2013). É a forma que esse grupo que une  forças do Estado com o capital internacional tem de criminalizar o movimento que luta por direitos. Então o caso é tratado como caso de polícia, pois é assim que é associada a falta de políticas públicas, no caso a reforma agrária. A partir de 2016 tivemos uma escalada da violência, mas não nos curvamos. A unidade entre os movimentos e pessoas que defendem a questão agrária fez com que brigássemos no Tribunal de Justiça até chegar no Supremo Tribunal Federal, que disse que uma organização social não pode ser enquadrada como uma organização criminosa, porque sua finalidade não é o crime, mas uma questão política, que é a questão agrária no Brasil.

Paulo César – Temos um processo de violência histórica contra indígenas, negros, posseiros. Temos uma legislação que sustenta essa estrutura de dominação no poder. E qual o papel da sociedade nisso tudo? Se há uma violência  ela deveria ser combatida. Se não é combatida, ela tende a se perpetuar.  Esse  ano  começou com matanças coletivas. O relatório quer dar visibilidade ao que os outros meios não dão. Às vezes colocam como conflito em que a polícia  foi tentar se defender. Na chacina de Pau D´arco em que a polícia assassinou trabalhadores, não foi legítima defesa, foi uma sentença de morte, assim como foi em Conísea e sobre o povo Gamela. Um dos dados do caderno Conflitos no Campo, que iniciou em 1985, é que até 2016, foram 1387 casos de assassinatos. E apenas 31 pessoas foram condenadas e a minoria foi presa. Se não há punição, a tendência é continuar. A violência e a impunidade no Brasil é algo que  faz perpetuar, junto com a ação do estado, a violência.

Adriano Rodrigues – O que impera com o golpe é a tese do “pode tudo”, um sentimento de impunidade com relação ao agronegócio que nos leva a crer que a outra face é a barbárie. E não é somente a violência como ameaça, mas como morte em última instância. Se pegarmos os dados desde o início do caderno, temos mais mortes propagadas pelo agronegócio do que oficialmente temos com a ditadura militar. Isso é perverso. Não são apenas 61 pessoas, são indígenas, posseiros, pais, são pessoas, coletivos. Essa outra face da barbárie precisa ser estudada, denunciada e revista.

Mesa

Adriano Rodrigues

Adriano Rodrigues

Que consequências tem a criação, via decreto presidencial (Governo Dilma), do território Matopiba, última fronteira agrícola do país, situado entre os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia?

Adriano Rodrigues – O decreto legitima a “última fronteira” agrícola no Bioma-Território do Cerrado. A região se conformou com o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), que converteu o Cerrado brasileiro como um território-chave na geopolítica internacional de produção de proteínas de origem vegetal e animal. As consequências imediatas podem ser expressas em três dimensões: socioeconômica, ambiental e cultural. No aspecto socioeconômico, observa-se a valorização do preço da terra, tendo em vista que a região passa a ser alvo da especulação imobiliária, que agora também envolve corporações internacionais do agronegócio – que na etapa pós-crise de 2008, vislumbram na apropriação da renda da terra, uma forma de controle da natureza, naquilo que Harvey chama de acumulação por espoliação. Na questão ambiental, observa-se a ampliação do desmatamento das áreas remanescentes do Cerrado. Pesquisas têm demonstrado que enquanto em outras áreas consolidadas e devastadas, o ritmo do desmatamento diminuiu na ordem de 64%, em Matopiba o desmatamento aumentou na ordem de 61%. Como correlação direta, aumenta-se a pressão sobre os territórios nos quais se organizam socioculturalmente os povos indígenas, comunidades quilombolas, populações ribeirinhas e toda a diversidade de camponeses que têm distintas formas de reprodução de seus saberes e fazeres em consonância como a dinâmica natural do Cerrado.

Paulo César – O Matopiba é apresentado como uma solução importante e viável para os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, no entanto, representa uma nova fronteira de expansão  do capital e visa, exclusivamente, beneficiar o agronegócio, com uma destruição grave no que ainda resta de Cerrado naquela região e consequências gravíssimas sobre os aquíferos que abastecem o país. O empreendimento esconde uma visão socialmente perigosa de desenvolvimento, pois não considera modos de vida originários, destrói a cultura e sabedoria dos povos, expulsando comunidades e agravando a situação de violência. Vale lembrar que em 2016, se compararmos com o ano anterior, o estado de Tocantins teve um aumento de 313% nos conflitos por terra. Outro fator preocupante é que o Cerrado, que é a principal área de expansão/invasão do agronegócio, detém 14,9% da população  rural  do país, no entanto, registrou 24,1% do total das localidades envolvidas em conflitos, significando um patamar grave de violência, de acordo com o Caderno de Conflitos no Campo de 2016. E com as políticas para o campo implementadas pelo ilegítimo governo Temer, a situação vai se agravar muito mais, lamentavelmente.

Elizabet Cerqueira – O Matopiba é a entrega dos bens naturais do Brasil aos interesses das trans- nacionais. Revela a estratégia do agronegócio em migrar da região centro-sul do país que teve entre os anos de 2009 - 2010 maior porção de produção de commodities agrícolas. De 2010 para cá isso tem mudado para a região Norte do país, tendo uma crescente construção de hidrovias, portos e a Ferrovia Norte-Sul para escoamento da produção. A aliança do agronegócio e do latifúndio brasileiro associado ao capital financeiro internacional quer transformar mais de 40 milhões de hectares de áreas novas e altamente produtivas na maior fronteira agrícola do mundo. Esta região possui uma enorme riqueza de água, de florestas, de Cerrado, das várias culturas das comunidades e povos tradicionais. É preocupante, pois este bioma já sofre hoje um desmatamento maior do que o da Amazônia. A degradação dos mananciais da região é outra consequência. Uma vez que na lógica do agronegócio são necessários o gasto de 50 mil litros de água para produzir 1 quilo de grão de soja. Isso revela a face nefasta e gananciosa dos impactos ambientais e sociais que o Matopiba trará para o país. Sem falar nos conflitos que já existem com as comunidades e povos tradicionais no que tange à demarcação de terras indígenas e territórios tradicionais, como as quebradeiras de coco babaçu e quilombolas.

Confira o programa completo no canal da TV UFG no Youtube

Categorias: Mesa-redonda Edição 89