Icone Instagram
Icone Linkedin
Icone YouTube
Universidade Federal de Goiás

Entrevista: O mundo da linguagem é o mesmo mundo da vida

Em 13/08/13 11:44. Atualizada em 24/11/14 14:13.

Logo Jornal

Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 60 – JULHO – 2013

O mundo da  linguagem é o mesmo mundo da vida

Texto: Kharen Stecca | Fotos:  Carlos Siqueira

 

No início do mês de julho a Faculdade de Letras da UFG realizou o IV Simpósio Mundial da Língua Portuguesa. O evento reuniu os principais estudiosos da área para discutir questões sobre  Linguística, políticas públicas para o ensino da língua e crescimento da língua portuguesa no cenário internacional. Em uma mesa histórica, os principais gramáticos da língua portuguesa se reuniram para definir suas gramáticas e mostrar seus trabalhos. Entre eles estava a professora Maria Helena de Moura Neves (UPM/Unesp/CNPq). Ela é a única mulher no Brasil a escrever uma gramática (Gramática de usos do português) e também a única a propor uma gramática de usos, feita a partir de um banco de dados com textos que mostram como o brasileiro utiliza a gramática em a sua linguagem. O Jornal UFG entrevistou a professora que considera que a escola deve repensar o ensino da gramática, dando ênfase ao texto e permitindo a criação de “gatilhos” que permitam que o aluno entenda como a gramática funciona na prática.

Maria Helena de Moura Neves

Seu trabalho se baseia na gramática do falante, da prática. Há uma grande distância entre a gramática formal e a gramática de usos?
Uma não desmente ou critica a outra. É apenas outra maneira de chegar aos fatos da linguagem. Eu faço uma gramática de uso, trabalho com corpus, ou seja, banco de dados. Não trabalho com exemplos inventados. A gramática feita tradicionalmente apresenta os fatos e depois exemplos. O que me interessa é que o aluno que vai estudar a gramática passe a entender um fato linguístico, não como um exemplo de algo que você já disse o que é, por meio de uma definição ou um exemplo criado. Meu foco é a linguagem, para que o uso seja cada vez mais eficiente, solto,  criativo. Só se consegue isso quando se tem um gatilho e não um bloqueio. Se a pessoa estiver bloqueada, vai parar para pensar antes de se expressar e vai compor o enunciado sem criatividade. É preciso trabalhar a gramática da escola a partir da forma como a língua é usada. Eu não faço definições, porque não adianta dizer que o mas é uma conjunção, por exemplo. Se o aluno repetir uma definição decorada, isso nada acrescenta, pois não foi ele que verbalizou o conceito. Fazer uma definição só é útil se isso for um meio de conhecer o que algo é. Se for um rótulo, não adianta nada. Para fazer minha gramática, usei um banco de dados, composto por textos escritos, da Unesp de Araraquara. É um corpus de 200 milhões de ocorrências de jornais, revistas, peças de teatro etc. Se eu quero estudar a linguagem, eu preciso saber como as palavras funcionam na minha língua.

Além da Gramática de Usos do Português, há outras gramáticas com esse foco?
Eu também participei da confecção da Gramática do Português Falado,  coordenada pelo professor Ataliba Castilho, que é um conjunto de estudos gramaticais. Mas nesse caso o trabalho foi feito de uma maneira diferente, porque só temos o Corpus do Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro (Nurc), feito na década de 1970, de abrangência parcial. A princípio fizemos artigos com o material levantado e só agora estamos publicando esse material em uma consolidação da gramática. Na hora de fazer um manual de gramática precisamos prever para o aluno que as categorias da língua não são engessadas. Colocar uma definição já de início não é o ideal, porque raramente uma definição servirá para tudo. Temos que ir construindo a conceituação, para aprender a lidar com aquilo. Se ativarmos a gramática se fazendo, percebemos que as palavras não se prendem a classes rigidamente delimitadas. Há uma ciência que dá certas possibilidades de verificar os deslizamentos categoriais e funcionais na língua portuguesa. Por exemplo, um substantivo à direita de outro substantivo adquire propriedades de um adjetivo, como em cheque fantasma. Uma obra gramatical tem de mostrar tudo o que a língua faz, senão, não é gramática. Se o aluno for testar muita coisa que dizem para ele sobre a língua, verá que não bate. É preciso fazer ver que a língua vai mudando, mas não funciona desregradamente, ela tem uma gramática que a rege.

Os professores hoje conseguem perceber essa necessidade de entender o uso da gramática na linguagem? E conseguem passar isso para os alunos?
Para entender essa necessidade, é preciso conhecer muito. É preciso estudar, ver parte por parte. Eu fui professora do ensino fundamental e médio, e sempre dei gramática com o texto em cima da carteira, e eles adoravam. Quando o aluno examina motivadamente o texto, ele entende o funcionamento da linguagem e passa a escrever melhor. Ele bate os olhos no texto e capta as coisas, ao invés de ficar bloqueado. Se a gramática servir para bloquear o aluno, ao invés de ajudar atrapalha. Se ela servir para o aluno sentir como a língua funciona, ele vai se apropriando desse mecanismo criador. Ele vai com confiança, porque entendeu o que a língua pode fazer, e tem menos medo de se aventurar. Em um livro meu falo sobre livros que dividem o capítulo em “leitura”, “interpretação” e “mundo da gramática”, como se o mundo da gramática fosse diferente do mundo da linguagem. Esse é o grande problema. É a gramática que faz a linguagem, é ela que arranja as coisas. É ela que cria humor, que cria recados. Por exemplo, os cartazes dos últimos movimentos populares são uma amostra disso. Eles chegaram a achados muito interessantes, porque se trata de uma criação conjunta: alguém em uma certa hora capta melhor que outro um certo viés dos acontecimentos e encontra uma expressão feliz. Nós temos que fazer o mesmo, antenar o aluno continuamente para tudo o que se pode fazer com a linguagem.

Um comentário sobre os cartazes das manifestações é que eles se inspiraram amplamente em anúncios publicitários brasileiros. Qual sua opinião quanto a isso?
Se na sala de aula crio condições de reflexão da linguagem, para que o aluno se aproprie dela, isso pode ser comparado à exposição de bons recados que os cartazes fizeram. O professor tem de usar também a sala de aula para que o aluno interaja com os textos, com as imagens, de modo que, ordenadamente, possa ajudá-lo a captar mais do que aquilo que as regras e as definições trazem. O que os anúncios fazem com o indivíduo, esse apelo natural, eu quero que a escola faça. O texto na sala de aula, o trabalho com linguagem na sala de aula, não tem feito regularmente essa permeação entre o leitor e o texto. Eu queria que a linguagem captasse a atenção do aluno.

Há alguns estudiosos que não concordam com o uso de estrangeirismos. Como a senhora vê o uso de palavras estrangeiras em nosso cotidiano?
Esse uso é natural. O que é imposto é que não é bom. Há casos especiais que eu talvez condene. Mas em outros casos é normal, principalmente nos casos em que uma palavra entra para algo que ainda não tem designação específica em nossa língua. Por exemplo, o verbo deletar. Você pode até usar apagar, mas se você quer dizer que você apagou com um botão, deletar exprime melhor a ideia. A língua que não incorporar nenhuma palavra estrangeira está morta, não é bom. Mas isso deve ser natural, não vir de cima.

Arquivos relacionados Tamanho Assinatura digital do arquivo
60 p3 170 Kb 1bdc7ac161ce335a01db79317dc10916