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Universidade Federal de Goiás

ENTREVISTA: Luma Nogueira de Andrade

Em 08/09/14 14:34. Atualizada em 24/11/14 14:13.

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Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 67 – Setembro – 2014

Entrevista: Luma Nogueira de Andrade

É preciso problematizar questões de gênero nas escolas

Texto: Michele Martins | Foto: Adriana Cristina

“Na verdade, o que queremos não é igualdade, e sim equidade, na medida da diferença de cada um.”

A professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Luma Nogueira de Andrade, buscou na educação e no engajamento social formas de superar as dificuldades sociais, principalmente, o preconceito por ser homossexual. Em 2012, ela se tornou a primeira travesti no Brasil com título de doutora, concedido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), ao produzir uma tese inspirada nas experiências que viveu ao longo dos anos no ambiente escolar. Luma Nogueira, em visita à UFG para participar de uma banca de dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos, aceitou conversar com o Jornal UFG e nos contou sobre sua trajetória de vida e o reconhecimento que tem recebido. Confira!

 

O acesso à educação de pessoas pertencentes à comunidade Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT) ainda é muito difícil no Brasil. O que favoreceu a sua trajetória até se tornar a primeira travesti docente doutora de uma universidade federal?

Temos de considerar o contexto histórico. Muitos homossexuais não tinham oportunidade de ir à escola, principalmente na década de 1980, quando surgiu o surto da Aids e havia a ideia de que a homossexualidade era contagiosa. Foram criados decretos que impediam a presença de homossexuais nas escolas, ou seja, havia um preconceito institucionalizado. Consequentemente, as vítimas de preconceito não tinham acesso ao trabalho, eram totalmente excluídas. Então, elas iam para as ruas e utilizavam o recurso que lhes restava: a comercialização do corpo para sobreviver e existia demanda de muitos homens que as procuravam.

 

Como você conseguiu superar todos os preconceitos e hoje ter o reconhecimento pelo seu trabalho acadêmico?

Hoje estou nessa posição porque existiram pessoas que, apesar da negação institucionalizada, iniciaram uma luta de resistência. Portanto, não importa o espaço que ocupemos hoje, todos nós temos uma dívida com nossos antecessores. Se hoje temos uma pequena abertura no campo da diversidade sexual, é porque existiram pessoas guerreiras que nos abriram essas portas. Elas problematizaram a questão de gênero e fizeram a sociedade refletir sobre essas diferenças segregadas. Não foi fácil e, apesar dessa abertura, ainda é muito difícil, pois, em muitos momentos, não pude me expressar conforme minha escolha de ser do gênero feminino.

 

As conquistas dos grupos discriminados ainda estão no início?

Teve um começo que foi mais doloroso, mas sempre viveremos em um contexto de lutas, porque quem cria as leis é uma camada da sociedade que tende a atender aos seus interesses. Assim, questões de diferença deixam de ser abordadas. A nossa preocupação deve ser a de conquistar espaços. Para um travesti, gay ou lésbica, um obeso, uma mulher, um negro é importante ocupar espaços determinantes para as mudanças na sociedade para, assim, lançarem olhares diferenciados e não o olhar da sociedade ocidental hegemônica. Dessa forma, conseguimos aberturas para mudar o que já está preparado. Achamos que a criação de leis garante a paz e que elas devem ser cumpridas, mas não podemos esquecer que as leis são construções que dizem quem é humano e quem não é humano, pois quem tem direitos é cidadão e quem não tem direito não é. Portanto, os direitos humanos conquistados pelos movimentos sociais são a única forma de quebrar muitas injustiças. Temos de problematizar isso, pois a existência da lei não é garantia de paz, por ser criada a partir de interesses. Na verdade, o que queremos não é igualdade, e sim equidade, na medida da diferença de cada um.

 

No desenvolvimento da sua tese, você questiona como o estudante travesti se move dentro da ordem normativa da escola. Quais conclusões você chegou?

A partir da minha geração, encontramos travestis que têm acesso às escolas, mas não podem expressar toda sua singularidade, ou melhor, a feminilidade não é reconhecida pelos espaços que legitimam a sexualidade. Eu, por exemplo, não tinha o direito de ir ao banheiro como outros colegas tinham. Por conta dessa singularidade, eu não era aceita no banheiro feminino e nem no masculino. Com a minha pesquisa comprovei que existiam homossexuais nas escolas mas eles não eram aceitos em suas diferenças. Mesmo assim vamos resistindo. Atualmente existem mecanismos legais que garantem a abertura para o reconhecimento dessa diferença. Fruto de lutas anteriores. No Ceará, por exemplo, o Conselho Estadual de Educação decretou que todas as instituições de ensino do Estado têm de aderir ao uso do nome social e tratar essas pessoas como elas gostam de ser tratadas, em documentos e nas relações sociais. Hoje, existem muitos dispositivos legais importantes, mas não quer dizer que resolvam a questão. Às vezes, a lei existe, mas há pessoas que preferem escondê-la para que os travestis não possam reivindicar seus direitos. Ainda há muito a ser feito e existem muitos dispositivos legais para que nossa cidadania seja garantida.

 

E quanto ao ambiente universitário?

Não é muito diferente. Os mesmos processos de enfrentamentos e de conquista que passei no ensino básico, passei também no ensino superior, principalmente, com professores que eu pensei que seriam mais compreensivos. Porém, temos de entender também que isso não é só culpa de quem expressa preconceitos. As pessoas são vítimas de processos hegemônicos e conservadores, porque são levadas a pensar de acordo com um modelo pré-existente. Quando não há espaço para produzir uma reflexão, ela só será feita por aqueles que possuem sensibilidade e são solidários com essas questões. As pessoas tendem a reproduzir a educação recebida pela família. Mas é preciso deixar de lado a forma conservadora de pensar. Onde trabalho vejo comentários do tipo: “Olha, agora temos uma professora que é travesti.” “Disseram que um travesti não tem capacidade, que nada!”. O impacto com uma professora travesti é muito grande, porque os alunos chegam carregados de estereótipos. Acredito que a minha presença junto a eles passa a desconstruir esses estereótipos. Por isso a sociedade conservadora tenta fechar as portas para as pessoas com diferenças, porque quando elas entram, elas desconstroem tudo o que foi feito de forma preconceituosa.

 

Você acredita que o ambiente escolar é o mais apropriado para trabalhar essas questões?

Sim. Porque é esse o lugar institucionalizado para a formação de crianças e jovens para a vida em sociedade, então o ambiente escolar é o local primordial onde devem ser tratadas essas questões.

Categorias: Educação Direitos Humanos escolas entrevista

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