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Universidade Federal de Goiás
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Maconha medicinal no Brasil? Pode?

Em 27/09/17 14:03. Atualizada em 27/09/17 15:42.

Comprovação dos efeitos medicinais das substâncias presentes na maconha reacende debate sobre sua proibição

maconha

Fotos: Ana Fortunato

Ascom e Rádio Universitária

Por seus efeitos alucinógenos, o cultivo e o consumo da maconha são proibidos em muitos países, inclusive no Brasil. Mas, a comprovação dos efeitos medicinais das substâncias presentes na maconha, canabidiol (CBD) e tetraidrocanabinol (THC), tem reacendido o debate em todo o mundo sobre sua proibição. Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária decidiu incluir a Cannabis sativa, nome científico da maconha, em sua relação de plantas medicinais. Agora, a planta consta na lista completa das Denominações Comuns Brasileiras (DCB), que serve como base para o pedido de registro de medicamentos.

Isso não significa a liberação do uso, do plantio e da comercialização da Cannabis ou de produtos derivados. Contudo, é a primeira vez que o Órgão reconhece a planta como contendo propriedades terapêuticas. A medida facilita a importação de medicamentos que contenham substâncias presentes na maconha e pode facilitar o registro de novos medicamentos à base da planta. Segundo a Anvisa, pesquisas clínicas também podem ser facilitadas com a decisão.

Para debater o assunto, a Rádio Universitária e a Assessoria de Comunicação da UFG convidaram, nesta edição da mesa-redonda, a professora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás, Renata Mazaro, o advogado especialista na área de saúde, Ricardo Mendonça e o naturólogo Derick Rezende.

Que substâncias a maconha contém?  O que diz a lei em relação ao uso dessa planta?

Renata Mazaro – A Cannabis pode se apresentar em três variedades: sativa, indica e ruderalis. Cada uma tem suas características de quantidades, tanto de CBD quanto de THC, que são os dois canabinoides mais estudados na literatura científica. Essas plantas têm uma característica de distribuição em áreas tropicais e são ricas em ficanabinoides, que são extraídos para uso medicinal e recreativo, este último envolvendo seus efeitos alucinógenos. Como uso medicinal, o nosso foco é no CBD e no THC, que têm eficácia e segurança já bem estabelecidas. Para a medicina, em termos de eficácia e segurança, essas duas substâncias são indicadas para o tratamento de dores crônicas e oncológicas, controle de vômito e convulsões, além de doenças como esclerose múltipla. Já existem medicamentos com essas substâncias, já bem explorados dentro da literatura. Temos hoje o uso dessas substâncias com prescrição compassiva, que é quando o médico já tentou vários tratamentos dentro da literatura médica tradicional e o paciente não teve resposta. Nesses casos o médico pode prescrever essas substâncias. São situações clínicas em que há a possibilidade de eficácia e efeitos adversos, como qualquer outro medicamento.

Ricardo Mendonça – O cultivo e a distribuição da maconha são proibidos no Brasil. Nós não temos uma liberação na legislação brasileira. A Lei n° 11.343, de 2006, estabelece as penas, as formas de criminalização do cultivo, da distribuição, da venda e do fornecimento, com penas duras, de 5 a 15 anos de prisão, em diferentes graus. O que estamos experimentando, e a legislação brasileira está evoluindo, seguindo países como Canadá, Estados Unidos, Inglaterra e Israel, é o uso medicinal da maconha, destinado ao bem-estar de pacientes em tratamentos cujas terapias convencionais autorizadas não surtem mais efeitos. Estamos trabalhando em cima de uma legislação para regulamentar o uso de THC e CBD, para ampliar as pesquisas. O que ocorria é que as pesquisas com maconha para fins medicinais podiam ser realizadas no Brasil, mas com material importado, que tem custo elevado. A gente não tinha condição de cultivar essa planta para nossos próprios estudos, mesmo que fosse regulado e fiscalizado. Em 2014, o Conselho Federal de Medicina reconheceu o uso medicinal para tratamento de epilepsias, especialmente em crianças. Houve então a evolução dessa legislação. A Anvisa, há pouco tempo, trouxe a reclassificação da maconha, retirando-a de uma substância totalmente proibida para uma planta medicinal. Isso causou uma reação imediata do Conselho Federal de Medicina, sobretudo por uma provocação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, que reprovou a reclassificação justamente pelo desconhecimento dos efeitos psiquiátricos que a droga poderia causar, porque ainda estamos em fase de experimentos. Estamos estudando uma nova legislação, em conjunto com os órgãos de regulação de vigilância sanitária de países com legislação mais avançada que a nossa, como o Canadá, para que seja elaborada no Brasil uma legislação específica para a pesquisa, para o uso medicinal, e isso deve ficar a cargo de laboratórios e universidades, com rigoroso controle. Hoje não temos legislação que regule a pesquisa e não temos liberação de plantio, nem para uso medicinal. O que temos é uma série de decisões judiciais que autorizam famílias a promover o cultivo domiciliar para utilização própria, mas decisões esparsas que acontecem justamente pela falta de legislação. Em caso de não haver substância registrada e comercializada no Brasil, as decisões devem ser individualizadas. O Brasil não pode ficar a mercê de um poder legislativo ineficiente que não analisa, que protela, que fica apegado a questões meramente políticas e esquece das necessidades do cidadão. Mas acredito que os avanços que nos acompanham com essa nova legislação fatalmente levarão a uma regulação da utilização da maconha para pesquisa, visto que sua eficiência já foi comprovada.

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Há estudos confiáveis para embasar a liberação da maconha no Brasil? Como tem se dado esse processo?

Derick Rezende – Quando entramos nesse debate estamos falando também de sofrimento familiar. E quando você tem um quadro desse dentro da sua família, você vê a urgência dessa liberação. O preconceito que existe é recente. Há cem anos, em qualquer farmácia do mundo tinha remédios feitos da Cannabis. Os canabinoides extraídos da maconha são indicados para tratar várias síndromes e doenças. Vários desses benefícios ainda não estão comprovados justamente pela dificuldade que os pesquisadores encontram de publicar para comprovar, por conta da burocracia. Há inclusive estudos que falam que o uso recreativo, mesmo o não controlado, é uma atitude quase inconsciente de automedicação, porque mesmo essas pessoas já percebem um bem-estar. Então precisamos colocar luz sobre esse assunto para que deixe de causar gritantes horrores dentro do imaginário coletivo. A maconha é uma planta como qualquer uma e, se usada com sabedoria, é muito benéfica.

Renata Mazaro –  A maconha em si é um problema, porque caímos em outra discussão séria, que é a fitoterapia no Brasil. Temos de garantir a qualidade. O paciente tem de saber que se ele for usar a maconha medicinal tem de ter a garantia da fonte, que ele vai comprar aquela maconha sempre com a quantidade de CBD e THC que ele precisa para o tratamento. As vantagens dependem muito se ela vai controlar o quadro. Se os sintomas do paciente não melhoraram com os anticonvulsivantes que existem no mercado, a opção é ir para o canabidiol, por exemplo. Por quê? Porque ele vai controlar e dar uma condição melhor para o tratamento. Mas qualquer droga, seja de origem vegetal ou sintética, vai ter efeitos adversos. Então é cobertor curto: eu resolvo uma situação e posso agravar outras. O que acontece com o canabidiol é que estamos em processo de entrar no mercado e aí vamos começar a ter mais estudos com pessoas, porque hoje a maioria dos testes foi feito em animais. Os testes numa gama grande de pacientes vão começar mundialmente agora. Vamos começar a estabelecer os efeitos adversos mais frequentes como alterações gástricas e associadas ao sistema nervoso central. Mas essas situações só vão ser delimitadas melhor quando esse medicamento entrar com mais impacto dentro da sociedade. Apesar disso, para alguns pacientes, o tratamento com medicamentos a base de maconha ainda é muito melhor que os convencionais, porque o tradicional não está controlando aqueles sintomas.

Ricardo Mendonça – Nós temos a cultura no Brasil de tratar a maconha apenas como substância alucinógena. Somos um país com culturas dimensionais, até mesmo pelo tamanho do Brasil. E a evolução da legislação, por isso mesmo, é um tanto quanto difícil se nós formos comparar com países de dimensões muito menores. Essa questão da não liberação vem mesmo do uso indiscriminado de forma recreativa, até mesmo porque precisamos inicialmente quebrar paradigmas, entender que agora estamos falando de efeitos medicinais e de bem-estar. Às vezes trata-se de uma droga que não traz a cura do paciente, mas traz condições de melhor sobrevida e bem-estar. A gente não tem de trabalhar apenas com cura. Dependendo do estado do paciente, ele não tem mais cura, mas precisamos dar vida digna a ele, que é inclusive um direito garantido pela Constituição.

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A medicina está preparada para prescrever?

Renata Mazaro – Precisamos lembrar que a maconha induz dependência e tem um sério problema de interação com o álcool, mas não devemos encarar isso como uma bandeira negativa porque vários outros medicamentos, que hoje são vendidos indiscriminadamente, fazem a mesma coisa. A associação da maconha com outras drogas é um problema para o usuário quando ele pede a maconha como medicinal, porque a gente não consegue separar até que ponto o efeito adverso é por conta da maconha medicinal ou dos usos associados de substâncias lícitas e ilícitas. Então, temos de conhecer mais sobre a maconha e abrir essa discussão para a sociedade. O médico precisa sempre estar em contato com o paciente para ter essa habilidade. Muitas vezes o médico não quer prescrever porque não conhece a droga naquele paciente. O que acontece é que a família do paciente vê a reportagem e fica insistindo, e o médico, que muitas vezes não tem aquele conhecimento, vai ficar na defensiva, para se resguardar. E essa é outra discussão: a formação médica no Brasil tem de incluir fitoterapia no currículo porque os representantes farmacêuticos oferecem os fitoterápicos como se fossem drogas naturais e que não fazem mal, a mesma situação dos derivados da maconha. Não vai existir um pacote mágico da maconha, vão existir substâncias com efeitos positivos e negativos. Por isso temos de investir em pesquisa para garantir eficácia e segurança para quem precisa desses medicamentos.

Ricardo Mendonça – A maconha não deve ser prescrita pelo médico indiscriminadamente. Ele irá investigar esse paciente, se ele tem algum problema psicótico anterior, pregresso ou familiar, para que a maconha seja indicada quando for a melhor forma de tratamento, mas o médico é o responsável. A grande preocupação que a gente tem hoje acerca dessa utilização é a de não haver um desvio da finalidade do uso, tanto por prescrição quanto por autorização do poder judiciário. A discussão ampla da legislação deve ser observada justamente por envolver tantos fatores. É preciso que a população saiba que o Brasil possui agências de regulação de medicação rigorosíssimas, criteriosas e que se destacam entre as melhores do mundo. Então, quando esses medicamentos chegam à sociedade é porque são eficazes e seguros.

A discussão sobre a legalização da maconha para uso medicinal deve realmente ser separada do uso recreativo? Ou a discussão deve ser unificada?

Renata Mazaro – Creio que essa discussão deve ser separada, por características do próprio uso. Primeiro, pela urgência, porque as famílias se sentem, por conta da própria legislação, fora da lei. Tem muitos relatos de pessoas que dizem “estou recebendo esse óleo dessa organização, mas eles estão se arriscando pelo meu filho”. Algumas famílias estão se organizando para garantir que outras famílias que não conseguem a planta e não têm a liminar para plantar também tenham acesso, mas elas se sentem fora da lei, quando só querem tratar alguém da família numa situação de desespero. Para uso recreacional, liberar a maconha é sempre liberar a matéria-prima. O que eu vou garantir de matéria-prima para aquele usuário? Hoje o Brasil não tem como fiscalizar a qualidade dessa maconha que vai chegar para o usuário. E quanto isso vai custar? Então essa é outra discussão. Além disso, para um médico é muito mais fácil prescrever o canabidiol, que é uma molécula só, do que  a maconha, que é um fitocomplexo. Se formos trazer as duas discussões para a sociedade, e eu acho que temos de trazer, devem ser discussões separadas. E eu começaria no medicinal por conta do desespero a que essas famílias estão expostas.

Ricardo Mendonça – O brasileiro é movido a paixões, então a discussão conjunta seria muito complicada. Acredito que se a discussão medicinal estiver a frente desmistificará as impressões negativas que o país tem sobre a maconha. Essa regulamentação deve vir por lei e não por decisão judicial. Vejo com muito receio o que será uma decisão futura, com conceitos abertos, que dê margem para o desvio da finalidade que é o uso medicinal, mas acho que a legislação deve avançar e é a partir daí que vamos abrir a cabeça da sociedade com relação a esse assunto. O Brasil só não avançou mais nesse assunto ainda pela dificuldade de acesso ao setor de pesquisa. E é mais fácil fiscalizar liberando para alguns institutos de pesquisa do que indiscriminadamente.

Derick Rezende – Também acredito que a medicinal deve vir a frente, pela urgência, para garantir não só o acesso como também a qualidade. Uma coisa que aconteceu recentemente e é muito triste: foi uma luta para conseguir liberar o Sativex no Brasil e ele chegou às farmácias custando quase R$2,5 mil reais. É um produto a base de uma planta que foi liberado, mas não garantiu o acesso. Se acompanharmos no mundo o histórico dos estados e países que liberaram a maconha, a questão medicinal veio primeiro, principalmente por essa urgência. Depois dessa urgência atendida, quando as pessoas começam a ver que a planta não é o diabo ou uma coisa assim, a população também vai se educando para aceitar aquilo. Naturalmente, os países que já conseguiram avanços na questão medicinal também estão votando o uso recreativo e social, porque a população já foi informada e já consegue lidar com tranquilidade com essa liberdade. A própria Holanda, que foi o país pioneiro no mundo a liberar o uso recreativo, já está repensando para criar uma cultura de medicação. E onde deu certo, o recreativo já está sendo discutido e legalizado de uma maneira madura para todos.

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Teremos sucesso na pesquisa de novos medicamentos?

Ricardo Mendonça – A Anvisa agora está buscando regulamentar o acesso da maconha para pesquisas medicinais. Vários estudos estão sendo feitos para que ela aconteça com muita maturidade e, assim, os avanços virão. Aí estaremos em um novo patamar para descobertas de novas tecnologias com a finalidade de dar à população amplo acesso a elas. Não adianta eu ter medicamentos a base de maconha se eles chegam na farmácia a preços absurdos. Não adianta para o Brasil um desgaste político e social tão grande se esse medicamento não chega a todos.

Derick Rezende – Percebo um caminho interessante, mas dentro do próprio SUS existe a lei de práticas integrativas, em que eles reconhecem as medicinas tradicionais, principalmente a chinesa. Então, o fato de a maconha ter sido colocada na lista de plantas medicinais e já existir essa abertura das práticas complementares da fitoterapia, leva a crer que estamos pavimentando um caminho muito saudável, diferente do resto do mundo. Com todas as pessoas que são “amigas da causa” engajadas, observando também os exemplos de fora, acho que o futuro do Brasil é bem promissor. Isso sem falar do nosso clima, que é ideal, e baratearia o cultivo, porque não precisaríamos gastar com estufas e iluminação especial como os grandes laboratórios europeus, que agregam muito preço por conta disso. Aqui, acredito, vamos conseguir fazer o modelo mais social do mundo.

Renata Mazaro – Temos de trazer isso para dentro dos cursos de Medicina, para eles saberem prescrever. O prescritor no SUS é o médico e essa saída é muito interessante. É uma instrumentalização legal que vamos ter e pode ser utilizada. Precisamos de políticas públicas que invistam em cultivo de qualidade para termos uma matéria-prima com menor valor agregado. Temos de começar a fazer essa análise e trazer a fitoterapia mais intensamente para a educação do prescritor, para criar uma cultura do uso seguro e benéfico. Temos de garantir mais pesquisas, aumentar a comprovação científica, a fim de garantir à população a segurança para utilizar essa planta de forma adequada e ser autossuficiente. E no Brasil temos as farmácias vivas que podem ser aliadas nesse processo.

 

Confira programa da TV UFG sobre o assunto.

Fonte: Ascom UFG

Categorias: Mesa-redonda edição 91