A luta do povo originário
Estudantes indígenas fazem a reflexão crítica da luta em defesa do território
Texto: Carolina Melo
Fotos: Mário Braz
Em tempos de reorganização da agenda ruralista no Congresso, estudantes indígenas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG) traçam dois caminhos de luta em defesa do território: a ocupação dos espaços de poder e a conquista do reconhecimento como sujeitos de direito. As alternativas, embora pareçam impossíveis no espaço político e jurídico cada vez mais conservador, dialogam com o sentimento ancestral de resistência. Para Leomar Wainnê Xerente, Leonilson Rocha Kanela e o xavante Geovane Tseredze, o histórico de extermínio do povo originário faz parte da construção identitária indígena. “Nascer para nós é uma resistência. Já nascemos lutando”, afirma Wainnê.
As tentativas institucionais de barrar o avanço dos direitos territoriais indígenas e, mais do que isso, retroceder em termos de conquistas, são identificadas com base em quatro ações: proposições de aparatos legais; decisões judiciais; sucateamento de órgãos representativos; e criminalização de atores sociais e lideranças. Nenhuma delas é novidade. Remontam ações da década de 1990, mas que encontraram o ambiente propício de efetivação nos dois últimos anos, com o atual projeto político do país. Para se ter ideia, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC-215), que atualmente vem sendo debatida como um retrocesso pelos indígenas, foi criada há 17 anos e só agora é retomada, quando em 2015 a bancada ruralista conseguiu colocar a proposta novamente em pauta.
De acordo com os seus termos, a PEC passa a decisão final da demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Também possibilita a revisão de terrenos já aprovados e garante a indenização aos proprietários. O texto, portanto, suplanta o Estatuto do Índio, em vigor desde 1973, que afirma que o reconhecimento de terras ocorre via decreto do presidente da República. De outra forma, modifica o entendimento da Constituição, segundo o qual as terras ocupadas pelos povos originários pertencem à União e, portanto, não há compensação para os posseiros quando a demarcação é reconhecida, a não ser o ressarcimento pelas benfeitorias realizadas no local.
Recentemente, em julho deste ano, a Advocacia-Geral da União (AGU) anunciou 19 condicionantes que os órgãos do governo federal devem adotar nos processos de demarcação de terras indígenas. Criadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, no ano de 2009, as regras que agora vão balizar as novas demarcações, afirmam, entre outras coisas, que o exercício de direito indígena à terra não impede a instalação pela União, sem autorização prévia, “de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas, vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos”. Entre as condições há ainda a que veda a ampliação da terra indígena já demarcada.
Por sua vez, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criada em 2016, aprovou o relatório final no primeiro semestre de 2017, prevendo o indiciamento de 67 pessoas, entre lideranças comunitárias, antropólogos e servidores públicos. O documento pede também a reestruturação da Funai, a reanálise da demarcação de terras indígenas e dos processos em andamento. Recomenda, ainda, o indiciamento de mais de 90 pessoas, entre lideranças indígenas, religiosas, procuradores da República, técnicos da Funai e defensores dos direitos dos povos originários, por supostos crimes cometidos durante processos de demarcações.
Na avaliação do advogado e primeiro mestre pelo programa de pós-graduação em Direito Agrário da UFG, Leonilson Kanela, da Aldeia Pukanu, em Mato Grosso, e do acadêmico Wainnê Xerente, do povo Akwiê, da aldeia Mrãwahâ, em Tocantins, essa conjuntura negativa acirra e respalda os conflitos por terra. “De certa forma, o histórico dos direitos indígenas é de exclusão, sendo sempre pautado pelas subalternização, subordinações, expropriações. Entretanto, com a série de retrocessos e tentativas de supressão de conquistas, mais terras indígenas são invadidas, mais direitos indígenas violados, mais mortes e chacinas”, afirma Leonilson. Segundo Wainnê Xerente, nesse cenário, não há instrumentos que consigam barrar o avanço da violência contra os povos originários. “Sem demarcações, há mais conflitos. E os conflitos já vêm do poder, do governo, que está do lado do agronegócio e das empresas. É muito triste ver nossas lideranças assassinadas pelos fazendeiros”.
Para eles, o caminho ideal é construção de instrumentos de proteção, sendo necessário, para isso, a ocupação dos espaços de poder. Na interpretação de Wainnê, “enquanto não tiver representantes indígenas nos espaços de decisão e poder, na Funai, entre servidores”, não há perspectiva de melhoras. “Quem tem de falar sobre a realidade indígena é o povo originário”, afirma e sugere, inclusive, um sistema de cotas para indígenas em concursos públicos. “Não é por menos que estamos estudando. Queremos retornar às nossas comunidades e contribuir com a luta”, diz Geovane Tseredze, Xavante do Mato Grosso.
Direitos provisórios?
Além das tentativas institucionais, há ainda uma racionalidade no entendimento do que é ser indígena que reforça a prática do extermínio do povo originário e, por sua vez, contribui para o não reconhecimento de direitos. A avaliação é do advogado Leonilson Kanela, que explica como a formulação colonial se soma aos discursos de supressão do território indígena. De acordo com ele, a ideia de que o índio é primitivo, de que o índio é selvagem, respalda os enunciados políticos e jurídicos que entendem que somente “o índio puro”, intocado, tem direitos.
“A partir do paradigma de assimilação, a discussão sempre gira em torno do fato de que o índio um dia deixará de ser índio e perderá os seus direitos. Todos os projetos de lei que acompanhamos, todas as ameaças, passam por esse debate. Então vamos pensar um pouco o que é ser índio: qual o papel do índio como sujeito de direito? É transitório? Ele vai deixar de ser? Então ele não é um sujeito de direito. Isso está em debate, não está claro a partir dos enunciados políticos e jurídicos”, afirma.
De acordo com Leonilson, os indígenas não foram constituídos historicamente como sujeitos, mas sim como objetos de gestão territorial do Estado. “Em vários períodos históricos isso pode ser demonstrado por exemplo, quando o índio foi mandado para a fronteira para demarcar o território brasileiro e, inclusive, quando é utilizado para resguardar territórios ambientais”. Dessa forma, o discurso ambiental, por exemplo, apesar de utilizado em defesa da causa indígena, contribui para deslocar a compreensão dos povos originários como sujeitos de direito. “Esse movimento da ecologização remonta a ideia do índio primitivo que presta um serviço à sociedade de preservação do meio ambiente. Deixa-se de considerar o índio como tendo direitos e se passa a considerar o meio ambiente como argumento central da demarcação”.
Deve-se, portanto, dissociar o direito indígena de outros argumentos, sejam quais forem, acredita o advogado. “Devemos nos construir e ser reconhecidos como sujeitos de direitos coletivos. Vincular nossos direitos à nossa identidade. Por sermos indígenas, gozamos de direitos diferenciados, direitos à terra, enfim. Caso contrário, a gente sempre vai ficar à mercê da interpretação de que o índio considerado assimilado – aquele que veste jeans, usa celular, faz faculdade – não tem direitos”.
Fonte: Ascom UFG