Qualidade de vida não se vende em cápsulas
Iniciativas da UFG fortalecem popularização e adoção de práticas integrativas que entendem o indivíduo em suas singularidades
Caroline Pires e Kharen Stecca
Saúde e bem-estar não são simplesmente ausência de doenças ou algo que se alcance pelo controle de sintomas com o uso de medicamentos alopáticos. Essa afirmação é o ponto de partida das Práticas Integrativas e Complementares, conhecidas como PIC. Elas são um conjunto de terapias oriundas de diferentes racionalidades terapêuticas que visam o cuidado integral, respeitando as particularidades de cada indivíduo. Grande parte delas possuem origem milenar e são adotadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de terem caráter científico, ainda é comum que as PIC sejam olhadas com desconfiança, não só pelas pessoas em geral, mas também dentro da academia.
Visando quebrar esse paradigma, a Faculdade de Enfermagem (FEN/UFG) passou a oferecer, a partir do mês de agosto deste ano, um ambulatório voluntário de Práticas Integrativas e Complementares. A conquista do espaço vem ao encontro não só do papel da unidade no que se refere a formação de profissionais, mas também da demanda de produção de evidências científicas e popularização do acesso a essas práticas que, pelo custo elevado de algumas delas, são inacessíveis à grande parte da população. A criação do ambulatório só foi possível graças ao estabelecimento de parceria da UFG com a Associação Brasileira de Enfermeiros Acupunturistas e Enfermeiros em Práticas Integrativas (Abenah). A entidade irá fornecer os materiais de consumo e disponibilizar monitores para realizar o atendimento em parceria com bolsistas e docentes da UFG. A princípio serão oferecidas as práticas de Auriculoterapia, Florais de Bach, Reiki, Ynsa e Acupuntura. O atendimento é feito todas as quarta-feiras, das 15 às 17 horas, na Faculdade de Enfermagem da UFG (Praça Universitária). Logo no mês inicial de funcionamento do ambulatório, em setembro, já foram realizados mais de 800 atendimentos.
Acupuntura é uma das práticas oferecidas pelo ambulatório da Faculdade de Enfermagem da UFG (Carlos Siqueira)
A idealizadora do ambulatório e professora da FEN, Daniela Dallegrave, entende ser fundamental o estabelecimento desse espaço na universidade, com a participação de estudantes de graduação, especialmente os que são ligados à saúde. Esses futuros profissionais devem ser alertados para a perspectiva de um aumento vertiginoso da medicalização da vida. Segundo ela, hoje se vive uma realidade em que tudo se torna sintoma de algo que deve ser controlado por medicamentos cada vez mais sofisticados e caros, que não deixam de impregnar os corpos com efeitos colaterais que demandam mais remédios.
Apesar de a adoção das PIC não demandar o abandono do uso dos tratamentos tradicionais, elas são uma oportunidade de quebrar o círculo vicioso do uso de medicamentos alopáticos, aqueles adquiridos em farmácias. “Nas práticas integrativas e complementares, a pessoa é colocada no centro do cuidado. Tudo importa no tratamento: estação do ano preferida, horário do dia, sentimentos frequentes, alimentos que agradam. Enfim, a pessoa é única e deve ser cuidada como tal”, explica a professora. O resultado é que o indivíduo começa a repensar e problematizar seu autocuidado, dando-se conta de que a saúde integral vai muito além do uso de medicação contra uma doença ou alguma indisposição.
Outras iniciativas
Um projeto de extensão do Instituto de Ciências Biológicas (ICB/UFG) também propõe a adoção de práticas integrativas no tratamento em saúde mental. O projeto Integrando é coordenado pela professora Ana Cristina Rebelo e tem o apoio da professora Maria das Graças Nunes Brasil, da área de psiquiatria na Faculdade de Medicina, e do estudante e acupunturista Romes Bittencourt. Há cerca de um ano, os atendimentos estão sendo feitos e, com a divulgação, a demanda cresceu bastante.
A iniciativa começou após a realização, por parte da professora, de uma pesquisa com estudantes do primeiro semestre em diversos cursos como Biomedicina, Educação Física, Ciências Biológicas e Farmácia. A pesquisa avaliou a saúde mental desses estudantes. “Os primeiros dados estão sendo tabulados, mas o que percebemos é que há um nível de ansiedade alterado. Além disso, vários estudantes declararam já ter tido ideações de morte, e estamos falando de estudantes que acabaram de entrar na universidade, o que mostra que em alguns casos eles já estão chegando com problemas de saúde mental”, explica. O questionário cruza diversos dados como percepção da saúde mental, uso de drogas, sono e atividades físicas. A intenção é também cruzar com dados de rendimento escolar e outras questões familiares. “O fato é que, com pouco tempo de pesquisa, ficou claro que é preciso intervir de alguma forma no sentido de melhorar o bem-estar desses estudantes”, explica a professora.
Romes Bittencourt afirma que, com as técnicas, o paciente percebe redução da ansiedade, melhora do humor, da imunidade, entre outros benefícios. “Logo na primeira sessão é possível perceber relaxamento e gradualmente melhora nos sintomas”, afirma. A triagem e o tratamento são realizados às quintas-feiras no ICB 4, no Câmpus Samambaia.
Romes é estudante de Ciências Biológicas e tem formação e experiência com Reiki e Acupuntura. Apesar de o assunto não ser abordado em sua formação, ele vê a experiência como uma forma de crescimento profissional e também de auxiliar pessoas que precisam de apoio. “Comecei a atender muitos estudantes da UFG e isso me despertou para promover o atendimento na universidade”. Os interessados podem procurar o laboratório 6 do ICB 4, às quintas-feiras, às 13h30. Outras dúvidas podem ser sanadas pelo e-mail <integrandopraticas@gmail.com>.
Política no SUS
No ano de 2006 foi criada a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, que passou a regulamentar e adotar 29 PIC aos serviços oferecidos pelo sistema. Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil oferece as práticas em mais de 1.700 municípios e em 7.700 estabelecimentos de saúde. Apesar de realizar mais de 2 milhões de atendimentos anuais nas Unidades Básicas de Saúde, esse número está muito aquém do que poderia ser.
A enfermeira Ana Cecília Coelho Melo, presidente da Abenah, explica que, muitas vezes, os gestores têm a visão de que são necessários grandes centros de atendimento com foco nas urgências e emergências, o que demanda enormes investimentos. “Um desafio que temos é sensibilizar gestores e comunidade para as PIC, pois a maioria desconhece as práticas e valoriza muito o atendimento baseado em diminuição e cessação dos sintomas, conforme a medicina convencional, focada em atendimento médico, exames e medicamentos”, explica a enfermeira. O desafio é também trabalhar a sensibilização dos profissionais de saúde, que muitas vezes desconhecem as práticas integrativas e, em razão disso, usam a crítica negativa, influenciando na decisão dos clientes e demais colegas de profissão.
Outra barreira a ser rompida é o pouco financiamento para pesquisas na área, dadas as grandes proporções de investimentos da indústria farmacêutica no desenvolvimento de drogas. “É natural haver resistência contra tudo aquilo que não se conhece, mas é nosso papel como universidade pública apresentar e convidar a sociedade para conhecer terapias que promovam modos de repensar e problematizar as práticas de autocuidado”, destaca Daniela Dallegrave.
A estudante Ana Carolina Pereira Santos, do 6º período de Enfermagem, já decidiu que irá trabalhar com as PIC após a graduação. “Depois que me foram apresentadas as práticas integrativas e complementares, o encanto foi tão grande que a vontade de saber mais sobre todas as PIC ia além dos muros da universidade. Hoje sou auriculoterapeuta e estou investindo cada vez mais nessa área”, afirmou.
Com relação aos profissionais da saúde que podem atuar nessas práticas, os interessados em trabalhar com as PIC devem procurar o seu conselho profissional para saber quais são os regramentos e os tipos de capacitações necessárias. Não é possível reunir um conjunto de exigências, pois há peculiaridades em cada profissão e em cada prática. Confira o documento que regulamenta as PIC no SUS.
Quebrando a desconfiança
À frente do projeto Saúde Mental é Saúde Integral, a professora Juliana Pulsena, da Faculdade de Nutrição (Fanut) comemora o momento de valorização que o tema tem recebido dentro da Universidade. Com esse ambiente favorável, a professora destaca os resultados que têm alcançado com uma das vertentes de atuação do projeto, que é a criação de um espaço de autocuidado no pátio das Faculdades de Nutrição e de Enfermagem.
Além das ações semanais realizadas nos gabinetes dos professores e nas salas de aula, o carinhosamente chamado de “cantinho do autocuidado” volta a atenção do público para a urgência de se cuidar. Ela reforça a necessidade de que isso seja uma prática constante na vida de cada indivíduo. “A pessoa geralmente procura o cuidado quando está mal e o abandona logo quando melhora, mas a nossa ideia com o projeto é uma promoção da saúde contínua”, explica Juliana.
Práticas integrativas e iniciativas de autocuidado ganham espaço no ambiente acadêmico (Adriano Justiniano)
A professora acredita que a desconfiança dentro da academia com relação às ações baseadas no autocuidado vem sendo superada. A professora lembra que, em 2012, quando apresentou ao Conselho de Ética da UFG sua primeira pesquisa na área, o projeto levou mais de um ano para ser liberado, ao passo que neste ano, em apenas dois meses, a pesquisa sobre Autointenção no Estado Nutricional e Imagem Corporal foi aprovada.
Segundo ela, essa cultura será cada vez mais combatida à medida que os alunos que são formados hoje tenham clareza e propaguem as potencialidades das práticas integrativas e complementares em seus futuros locais de trabalho. Os profissionais de saúde precisam também refletir quanto às suas próprias perspectivas no que se refere ao autocuidado. “Temos diante de nós, ao mesmo tempo, pessoas formadas para cuidar dos outros, sem pensar em si, e indivíduos que querem apenas ser cuidados, também sem pensar em si”, ressalta. Ainda completou que as PIC não devem substituir as práticas convencionais como mais uma busca de ajuda externa apenas, pois se assim for, trocamos 6 por meia dúzia. A ideia é utilizar essas práticas como ferramentas para o autocuidado e o retorno para si. A professora Juliana lembra que os participantes do projeto não recebem nenhum tipo de certificado e os envolvidos são aqueles que acreditam na importância da promoção da saúde mental e integral.
Brena Hasimoto e Jéssica Silva são alunas do curso de Nutrição e refletem essa mudança de paradigma. Ambas destacam que as práticas integrativas são uma necessidade urgente, até mesmo para a sobrevivência dentro do mundo universitário. Jéssica conta que viveu na pele essa angústia. “Eu me vi no meu limite dentro da faculdade e, ao conhecer o projeto, eu comecei a me voltar para mim e dar um tempo para meu próprio cuidado. No projeto aprendi a me cuidar, e isso já valeu todo o curso”, exemplificou.
Fonte: Secom/UFG