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Universidade Federal de Goiás
Retranca quadrinhos visionários

Quadrinhos visionários: uma viagem ao inconsciente

Em 31/10/18 13:04.

Pesquisador da UFG investiga a produção das HQ inspiradas em experiências com psicoativos

Carolina Melo

Qual a origem da imagem? Ela, de fato, surge como uma representação da realidade? Ou, na verdade, diz respeito às experiências transcendentais de nossos antepassados provocadas por estados ampliados da consciência? Tais questionamentos incentivaram o pesquisador Matheus Moura Silva a investigar o processo criativo das histórias em quadrinhos (HQ) a partir de “estados meditativos”. Inserido no espaço da arte visionária, esse tipo de quadrinho retrata as vivências ocasionadas pela expansão da consciência e revelam muito mais do que apenas uma história.

O interesse em pesquisar a produção dos quadrinhos visionários surgiu quando Matheus Moura conheceu a perspectiva teórica do antropólogo sul-africano David Lewis-Willians, que confrontou a História da Arte com o seu estudo sobre as pinturas rupestres do período paleolítico superior. De acordo com o antropólogo, a origem daquelas imagens presentes no fundo das cavernas está muito mais vinculada às alterações da mente, ocasionadas por privação sensorial, do que a uma mera narrativa da vida cotidiana. As alterações mentais correspondem às mudanças temporárias no padrão geral da experiência subjetiva no mundo. No caso dos homens paleolíticos, os estados eram ocasionados, segundo o teórico, pelo ambiente inóspito das cavernas.

“As pinturas eram feitas numa profundidade de 800  a dois mil metros caverna adentro, onde a iluminação era precária e havia inúmeros perigos invisíveis. Qual motivo racional de o indivíduo entrar ali para simplesmente fazer uma pintura?”, questiona Matheus. Ele relata que, de acordo com as investigações do antropólogo sul-africano, aqueles homens enfrentavam os ambientes profundos das cavernas para acessar os estados ampliados da consciência. “Na escuridão, no isolamento total de som e luminosidade, entravam em estados meditativos que resultavam nas pinturas rupestres”, afirma.

Pintura Rupestre

Pintura rupestre do período paleolítico superior 

As imagens, pinturas e histórias em quadrinhos inspiradas em vivências ocasionadas pela alteração da mente ⎼ seja por privação de sentidos ou hiperestimulação ⎼ são associadas, hoje, à arte visionária. Entendida como um fazer artístico ou como um processo criativo em que a produção está condicionada às experiências advindas de estados não ordinários da consciência, a arte visionária busca transcender o mundo físico para retratar as visões alcançadas pela mente. Trata-se de uma arte intrinsecamente vinculada às práticas meditativas e ao consumo de psicoativos. Nesse sentido, a expressão autoral do artista não é tão relevante quanto a representação da experiência transcendental.

Com o propósito de entender o processo de produção das histórias em quadrinhos visionários, Matheus Moura Silva fez uma imersão no universo dos estados ampliados de consciência para, assim, entender o próprio fazer artístico como roteirista de HQ. Para atingir os estados meditativos, utilizou-se da técnica da respiração holotrópica, de sonhos lúcidos e do consumo de ayahuasca, um chá ritualístico indígena. Segundo o pesquisador, tanto o chá quanto a técnica de respiração proporcionam “visões” aos usuários. “Fui autorizado pelo Comitê de Ética, junto com o meu orientador, a usar a bebida indígena e a participar de sessões terapêuticas de respiração. Até onde sabemos, o fato de participarmos das sessões e dos rituais ⎼ e não observar um grupo de estudos ⎼ fez esta ser uma pesquisa inovadora, não só na UFG, mas no Brasil”, afirma.

As visões experienciadas por Matheus, assim como os sonhos, foram transformadas em 16 histórias em quadrinhos. O resultado pode ser conferido no livro Cartografias do Inconsciente (2018), publicado pelo Selo Reverso, e também em sua tese defendida este ano no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG. O pesquisador parte da compreensão de que a imagem é mais do que uma representação da realidade. Inspirado em Lewis-Williams, ele explorou os estados ampliados da consciência para exprimir nos quadrinhos o que há de mais íntimo escondido em seu ser.

 No itinerário, o próprio processo criativo

A pesquisa exploratória de Matheus Moura, que investigou o seu próprio processo criativo a partir de psicotrópicos, baseou-se na autoetnografia. “Eu fui a campo me analisar. Enquanto produzia arte, eu me alimentava teoricamente. Ao mesmo tempo em que criava os quadrinhos, a pesquisa estava sendo feita. O foco era o estado ampliado de consciência”, conta. O pesquisador participou de três sessões de respiração holotrópica e outras quatro para o consumo da ayahuasca. Em duas sessões de respiração e em um ritual de consumo da bebida indígena, ele contou com a participação de seu orientador, o professor da UFG, Edgar Franco. Os sonhos lúcidos foram espontâneos, mas também estimulados por exercícios.

 

Quadrinho visionário

 

A consciência do indivíduo de que ele está sonhando é chamada de sonho lúcido. “É quando você desperta a consciência dentro do sono. Você sabe que está sonhando e vive a experiência dentro dessa percepção”, explica Matheus. Segundo ele, há, inclusive, exercícios para se chegar a esse tipo de sono. Entre as histórias relatadas em quadrinhos durante sua pesquisa, Matheus lembra uma em que, ao perceber que estava sonhando, aceita tomar um veneno de seu interlocutor para acordar. “Se não soubesse que estava sonhando, eu acredito que não teria tomado o veneno”, afirma.

A respiração holotrópica, técnica terapêutica desenvolvida em 1980, é realizada para se atingir estágios avançados da percepção mental, com o intuito de se curar traumas, especialmente do momento do nascimento. “Quando você respira, é muito comum entrar no estado chamado perinatal e revivê-lo”, explica Matheus. Utilizada pela psicologia transpessoal, a técnica foi criada pelo psiquiatra tcheco Stanislav Grof e tem, no Brasil, alguns dos principais representantes mundiais: os psicólogos Álvaro e Dora Jardim, que residem em Goiânia.

Em sua primeira sessão de respiração holotrópica, Matheus Moura acessou as sensações do momento de seu nascimento e relatou a experiência em uma das histórias em quadrinhos. “Meu pé ficou preso na costela da minha mãe. Tivemos que fazer cesária. Foi tão intensa a experiência que, durante a sessão, senti o meu olho embaçado. Depois fui entender que a sensação se devia ao fato de terem aplicado em mim, após o nascimento, o colírio de nitrato de prata”, conta.

 

Quadrinho visionário

 

Foi em um ritual com a bebida indígena ayahuasca, no entanto, que o pesquisador conseguiu superar, de fato, o trauma de seu nascimento, experiência também relatada em uma história em quadrinhos. Neste caso, a visão interior de uma linda e maternal mulher lhe ajudou a suplantar o momento.

 

Quadrinho visionário

 

Todo caminho tem seus desafios

Por ser um roteirista de HQ, e não um desenhista, o grande desafio de Matheus Moura durante a pesquisa de doutorado foi o de elaborar uma nova forma de escrita, condicionada à imagem. “Meu processo de roteiro é tradicional, mas, por ser quadrinho visionário, eu tive de desenvolver uma nova forma de escrita, que poderia chamar de ‘roteiro desenhado’. Ou seja, para suprir a falta de como me expressar por palavras, eu tive de desenhar. A palavra se tornou suporte da imagem”, conta. “Era um desafio passar para os desenhistas, de modo mais fiel possível, as imagens que vi”. No decorrer da tese, os processos criativos dos desenhistas convidados pelo pesquisador para dar forma à imagem também foram esmiuçados.

No desvendamento da produção da arte visionária, Matheus se surpreendeu com o fato de o consumo de psicoativo não fazer do artista um ser mais criativo. “Isso é um mito. Você tem de ser criativo para poder usufruir da criatividade. Do contrário, os psicodélicos não vão ajudar”, afirma. Segundo ele, inúmeros fatores colaboram para o processo criativo, no entanto, em se tratando do consumo de psicotrópicos, tudo depende da experiência e de sua entrega a ela. “Para se ter ideia, no meu último ritual de ayahuasca eu fui com a intenção de receber visões, como uma forma de fechamento da minha pesquisa. Mas a única coisa que senti foi uma dor insuportável de cabeça. Qual benefício pude tirar disso para a produção artística? Nenhum”, conta. Para o pesquisador, no entanto, a criatividade pode ser melhor aproveitada quando são utilizadas as informações advindas dos estados meditativos. “Ao contrário da arte comum, realizada por intermédio da idealização, os estados não ordinários da consciência mostram aquilo que não pode ser imaginado e não existe de olhos abertos. Cabe a nós, artistas, trazer à vista o que é apenas contemplado”, afirma.

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Categorias: pesquisa Edição 99 Arte e Cultura