As representações de Exu: de orixá a egum
Pesquisa aborda sentidos da entidade na história afro-brasileira e nos discursos umbandistas
Gustavo Motta
“Nasci em berço umbandista, sendo que a minha família mantém um centro em Goiânia desde os anos 1970, por isso sempre enxerguei a umbanda como algo muito natural”, afirma o pesquisador Léo Carrer Nogueira. Enquanto discente do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG), o acadêmico desenvolveu uma pesquisa a partir do interesse em descobrir a história por trás do Exu, uma figura que desperta a curiosidade, o imaginário e, por vezes, o medo das pessoas.
“Ele me despertava muita curiosidade, especialmente por ser um protetor valioso, no culto, ao mesmo tempo em que, em parte da sociedade, é considerado um ser maléfico ou demoníaco”. Nesse sentido, o pesquisador teve interesse em fazer um aprofundamento histórico sobre a entidade, desde a forma como ela era retratada entre os povos iorubás, na África, até a sua chegada ao Brasil e a ressignificação nos espaços de credo. Ainda buscou entender a origem da demonização, associada ao Exu.
Léo Nogueira conta que começou a procurar as obras acadêmicas sobre o Exu durante a graduação em História, cursada entre 2002 e 2005. “Na época, eu descobri vários estudos sobre as religiões afro-brasileiras, mas nenhuma delas tratavam do contexto religioso em Goiás. Portanto, comecei a investigar as raízes históricas da religião em Goiânia”. A investigação resultou em uma dissertação de mestrado, defendida no âmbito da UFG, em 2009.
A sua mais recente investigação contou com dois grandes objetivos: reconstituir o caminho que a entidade percorreu, desde a sua origem entre os povos iorubás até o contexto da umbanda; e, especialmente, compreender como surgiu a associação entre o Exu e o demônio. Os iorubás constituem um dos maiores grupos étnicos da África, e estão assentados em Benin, Costa do Marfim, Gana, Nigéria e Togo - países da África Ocidental. Na época do tráfico negreiro, as pessoas em condição de cativeiro, oriundas desse grupo, eram chamadas de “nagôs”.
“Uma das minhas hipóteses avaliava que a demonização do Exu teria ocorrido ainda no continente originário”. A perspectiva de andantes cristãos que entraram em contato com os povos iorubás, entre os séculos 19 e 20, contribuiu para esse fenômeno. Contudo, é necessário um panorama histórico e cultural sobre os cultos de matriz africana. Entre os povos locais, Exu era cultuado como um Orixá, ou seja, como divindade. “As religiões de origem africana são baseadas na ancestralidade, sendo que os próprios deuses são entendidos como ancestrais divinizados”.
A deidade era considerada um ancestral distante, sendo que cada clã mantinha seu culto específico. “Devido à situação precária em que se encontravam os africanos submetidos à escravidão no Brasil, este modelo não pôde ser reproduzido”. Ao longo de séculos de tráfico negreiro, famílias foram constantemente separadas e raízes foram reprimidas. Assim, o candomblé reuniu todos os Orixás ancestrais no mesmo culto. Essa foi a origem da roda dos deuses, o chamado “Xirê”.
A umbanda, por sua vez, tem origem em território brasileiro no século 20. A data atribuída à primeira manifestação desse credo é 15 de novembro de 1908, quando o jovem Zélio Fernandino de Moraes recebeu o Caboclo das Sete Encruzilhadas, em um terreiro na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. “Na umbanda, a questão da ancestralidade permaneceu, mas foi interpretada sob o ponto de vista do espiritismo, assim, as entidades são compreendidas como espíritos de pessoas que passaram pela terra”.
Sendo assim, no Brasil, a figura de Exu começou a sofrer um processo de ressignificação, passando a assumir novas facetas. Na umbanda, ao invés de Orixá, ele se torna um Egum, ou seja, a “alma de um espírito falecido”. Os Eguns correspondem aos indivíduos que pertenceram a classes ou grupos marginalizados da sociedade. Ou seja, são os escravos, indígenas, imigrantes, crianças, mulheres, e malandros. “Nos terreiros, esses grupos se converteram em Pretos-Velhos, Caboclos, Baianos, Mirins, Pomba-Giras e Exus, respectivamente”. Nesse sentido, os Egus representam pessoas que ajudaram a construir a história do povo brasileiro, mas que foram marginalizadas, sendo resgatadas como entidades importantes no credo.
A categorização enquanto Egum (ao invés de Orixá) é uma das novas formas assumidas pelo Exu no contexto tupiniquim. Nesse sentido, passam a conviver, no âmbito dos credos afro-brasileiros, o Exu-Orixá (cultuado pelo candomblé) e o Exu-Egum (reverenciado pela umbanda). Conforme o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) as duas crenças representam as manifestações religiosas que são praticadas por 0,3% da população brasileira.
Demonização
Após a contextualização histórico-cultural, o entendimento sobre as condições étnicas e temporais permitem compreender como se iniciou a demonização do Exu, e como isso repercute no imaginário dos próprios umbandistas sobre a entidade. Léo Nogueira descobriu, após a leitura de escritos dos viajantes que passavam pela região iorubá entre os séculos 19 e 20, que a associação com o diabo se dava porque as características atribuídas ao Orixá-Exu eram consideradas “controversas”.
“Ele era considerado um protetor, mas também era retratado com um deus facilmente irritável, vingativo e que pregava peças em outros Orixás”, pontua. Viajantes europeus e estadunidenses passaram a interpretar as ações da deidade sob uma ótica de malignidade. Entre os andarilhos e missionários, foram selecionadas obras de cinco autores, como Noel Baudin, Samuel Johnson e o Coronel T. Ellis, todas estudadas em seu idioma original, o inglês.
“As obras desses viajantes foram lidas por diversos antropólogos, a exemplo de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, que conservaram a visão demoníaca sobre a entidade”. No âmbito acadêmico, Léo Nogueira destaca que essa visão começa a mudar apenas nos anos 1940, quando os pesquisadores passaram a compreender a malignidade do Exu como construção cristã. Contudo, fora da academia, o imaginário continuou sendo alimentado pela imprensa, por instituições e lideranças de outras religiões.
“Em 1961, o frei católico Boaventura Kloppenburg escreveu um livro intitulado ‘Umbanda - orientação para os católicos’, no qual aponta o Exu como evidência para um suposto culto demoníaco”. Entre 1962 e 1965 foi realizado o Concílio Vaticano II, que contou com a participação de mais de duas mil autoridades eclesiásticas, e, entre os consensos alcançados, foi optado pelo ecumenismo enquanto prática a ser adotada nas relações com as demais religiões. “Após o Concílio, a perseguição católica cessou”, avalia.
Entretanto, o pesquisador relaciona o reavivamento da intolerância com o surgimento, no Brasil, de um segmento evangélico neopentecostal na década de 1970, “que elegeu as crenças afro-brasileiras e o espiritismo como os principais ‘inimigos da obra de Deus’”. Nesse contexto, outras grupos religiosos assimilaram o mesmo discurso. “Hoje, essas igrejas são as principais mantenedoras da demonização, não apenas do Exu, mas das religiões de matriz africana, como um todo”.
Léo Nogueira percebeu que a umbanda tem lidado com esse imaginário de duas formas muito distintas: “em partes, ela tenta negar esse caráter negativo e demoníaco, ao mesmo tempo em que assume outros aspectos desse caráter - basta ver as imagens que encontramos de Exu nas lojas de artigos religiosos, sempre vermelho, com chifres e tridentes”. O pesquisador percebeu que a relação dos próprios umbandistas com o Egum é complexa, dotada de múltiplas facetas e significados.
Interpretações
Entre as obras lidas pelo pesquisador constam publicações de jornalistas, chefes de terreiros, presidentes de centros, e outros autores umbandistas que começaram seus estudos por volta dos anos 1930. “Eles buscavam explicar o que é a religião, quais seus preceitos, entidades, e ainda desejavam explicar a função do Exu nos rituais da umbanda”. Com base nessas obras, Léo Nogueira encontrou cinco interpretações dessa entidade, que fazem parte do imaginário que os umbandistas conservam a respeito do Egum. “São campos discursivos, fragmentados e diluídos no pensamento dos umbandistas, que podem ser encontrados separadamente ou, até mesmo, unidos em uma única fala”. São eles:
Negação do Exu - Nega a entidade como parte da chamada "linha branca e demanda", que consiste em atividades para se curar mazelas e praticar a caridade, e o associa à "linha negra". Tal campo discursivo surgiu, segundo o pesquisador, como um esforço para proteger a religião contra os estereótipos e a associação a um "culto satânico".
Diabo - O Egum assume os atributos do diabo. Nesse sentido, houve um esforço em se associar o Exu aos demônios orientais, enquanto os cultos eram divididos entre a “magia branca” e a “magia negra”, cujos trabalhos eram realizados sem nenhum impedimento de ordem moral. “Essa interpretação visa explicar o Exu por meio do ocultismo, uma crença que veio da França, com base em rituais da Europa pré-cristã”, aponta o pesquisador.
Em evolução - Exu é reconhecido como um “espírito em evolução”. A entidade adquire um aspecto ambíguo, sendo capaz de atuar tanto para o “bem”, quanto para o “mal”. No entanto, à medida que “evolui”, passa a rejeitar as características maléficas. O campo discursivo é influenciado pelo kardecismo, outra tendência europeia que repercutiu na umbanda.
Agente Mágico Universal - Exu é uma força divina que pode ser utilizada pelos seres humanos para atender desejos, positivos ou negativos. A entidade é neutra. A bondade ou maldade é associada ao indivíduo que faz o desejo. A interpretação é relacionada à chamada “umbanda esotérica”, que se apropriou de conhecimentos populares, oriundos de crenças da teosofia, do hinduísmo e do budismo.
Protetor - Exu é um ser protetor, que defende os terreiros e centros contra espíritos malignos, chamados “magos negros”. Conforme essa interpretação, o ente é incapaz de provocar o “mal”. Para os defensores dessa interpretação, “os espíritos que aparecem em terreiros aceitando fazer o ‘mal’ e se dizem ‘Exus’, são os chamados ‘quiumbas’, uma classe de seres ainda sem evolução”, explica o pesquisador.
Fonte: Secom UFG
Categorias: Humanidades