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Universidade Federal de Goiás
Samuel Rufino

PANORAMA

Em 03/05/19 14:37. Atualizada em 03/05/19 14:43.

A OCDE em detrimento da OMC: uma escolha realmente necessária?

Samuel Rufino de Carvalho*

No dia 19 de março de 2019, em seu primeiro encontro com o chefe de Estado estadunidense, Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro assinou um acordo cujas propostas desvelam uma ruptura da postura externa brasileira, marcada principalmente pela atual tentativa de aproximação das nações desenvolvidas. Um dos assuntos mais marcantes do encontro consistiu na pretensão de Bolsonaro de alterar o status de desenvolvimento do Brasil perante a organização Mundial do Comércio (OMC).

O status de desenvolvimento, na OMC, é atribuído por meio da autodeclaração, ou seja, os próprios países se definem como nações desenvolvidas, em desenvolvimento ou menos desenvolvidas. O tratamento que um Estado recebe dos outros membros, portanto, depende de seu nível de desenvolvimento. Os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos usufruem de privilégios concernentes às relações comerciais internacionais, chamados de Tratamento Especial e Diferenciado (TED). Esse conjunto de direitos alcançados pelos países mais pobres é resultado de lutas históricas e de coalizões, eclodidas desde as últimas rodadas do General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt, sigla em inglês), na década de 1970.

O TED, dentre outras garantias, possibilita aos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos: i) maior tempo de implementação dos acordos econômicos; ii) acesso ao Sistema Geral de Preferências (SGP), o qual diminui as tarifas de importações de produtos provenientes dos países mais pobres; e iii) procedimentos diferenciados nos processamentos das disputas comerciais perante o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, caracterizados, principalmente, por maiores prazos no envio dos documentos e pela possibilidade de escolha de painelistas oriundos de países em desenvolvimento.  

O Brasil sempre foi um dos protagonistas da participação do Sul global no Gatt e na OMC e, igualmente, em outras instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU). A intenção dessas coalizões do Sul consistia, no contexto do fim Gatt e início da OMC, em assegurar um Regime Internacional do Comércio que não respondesse somente aos anseios do “clube dos ricos” – hoje caracterizado pela quase totalidade dos países pertencentes à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Bolsonaro, então, nega essa quase-liderança sulista, aproxima-se do “clube dos ricos” e proclama o status de desenvolvimento da nação brasileira, rompendo, em um encontro de alguns dias, com uma tradição de anos.

A justificativa do presidente brasileiro sustenta-se na possibilidade de angariar apoio dos Estados Unidos do ingresso do Brasil na OCDE. Em outras palavras, o país latino-americano está trocando a OMC pela OCDE. Os ganhos da participação brasileira na OCDE não são questionáveis. O Estado conseguirá uma melhor imagem internacional, visto que, ao aderir à organização, comprometer-se-á com uma gama de proposições administrativas, econômicas e sociais, o que pode atrair investimentos externos. Outrossim, ao estar em contato direto com os países mais poderosos economicamente, o Brasil terá voz durante as negociações, o que o possibilitaria acessar barganhas ímpares no sistema internacional.

O que se questiona é a real necessidade de se abdicar dos direitos da OMC, em detrimento da OCDE, sobretudo pelo fato de não ser mandatório que todos os membros da OCDE sejam exclusivamente países desenvolvidos. A Coreia do Sul, o México e a Turquia, países em desenvolvimento, tornaram-se membros da OCDE sem a alteração de seus status.

O encontro dos presidentes brasileiro e estadunidense representou uma negociação com reciprocidade duvidosa. Enquanto o país norte-americano obterá o direito de utilizar a base de Alcântara, somado ao apoio de um dos atores mais relevantes da América Latina, o Brasil espreita a possibilidade de participar de uma instituição, abrindo mão de uma gama de regalias comerciais. O papel brasileiro, além do mais, serviu como uma estratégia estadunidense extremamente engenhosa. Atualmente, o governo de Trump tem como objetivo a promoção de reformas estruturais na OMC – quando não a sua estagnação total. Para tanto, o país lança mão de discursos com vistas a deslegitimar as ações da organização e demonstrar a sua incapacidade de lidar de maneira satisfatória com o comércio global. Dentre as operações engendradas pelos Estados Unidos, encontra-se o veto na escolha dos membros do Corpo de Apelação do OSC. Neste momento, o Órgão conta com apenas dois juízes, necessitando de sete para o seu funcionamento regular. Se não houver futuras nomeações, um dos polos mais importantes de atuação da OMC será paralisado.

A autoafirmação de desenvolvimento pelo Brasil corrobora a retórica reformista contra a OMC. Quando um dos principais defensores dos direitos dos desenvolvidos altera o seu status, cria-se a oportunidade para que se manifestem argumentos contrários ao tratamento diferenciado ou favoráveis à diminuição do número de membros amparados por esse direito. Sabe-se que, historicamente, países como os Estados Unidos não se propõem a defender as necessidades dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, mas sim, procuram novas formas de aumentar suas fatias de ganhos no comércio internacional. A aproximação Bolsonaro-Trump deve acontecer, essencialmente pela relevância dos EUA para a política externa brasileira. No entanto, o princípio internacional da reciprocidade deve ser defendido e reivindicado, como fez o Brasil em muitos outras negociações.

*Samuel Rufino de Carvalho é mestre em Ciências Políticas pela UFG

Samuel Rufino

Fonte: Secom UFG

Categorias: colunistas