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Universidade Federal de Goiás
Matéria esclerose múltipla

A vida com Esclerose Múltipla

Em 26/08/19 12:44. Atualizada em 28/08/19 17:15.

Pessoas que convivem com a doença e profissionais da saúde são desafiados a retardar a sua progressão

Reportagem: Caroline Pires

Produção audiovisual: TV UFG

Podcast: Rádio Universitária

Edição: Carolina Melo e Kharen Stecca

Leia a matéria especial ao som da playlist relacionada ao tema:

Em uma dessas manhãs frias de julho o que se ouve são passos. Seja o arrastar de pés, o sons do solado de tênis ou o ressonar metálico de bengalas tocando o piso avermelhado do estreito corredor de chão vermelho do Hospital das Clínicas da UFG. Cada um ali, há 16 anos ou há 30 dias, caminha em busca de um só o objetivo: aproveitar um dia de cada vez e retardar pelo maior tempo possível o avanço da Esclerose Múltipla em suas vidas.

Em todo o mundo são mais de 2,3 milhões de pessoas acometidas pela doença e mais uma infinidade sofre com sintomas inespecíficos que atrasam o diagnóstico e a possibilidade de retardar o seu avanço. Por isso é tão importante aproveitar o dia nacional de conscientização sobre Esclerose Múltipla, comemorado em 30 de agosto, para conhecer melhor as suas diversas manifestações.

Nesta doença autoimune, as células de defesa do indivíduo passam a identificar a bainha de mielina, uma capa que reveste os condutores neurológicos, como algo que deve ser combatido. A partir disso, o corpo começa a produzir anticorpos contra essa estrutura, provocando uma inflamação que compromete o bom funcionamento do cérebro. Por conta do comprometimento, ocorrem os chamados surtos de esclerose múltipla, que duram mais de 24 horas e têm as manifestações mais variadas, como perda da força muscular, controle da urina, dormências ou neurite óptica, que é uma inflamação do nervo ocular. Os surtos se diferenciam em intensidade, gravidade e sintoma, além disso, as sequelas podem ser permanentes ou não. Um dos maiores desafios para quem tem Esclerose Múltipla é conviver com a possibilidade de desencadear um surto a partir do seu estado emocional. Uma emoção boa ou ruim, assim como uma situação inesperada de estresse pode provocar os surtos.

Esclerose MúltiplaParte do tratamento, a psicoterapia trabalha os conflitos do paciente (Fotos: Natália Cruz)

A neurologista e coordenadora do Centro de Referência e Investigação em Esclerose Múltipla (CRIEM/HC), Denise Sisteroli Diniz, explica que a forma mais comum da doença é a chamada remitente-recorrente, que engloba cerca de 80% a 90% dos casos. Geralmente comum nos primeiros anos da doença, ela provoca surtos que melhoram espontaneamente ou após tratamento e não deixam sequelas, passando muitas vezes despercebidas. O prognóstico depende de como o paciente se tratou, de qual a forma da manifestação e ainda da resposta ao tratamento. “Por ser uma doença imunomediada não se pode falar em cura. Mas é possível alcançar a remissão, que é quando não há mais atividade inflamatória, piora ou progressão da esclerose múltipla”, explicou. 

Um outro desafio enfrentado pelos pacientes é encontrar a medicação adequada para o seu tratamento e a convivência com os efeitos colaterais provocados pelos remédios, além de encontrar terapias complementares que são fundamentais para retardar ao máximo o progresso da doença. Nesse processo, é fundamental o diálogo entre médico e paciente com o objetivo de que a decisão sobre o tratamento seja tomada de forma compartilhada e ponderada. 

Mas o tratamento da Esclerose Múltipla não se limita a relação médico - paciente. No CRIEM, os pacientes são estimulados por fisioterapeutas a retardar a deterioração motora que a doença provoca, uma tarefa bastante desafiadora visto que um dos sintomas da doença pode gerar fraqueza e fadiga muscular. “Como a doença afeta o Sistema Nervoso Central há problemas na condução do impulso nervoso. Então, pelo próprio desuso de certos músculos, são comuns a perda de força e dificuldades de equilíbrio”, explicou Amanda Elis Rodrigues, estudante de mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, na UFG. Segundo a fisioterapeuta, é fundamental não se esquecer da realização de fisioterapia respiratória para fortalecer a musculatura e prevenir também possíveis complicações da Esclerose Múltipla. 

No processo do tratamento que pode durar a vida toda, a psicoterapia tem o papel de trabalhar os conflitos do paciente. A psicóloga Andréia Costa Rabelo atua diretamente com os pacientes do CRIEM e explica que os acometidos pela doença precisam trabalhar os medos, anseios, dúvidas, dores e lutos que o diagnóstico traz. “Nosso papel é trabalhar os conflitos, gerar maior conhecimento de si, auxiliando no processo desencadeado após o diagnóstico, dando suporte emocional para o enfrentamento”, afirmou. 

 

A Rádio Universitária conversou com psicóloga Andréia Costa sobre o comprometimento emocional e psicológico da Esclerose Múltipla e as formas de tratamento na área:

 

Tratamento individualizado 

Os mais democráticos passos, corpos e tons de pele vêm lembrar que por trás das muitas consultas, exames e diagnósticos, que demoram a ser fechados, existe uma pessoa que é única e deve ser olhada sempre na individualidade da progressão da sua doença para alcançar os melhores resultados. Os pacientes atendidos pelo Hospital das Clínicas da UFG são convidados a participar todas as segundas-feiras de encontros presenciais para receberem não só atendimento médico, mas também psicológico e fisioterápico. Apesar das escadas e das limitações do espaço físico, os pacientes seguem firmes em busca do acompanhamento.

Matéria esclerose múltiplaKurt Queiroz: a convivência me permite espairecer das dificuldades 

Kurt Queiroz tem 42 anos e começou a sofrer desmaios há dois anos e meio e, a partir da investigação médica, descobriu a Esclerose Múltipla. Desnorteado após receber o diagnóstico, ele conta que pensou em tirar a própria vida. Mas logo em seguida mudou  para Goiânia com a intenção de ficar mais perto da família. “Estar aqui no Hospital das Clínicas é ótimo e eu consigo espairecer das dificuldades do dia a dia”, afirmou. 

A família também tem sido o apoio de Fernando Pereira Santos, de 45 anos, que sofre com algumas sequelas motoras e cognitivas da Esclerose Múltipla. Ele contou com a ajuda da sua mãe, que o auxiliou a explicar os desafios enfrentados. Ela conta que os primeiros surtos da doença foram diagnosticados como pequenos Acidentes Vasculares Cerebrais. “Quando o diagnóstico verdadeiro do Fernando chegou, não foi só para ele. O diagnóstico da Esclerose Múltipla é para a família toda”, afirmou. 

 

Pesquisa analisa prevalência da doença em Goiânia

A prevalência da Esclerose Múltipla na capital goiana é maior do que em outras regiões do Centro-Oeste, como, por exemplo, Cuiabá e Brasília. A pesquisa realizada pela médica Taysa Alexandria, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde ela UFG, constatou que, enquanto em Cuiabá a prevalência da doença, em 2015, era de quatro casos por 100 mil habitantes e em Brasília de cinco casos, em Goiânia os dados revelaram 22 casos por 100 mil habitantes. A TV UFG entrevistou a médica, que também falou sobre os primeiros sintomas e o momento ideal de se procurar um neurologista. Confira:

 

Desafios na vida pessoal e profissional 

Apesar das dificuldade cotidianas provocadas pela doença, o Instituto de Estudos Socioambientais da UFG conta com dois professores que convivem com Esclerose Múltipla. Maria Geralda de Almeida e Luis Felipe Soares Cherem permanecem superando os entraves diários e se destacando em pesquisa e produção acadêmica. Eles estão na contramão do que geralmente acontece com as pessoas diagnosticadas com a doença. Pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a associação Amigos Múltiplos pela Esclerose (Ame) apontou que o desemprego duplica durante o curso da doença. Além disso, dados coletados, entre abril e novembro de 2017, mostram que 58,9% das pessoas com alta qualificação convivendo com a doença estavam empregadas no momento da entrevista, enquanto no momento do diagnóstico 79% tinham emprego. “A busca pelo diagnóstico precoce é essencial para que, com o tratamento adequado, hajam menos sequelas incapacitantes que possam limitar qualquer âmbito a vida da pessoa com EM, incluindo a parte profissional”, resumiu Gustavo San Martin, fundador da ONG AME. Um agravante a este quadro é o pico de incidência da doença aos 30 anos, geralmente no auge da carreira profissional. 

Matéria esclerose múltipla

Foi exatamente com essa idade que Luis Cherem foi diagnosticado com a doença, após uma queda enquanto realizava um trabalho de campo com estudantes. “Foi um choque porque de um entorse no tornozelo eu fui encaminhado para um neurologista, fiz um exame de medula e logo em seguida tive o diagnóstico”, lembrou. Após o delicado e dolorido exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) e a descoberta de que a doença já tinha causado danos consideráveis na medula e no cérebro, o professor teve ainda que enfrentar a adaptação na cidade de Goiânia, as trocas de remédios e os efeitos colaterais das injeções medicamentosas. “Aos 28 anos, com uma carreira promissora, me deparava com essa situação grave, incurável e progressiva”, contou. 

Luis Cherem conta que o diagnóstico desintegrou toda a realidade que existia e deu início a uma fase que o amadureceu enquanto ser humano. Apesar das dificuldades, o professor está hoje realizando o seu pós-doutorado no Centre Européen de Recherche et d’Enseignement des Géosciences de l'Environnement (CEREGE), na França. “Aqui tenho o privilégio de estudar e trabalhar com projetos que são referência mundial em relação à ciência e à conservação do Meio Ambiente. E conquisto isto apesar da Esclerose Múltipla”, comemorou. Mesmo tendo que lidar com as limitações de experiência humana que a doença provoca, o professor encontra na pesquisa acadêmica e na família seu refúgio. “Amo estudar o que estudo. Amo estar na UFG com meus colegas e alunos. Amo estar com minha esposa e meu filho. Os desafios ficam muito mais suaves porque eu tenho nesses lugares o meu porto seguro”, lembrou. 

Matéria esclerose múltipla"Sempre me lembro que sou é quem tenho Esclerose Múltipla, não é ela que me tem", Maria Geralda

Já Maria Geralda de Almeida, professora da UFG desde 1999, se deparou com os primeiros sintomas da doença também enquanto ministrava aulas e percebeu tremores no maxilar enquanto falava. Apesar das dificuldades com a fala e da perda de confiança com relação ao caminhar e a utilização de escadas, a professora continua com suas atividades de pesquisa, viajando para congressos e ministrando aulas em outra instituições de ensino.  “Sempre me lembro que eu é quem tenho Esclerose Múltipla não é ela que me tem. Então, quem a gerencia e a enfrenta sou eu, e faço tudo para que ela não passe a dominar a minha vida. É uma negociação permanente para ter qualidade de vida. Se eu não vou morrer hoje, como eu posso estar convivendo com ela mais tempo?”, ponderou. 

Maria Geralda divide com Maria Francisca Silva a presidência da Associação dos Portadores de Doenças Neurológicas do HC. O objetivo é seguir lutando para que os pacientes tenham condições cada vez melhores, não só de tratamento e espaço físico, mas também de atividades específicas voltadas para o estímulo do cérebro. 

Em 2006, Maria Francisca Silva passou por seis neurologistas e recebeu o diagnóstico de labirintite e enxaqueca antes de, dois anos depois, finalmente descobrir que tinha Esclerose Múltipla. Depois de descobrir a doença, Maria Francisca passou a estimular o funcionamento do seu cérebro, se debruçando no artesanato, fotografia e produção de poesias. “Eu fiz o curso de Filosofia depois do diagnóstico de Esclerose Múltipla e hoje estou no mestrado em Filosofia Política na UFG. Esse é meu conselho para todos os que descobrem a doença: exercitar o corpo e a mente”, destacou. 

O superintendente do Hospital das Clínicas (HC-UFG/Ebserh), José Garcia Neto, afirmou que com a inauguração do novo bloco de internações no hospital, se necessário, os pacientes serão internados neste espaço, com melhor estrutura. Ainda segundo ele, não há previsão de um novo espaço para o atendimento dos pacientes.

 

Atendimento pelo Sistema Único de Saúde

O tratamento para a Esclerose Múltipla é muito caro e não envolve apenas a medicação. Os custos podem chegar a quase 20 mil dólares por ano o que inviabiliza a manutenção do tratamento por quase a totalidade dos acometidos pela doença. Além do acompanhamento com neurologistas, é preciso atendimento com fisioterapeutas, psicólogos e fonoaudiólogos. Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com a Política Nacional de Atenção ao Portador de Doença Neurológica e oferta 44 procedimentos clínicos e de reabilitação para a doença de forma gratuita. Além disso, são dados gratuitamente diversos medicamentos de alto custo para os pacientes portadores da Esclerose Múltipla. Dados do Ministério da Saúde informam que, em 2018, foram investidos mais de R$ 279 milhões para aquisição de medicamentos para tratamento da doença no SUS.

Laura Félix tem 33 anos, três filhos e não convive com nenhuma sequela. Ela é uma das 15.689 pessoas no Brasil que recebem medicação pelo SUS. No primeiro surto, em meados de 2013, ela perdeu a visão e o equilíbrio, mas pouco tempo depois se recuperou completamente dos sintomas. “Tenho um tio que faleceu em consequência da esclerose múltipla, e foi um choque muito grande para mim e minha família. Mas hoje só tenho a agradecer porque fui muito acolhida pelo Hospital das Clínicas” afirmou. Apesar disso, Laura luta hoje na justiça para ter acesso a um medicamento específico e que não é coberto pelo SUS. “Estou sendo acompanhada há 6 anos e já utilizei três medicamentos, mas, por conta de uma alteração no meu exame, preciso de um remédio que não é oferecido gratuitamente. Como o fornecimento não é feito, tenho que tomar uma medicação não adequada para mim”, explicou. 

Matéria esclerose múltipla

Em abril de 2018 foi aprovada a portaria n.º 10, do Ministério da Saúde, que estabeleceu o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Esclerose Múltipla e que apontou os critérios de diagnóstico, inclusão e exclusão de pacientes e é o norteador das ações que são adotadas pelas Secretaria de Saúde dos Estados e Municípios. Apesar do avanço da oferta garantida de seis medicamentos pelo SUS, há críticas que podem ser feitas a esse modelo.

O presidente da Ong Amigos Múltiplos pela Esclerose (Ame), Gustavo San Martin, afirma que o PCDT da doença no Brasil vai na contramão do que é preconizado tanto pela Associação Brasileira de Neurologia, quanto por entidades internacionais. Segundo ele, o ideal é que o tratamento seja orientado pelo grau de atividade da doença, de forma individualizada, e não pela classificação em utilização de fármacos de primeira, segunda e terceira linha. Além disso, os pacientes com os tipos menos comuns da Esclerose Múltipla não podem se tratar pelo SUS, pois não são contemplados pelo novo protocolo. O resultado disso é que o paciente irá pleitear na Justiça o uso de determinado medicamento, o que caracteriza outro problema, ou seja, a judicialização da Saúde. “É importante ressaltar que esse problema não se aplica apenas à EM, mas é comum a outras doenças como câncer e diabetes, por exemplo”, concluiu Gustavo.

Vamos de mãos dadas

Criada em 2012, a associação Amigos Múltiplos pela Esclerose (Ame) nasceu do sonho de desmistificar e informar sobre a doença, incentivando o diagnóstico precoce. “Nós sabemos o poder da informação e o quanto isso pode influenciar positivamente na vida não só de quem convive com EM mas de todas as pessoas ao seu redor”, afirma Gustavo. Sediada em Guarulhos, a associação conta hoje com 35 mil pessoas que compartilham diariamente suas experiências e conhecimentos sobre a Esclerose Múltipla pelas redes sociais. Em 2018, através das ações promovidas dentro e fora das redes sociais, a Ame alcançou mais de 80 milhões de pessoas.

Fonte: Secom UFG

Categorias: Especial Saúde