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Universidade Federal de Goiás
Empregada Doméstica

A senzala moderna é o quarto da empregada, mesmo em tempos de coronavírus

Em 24/03/20 16:53. Atualizada em 26/03/20 15:09.

Pesquisadoras abordam aspectos da quarentena como um privilégio de raça e classe

Luciana de Oliveira Dias¹ e Rafaela Francisco²

Luciana de Oliveira Dias e Rafaela Francisco

“A Senzala moderna é o quarto da empregada” constatou a historiadora, rapper, ex-empregada doméstica e escritora Preta Rara. Provocadas por esta constatação, buscamos entender um contexto de crise mundial, ocasionada pelo coronavírus (COVID-19), que obriga o isolamento social. Partimos então para a internet, onde encontramos a Preta Rara que nos inspira nesta escrita e encontramos também muitas dicas do que fazer durante a quarentena, como meditar, cuidar da pele, ler livros, buscar autoconhecimento, indicação de séries na Netflix etc. A partir desses dois achados, fomos provocadas a pensar em que medida a quarentena é um privilégio de raça e de classe.

São muitos os questionamentos merecedores de atenção, destacamos dois: 1) A quarentena que visa assegurar o direito mais elementar, o direito à vida, é uma possibilidade para todas as pessoas? 2) Quais os padrões societários que não se dobram a uma pandemia, se mantendo inalterados? E são também muitas as constatações, destacamos duas: 1) As empregadas domésticas, em sua grande maioria negras, continuam lavando, limpando, passando e cozinhando para garantir a seus patrões e patroas uma “quarentena digna”; 2) Uma estrutura colonial de relações sociais é atualizada de maneira eficaz mesmo em situações de profunda crise causada por uma pandemia.

O que se revelou foi que a empatia, da qual tanto se fala, é seletiva e não alcança as empregadas domésticas em suas relações laborais. Inquestionável é que o vírus não seleciona ninguém, todavia sua letalidade atinge as pessoas de acordo com as desigualdades de raça, gênero e classe que são uma imposição social. A seletividade da qual falamos diz respeito a quem tem preservado o direito, ou melhor dizendo, quem tem como financiar os melhores tratamentos, os mecanismos de prevenção e o isolamento social com todos os suprimentos e confortos necessários.

Chamou nossa atenção os casos, noticiados pela imprensa, das empregadas domésticas do Rio de Janeiro e da Bahia que foram infectadas pelo COVID-19. Elas foram infectadas sem terem saído do país e em tempos anteriores à transmissão comunitária no Brasil. Seus empregadores as mantiveram em situação de servidão e elas não tiveram escolha, tampouco seus salários assegurados ou mesmo o direito ao isolamento social em seus domicílios. A perversa seletividade do coronavírus (ou seria da desigualdade estrutural brasileira?) fez com que uma dessas empregadas domésticas infectasse sua mãe, uma idosa de 68 anos. E seguiu-se assim a cadeia de transmissão, eliminando aqueles sujeitos considerados indesejáveis, mas necessários à manutenção de uma hierarquia social racista, machista e classista. 

A falsa democracia racial apresenta-se como mito ao observarmos os enfrentamentos cotidianos das empregadas domésticas, que nestes tempos de pandemia têm que lidar com a difícil decisão de manter seus empregos e salários, em detrimento de sua saúde e de seus familiares. As desigualdades de gênero, raça e classe revelam-se na majoritária presença negra, 65,1%, de acordo com dados do IBGE de 2019, nos precários serviços domésticos. Por uma questão de justiça social e desestruturação de um abismo racial, toda uma lógica de desumanização da população negra deve ser denunciada. Assim como o fez a antropóloga e ativista negra Lélia Gonzalez (1984) ao exigir sanção àqueles que condenam as pessoas negras à “lata de lixo da sociedade brasileira”.

A denúncia deve ser inevitável diante do reconhecimento dos históricos e cruéis processos de construção do imaginário social que toma a mulher negra como “mulata, doméstica e mãe preta”, pensando ainda com Lélia González, que entende essa tríade como determinante e mantenedora das mulheres negras em “seus lugares” inferiorizados e de servidão eterna. Importante destacar a força ativa de um imaginário social que no caso das empregadas domésticas seguem sendo tratadas como “o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas.” (Gonzalez, 1984, p. 230). Dito isto, denunciamos aqui que a senzala moderna segue sendo o quarto da empregada que confina, sem liberar da servidão, até mesmo em temos de pandemia.

1. Luciana de Oliveira Dias é antropóloga, professora associada da UFG e coordenadora do Coletivo Rosa Parks.

2. Rafaela Francisco é mestra em Performances Culturais (UFG) e integrante do Coletivo Rosa Parks.

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos, de inteira responsabilidade de seus autores.

Fonte: Secom/UFG

Categorias: artigo FCS