PANORAMA
Pandemia da Covid-19: antes, durante e depois
*Andréa Freire de Lucena
Antes: Diagnóstico – O que aconteceu?
Como vivíamos até dezembro de 2019? Tínhamos livre fluxo de pessoas, bens e serviços domésticos e internacionais, convivíamos com a desigualdade social e sabíamos da existência de dois sistemas de saúde, público e privado, e que o sistema público tratava a maior parte da população brasileira. De acordo com o IBGE, 27,6% da população brasileira se beneficiam de algum plano de saúde (ALTA..., 2020). O que aconteceu a partir de fevereiro de 2020? A Organização Mundial da Saúde alertou para a pandemia da Covid-19 e recomendou como tratamento eficaz o distanciamento social. A partir desse momento, passamos a conviver com a presença de um vírus de elevada disseminação, de tratamento caro, que não tem remédios capazes de tratá-lo e tampouco uma vacina para evitá-lo.
A sociedade global ficou frente a frente com o seguinte dilema: interesse pessoal versus bem-estar coletivo. Para combater a pandemia, tornou-se necessário sacrificar o interesse pessoal no curto prazo (como ir ao parque ou ganhar dinheiro) em favor do bem-estar da coletividade no longo prazo (como criar condições adequadas de tratamento para a população que garantirá a sobrevivência dos seres humanos). A busca por compreender essa situação contemporânea nos remete ao dilema tragédia dos comuns.
O economista inglês William Forster Lloyd, em 1833, chamou atenção para o que aconteceria se houvesse o uso excessivo de um recurso comum a partir do seguinte exemplo. Os pastores de gado compartilham uma terra comum e cada um deles tem o direito de deixar suas vacas pastarem. Se um pastor aumentar o número de gado na terra comum, pode haver um problema porque ele irá receber novos benefícios para cada animal adicional; todavia, o grupo enfrentará danos comuns. Se todos os pastores fizerem o mesmo, o comum será destruído e todos ficarão sem pastos. O ecologista norte-americano Garrett Hardin, em 1968, asseverou que se os membros de um grupo usufruíssem dos recursos comuns apenas para si e não considerasse os outros, todos os recursos seriam esgotados. Segundo ele, não se pode confiar apenas na consciência humana como um meio de fazer a gestão do comum porque isso favoreceria os indivíduos egoístas (caroneiros) em detrimento dos indivíduos altruístas (HARDIN, 1968).
Durante: Tratamento - O que fazer?
O desafio do momento é fortalecer a ação coletiva por meio da criação de regras consensuais que resolvam o dilema da tragédia dos comuns com a escolha individual no curto prazo pela coletividade, que precisa estar baseada no conhecimento das externalidades positivas de longo prazo. Elinor Ostrom (1990), primeira mulher a receber o Prêmio Nobel de Economia, em 2009, defendeu que a ação coletiva é influenciada pelas instituições e que é possível construir regras que beneficiem à sociedade se forem criadas instituições estáveis por meio da ação coletiva. Todavia, a criação das instituições não garante por si só a ação coletiva. O senso de pertencimento e a identidade, de acordo com Mary Douglas (1998), são necessários para a existência da cooperação. O indivíduo, portanto, pode contribuir para o bem público com generosidade sem o objetivo de obter um benefício próprio. Como? Se ele compreender que a sua sobrevivência só é possível se o outro fizer a parte dele e, para o outro fazer a parte dele, ele precisa fazer a sua parte. Ele, de fato, precisa sentir que, apesar de todos não estarem no mesmo barco, o barco afunda se um desertar.
Depois: Superação - Como queremos retornar?
Muitos têm se preocupado com o “quando” voltaremos para as nossas atividades e poucos têm se preocupado com o “como” voltaremos ou com o “como” queremos voltar. Em um período pós-pandemia da Covid-19, espero que haja a diminuição das fake News, a valorização do conhecimento científico e o fortalecimento de uma sociedade generosa. As redes sociais, como Twitter, Facebook e Instagram, começaram a excluir mensagens mentirosas sobre o coronavírus e algumas unidades federativas brasileiras têm criado mecanismos para coibir a disseminação de notícias falsas. O governo do Ceará, por exemplo, criou uma agência de checagem de notícias, Antifake CE (CAVALCANTE, 2020), e sancionou uma lei que multa em até R$ 2000,00 quem disseminar fake news (HOLANDA, 2020). Cabe destacar que muitas pessoas que se contaminaram com a Covid-19 por acreditarem em fake news têm reconhecido seus erros e começaram a conscientizar as demais pessoas.
Jean Tirole, prêmio Nobel de Economia de 2014, defende que podemos ter o fortalecimento da ciência (VIANA, 2020). O combate às fake news precisa ser feito com um conhecimento baseado na realidade e o conhecimento científico, ao estar baseado em hipóteses verificáveis, pode auxiliar na construção de uma sociedade mais justa. O projeto Covid-19 DivulgAção Científica, coordenado pelo Instituto Nacional de Comunicação da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), sediado na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), foi criado com o objetivo de ser um canal de comunicação confiável sobre o coronavírus e é um bom exemplo de tentativa de se estabelecer maior proximidade com a população (COC/FIOCRUZ, 2020). Outro exemplo que pode ser mencionado é o Modelo Regional para projetar a expansão da Covid-19 em Goiás elaborado pelos docentes do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A universidade de Michigan realizou um estudo sobre 850 conflitos políticos que ocorreram entre 1816 e 1992 e chegou à conclusão de que 75% deles terminaram depois que apareceu um grande choque. Peter Coleman, professor da universidade Columbia, defende que eventos graves costumam aproximar as pessoas e, assim, segundo ele, diminuem a polarização política (NEVES; LACERDA; GARATTONI, 2020), o que reduziria os conflitos e aproximaria as pessoas. Muitas empresas, organizações não governamentais e pessoas têm feito doações e contribuído para diminuir os impactos da crise, na saúde pública e na economia. O CEO da Mapfre Seguros, Luis Gutierrez Mateo, destacou que estamos vivendo em um momento de consciência social (GERAQUE, 2020). Michael Sandel afirma que uma sociedade justa guiada pelo sentimento de comunidade consegue criar uma política do bem comum que, no primeiro momento, pode estar baseada na solidariedade que afirma a interdependência de pessoas que compartilham interesses e que oferecem o que não lhe falta (SANDEL, 2012). Todavia, em um segundo momento, podemos também criar relações baseadas na generosidade, que é a virtude de oferecer o que lhe falta (COMTE-SPONVILLE, 2004).
Os regimes internacionais, que são regras e normas internacionais elaboradas pelos países que participam de organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde, serão fortalecidos em um mundo pós-pandemia? Vai depender das nossas ações hoje. Se nossas ações forem em prol da coletividade, o multilateralismo poderá sair fortalecido porque iremos compreender que problemas comuns devem ter soluções compartilhadas. Todavia, o novo multilateralismo pode ser diferente, ir além da presença de uma organização internacional e caminhar para a existência cada vez maior de uma governança global ativa sobre temas considerados fundamentais para a humanidade. Finalizo com o seguinte trecho de Comte-Sponville (2004, p. 113): “Notemos, para concluir, que a generosidade, como em todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe prestamos ou que servem para designá-la. [...] Mas seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade”. Que consigamos fortalecer dimensões da sociedade e a transformemos em um espaço coletivo cada vez mais generoso.
Referências
ALTA do desemprego tende a agravar problemas no sistema de saúde. Correio do Povo, 03 maio 2020. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/economia/alta-do-desemprego-tende-a-agravar-problemas-no-sistema-de-sa%C3%BAde-1.417699. Acesso em: 03 maio 2020.
CASA DE OSWALDO CRUZ/FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Covid-19: instituições lançam iniciativa de divulgação científica. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-intituicoes-lancam-iniciativa-de-divulgacao-cientifica. Acesso em: 30 abr. 2020.
CAVALCANTE, I. Antifake: governo do Ceará lança agência de checagem de dados e notícias. Disponível em: https://www.seplag.ce.gov.br/2020/04/30/antifake-governo-do-ceara-lanca-agencia-de-checagem-de-dados-e-noticias/. Acesso em: 03 maio 2020.
DOUGLAS, M. Como as instituições pensam. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.
GERAQUE, E. Entrevista: “A humanidade precisa sair melhor da crise”, diz CEO da Mapfre. Estadão, 28 abr. 2020. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,entrevista-a-humanidade-precisa-sair-melhor-da-crise-diz-ceo-da-mapfre,70003284719. Acesso em: 30 abr. 2020.
HARDIN, G. The Tragedy of the Commons. Science, v. 162, p. 1243-1248, dec. 1968.
HOLANDA, C. Deputados aprovam projeto de lei que multa quem propagar informações falsas sobre pandemias no Ceará. O Povo online, 29 abr. 2020. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2020/04/29/fake-news-deputados-aprovam-lei-multa-informacoes-falsas-ceara.html. Acesso em: 30 abr. 2020.
NEVES, E.; LACERDA, R.; GARATTONI, B. O mundo pós-coronavírus. Superinteressante, São Paulo, ed. 415, p. 20-29, maio 2020.
OSTROM, E. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge University Press, 1990.
SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
VIANA, D. Jean Tirole, prêmio Nobel de Economia, aponta saídas para crise. Valor Econômico, 17 abr. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/17/jean-tirole-premio-nobel-de-economia-aponta-saidas-para-a-crise.ghtml. Acesso em: 04 maio 2020.
*Andréa Freire de Lucena é professora Associada da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas (FACE) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Fonte: Secom
Categorias: colunistas