INTEGRIDADE ACADÊMICA
Uma questão de integridade: O Brasil realmente é o número um em recuperados da COVID?
Tatiana Duque Martins*
O Brasil tem batido recordes nacionais em números de infectados diariamente pelo SARS-CoV-2 e em número de mortos. Essa é uma informação alarmante que caiu no “lugar comum” para a maioria da população. Não obstante, ela deveria guiar as ações de contenção do avanço da doença no país, como ocorreu em diversos países do mundo, mas não aqui. Isso porque o Brasil tem um outro recorde: o alto número de recuperados da COVID-19. Os números, que compilo na tabela 1, são incrivelmente maiores que os de qualquer país do mundo. Em comparação com os EUA, o país com o maior número de casos de COVID-19 no mundo atualmente, que soma mais de 3,36 milhões de pessoas com COVID-19, o Brasil tem um pouco mais da metade: 1,88 milhões, mas conta com 20% (dados de 14 de julho de 2020) a mais de recuperados da doença que os EUA!
Indicação de que algo está sendo feito corretamente no Brasil, ou indicação de algo vai mal no método de contabilizar?
Para concluir sobre isso, vamos entender como esses números estão sendo registrados no Brasil e nos EUA. A Organização Mundial de Saúde (OMS) indica desde o início da pandemia, que pacientes devem receber alta quando atenderem a dois requisitos simultaneamente: 1) não apresentarem mais sintomas, nem febre controlada por medicação e 2) testar negativo em dois exames consecutivos do tipo RT-PCR (Reverse transcription polymerase chain reaction) em 24 horas (fonte: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/criteria-for-releasing-covid-19-patients-from-isolation). No entanto, desde 27 de maio, considerando o fato de que muitos países não têm a capacidade de executar os testes na quantidade solicitada para considerar o paciente curado e que na fase de recuperação há uma menor probabilidade do indivíduo transmitir o vírus, a OMS tem indicado duas formas para isso: 1) se o paciente teve sintomas, deve-se contar 10 dias após o início dos sintomas mais 3 dias sem nenhum tipo de sintomas e 2) se o paciente não apresentou sintomas, deve-se contar 10 dias a partir da data em que testou positivo para SARS-CoV-2. Mesmo assim, recomenda aos países que têm condições de realizar os testes, que continue realizando-os da forma indicada para a liberação do paciente.
Nos EUA, então, os critérios para considerar o paciente recuperado envolvem: 1) o paciente não apresentar sintomas nem ter febre controlada por medicamentos por 3 dias; 2) o paciente deve ter demonstrado redução de todos os demais sintomas, incluindo a melhora na capacidade de respiração e não apresentar tosse E 3 )testar negativo em dois testes RT-PCR consecutivos, com 24 horas de intervalo. (fonte: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/disposition-in-home-patients.html ) No Brasil, o Ministério da Saúde informa que são considerados os critérios do teste RT-PCR consecutivo e também o prazo de 14 dias depois de confirmada a infecção. No entanto, como o Brasil não tem efetuado testes na quantidade que deveria, esse número de recuperados é estimado pelo número de internações e o número de óbitos. A rigor, o número de recuperados deveria estar baseado nos testes negativos consecutivos, mas sem testes suficientes (a estimativa é que a testagem no Brasil deveria ser 20 vezes superior), esse número de recuperados reflete o número de casos que, após 14 dias, não evoluíram para óbito e também os casos de pacientes em observação, internados com síndrome respiratória aguda grave, mesmo que não tenham sido testados para identificar a COVID-19. Simplificando, se não foi registrado o óbito, então o paciente é tido como recuperado após 14 dias, independente de sequelas ou do paciente ter passado mais tempo doente (há casos em que o paciente tem 2 a 3 dias de sintomas e outros em que os sintomas duram 30 dias) .
Por que essa forma destorcida de contabilizar o número de recuperados é assunto de integridade? Porque é uma informação que ludibria a maioria da população, que quer enxergar uma luz no fim do túnel e quer retomar sua vida com segurança. Ao informar um alto número de recuperados que, na verdade, é mal estimada, a atenção da população é desviada do problema e as pessoas passam a assumir que o problema está se resolvendo naturalmente. Com isso, há o relaxamento, por parte da população, dos protocolos de segurança, ou seja, começa a haver um desrespeito às regras de distanciamento social, desobediência às normas de higiene e de fechamento das atividades e há um menor interesse em se buscar informações de fontes diversas, a todo o tempo.
Quando os dados são manipulados para destacar os aspecto conveniente e não a realidade, ações que poderiam trazer soluções ao problema perdem a efetividade.
Tabela 1. Número de recuperados por nação com maiores números de casos de COVID-19 (fonte: Center for Systems Science and Engineering da Johns Hopkins University)
*Tatiana Duque Martins é Professora Associada do Instituto de Química da UFG e Coordenadora do Comitê de Integridade Acadêmica – CIA/UFG
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Fonte: Secom UFG
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