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Universidade Federal de Goiás
PORQUE O ESTADO IMPORTA

PORQUE O ESTADO IMPORTA

Em 06/07/21 13:47. Atualizada em 07/07/21 15:24.

Por que o Brasil voltou ao Mapa Mundial da Fome?

Ângela Maria Martins Peixoto*

O Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome em 2014, o que significava ter menos de 5% da sua população exposta à subalimentação e, ao mesmo tempo, se tornar um exemplo mundial no combate à fome. Compreendendo que a fome é antes um problema político, econômico e estrutural da nossa sociedade em função das relações de produção e da concentração de renda, como já nos ensinou Josué de Castro em Geografia da Fome (1984), lograr essa conquista representava colocar o problema da fome como uma prioridade na agenda de formulação das políticas públicas do país. 

Para que houvesse uma queda de 82% no número de brasileiros em situação de subalimentação no período entre 2002 e 2013, as ações do Estado foram primordiais na elaboração de políticas direcionadas à segurança alimentar e nutricional, com destaque para o programa Fome Zero e a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), além do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que foi responsável pela oferta de refeições para 43 milhões de crianças em 2012. (FAO, 2014). 

Nesse contexto, a melhoria dos índices de insegurança alimentar e nutricional no país é decorrente de alguns fatores decisivos, são eles: aumento da oferta de alimentos e da disponibilidade de calorias em 10 anos; aumento da renda dos mais pobres com o aumento real de 71,5% do salário mínimo e a geração de 21 milhões de empregos; e a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), responsável pela elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. (FAO, 2014). Tais aspectos somente evidenciam a correlação entre fome e renda.

No âmbito das políticas públicas é indiscutível o papel desempenhado pelo PAA desde 2003. Como bem destaca a FAO (2014), trata-se de um programa inovador, que promoveu a redução da fome no espaço rural ao comprar os alimentos diretamente dos agricultores familiares e, simultaneamente, atendendo a população em situação de vulnerabilidade social, além da formação de estoques estratégicos de alimentos. 

De 2003 a 2012, os recursos destinados ao PAA estavam em plena ascensão, envolvendo os valores aplicados, o público beneficiário (agricultores e pessoas/entidades atendidas) e a quantidade de alimentos adquiridos, o que contribuiu sobremaneira para a redução acentuada dos índices de insegurança alimentar e nutricional no país como mostram os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgada pelo IBGE em 2004, 2009 e 2013, ou seja, após 10 anos da implementação do programa. Na prática, o PAA permitiu à agricultura camponesa maior obtenção de renda, pois a participação nos mercados institucionais reverberou no fortalecimento dos circuitos locais, como as feiras. Já o público beneficiário recebedor foi contemplado com maior disponibilidade de alimentos em quantidade e qualidade adequadas, consumindo alimentos mais saudáveis. 

Entretanto, a análise institucional do programa revela a sua desestruturação, e a comparação entre os anos de 2012 e 2019 é elucidativa. Em 2012, o PAA recebeu 586 milhões de reais ao PAA e estava implementado em 1.142 municípios brasileiros, correspondendo a 20,5% do total de 5.570 municípios do país, contemplando 115.489 fornecedores. Em 2019, o programa recebeu o menor volume de recursos da sua história, somente 41 milhões, assim apenas 243 municípios foram abrangidos pelo PAA, o que corresponde a 4,4% do total, contemplando 5.585 fornecedores.  (CONAB, 2020)

Com efeito, se em 2004 a segurança alimentar (SA) era 65,1% após dez anos de operacionalização do PAA ela chega a 77,4% com uma diminuição significativa da insegurança alimentar (IA) grave (leia-se fome) de 6,9% para 3,2%, e é por isso que o Brasil havia saído do mapa da fome em 2014. Os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) - 2018 já não sustentam esse quadro, porque o desmonte das políticas sociais é evidente, mostrando que a SA já era inferior ao ano de 2004, atingindo 63,3% e um aumento da IA grave para 5,8%.  Infelizmente os dados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” divulgado pela Rede Penssan em abril deste ano revelam que no mês de dezembro de 2020 o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) estava garantido para os moradores(as) de menos da metade dos domicílios brasileiros, ou seja, 44,8%. Enquanto em 9% deles houve experiência de fome expressa pela IA grave nos três meses que antecederam a entrevista, como pode ser visualizado no gráfico abaixo. Uma porcentagem superior ao ano de 2004, em que a IA grave estava em 6,9%. Em síntese, do total de 211,7 milhões de brasileiros(as) 116,8 milhões conviviam com algum grau de IA. Destes, 43,4 milhões não contavam com alimentos em quantidade suficiente para atender suas necessidades (IA moderada ou grave). Sendo que 19 milhões de brasileiros(as) tiveram que conviver e enfrentar a fome.

Evolução da SA/IA entre 2004 e 2020

gráfico SA

Elaboração: Ângela M. M. Peixoto (2021). 

Fonte: Dados reanalisados para a escala de oito itens, a partir das pesquisas: [1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2003-2004 (IBGE); [2] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008-2009 (IBGE); [3] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2013-2014 (IBGE); [4] Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 (IBGE) e Inquérito VIGISAN (2020).

 

Portanto, os dados de 2020 revelam que no contexto da pandemia da Covid-19, a redução da SA foi ainda mais intensa e abrupta em um espaço de tempo de apenas dois anos, entre 2018 e 2020. Cabe ressaltar que houve um aumento significativo dos níveis de IA leve e moderada, o que significa pautar a perda de emprego durante a pandemia. Mais uma vez é indissociável pautar a fome sem discutir o acesso à renda. Logo, nos últimos dois anos, ocorreu um retrocesso de dezesseis anos quanto ao DHAA. Tudo isso tem mostrado a “gravidade da superposição da crise econômica e crise sanitária em todo o território nacional, sem uma adequada resposta advinda da política pública.” (REDE PENSSAN, 2021, p. 49). 

Infelizmente, a desidratação do programa levou a uma redução da SA e aumento expressivo da IA e, por sua vez, o retorno precoce do Brasil ao Mapa Mundial da Fome, uma realidade cruel para milhões de brasileiros. O que significa que tais programas não podem ficar circunscritos a políticas de governo, sendo urgente a sua transformação em política permanente de Estado, pois em uma situação de crise econômica consolida-se o aniquilamento do PAA, decorrente da intencionalidade inerente ao processo de elaboração e manutenção das políticas públicas.

E mais uma vez cabe reiterar que a estrutura fundiária permanece intocada, concentrada e desigual. Portanto, sabendo que o não enfrentamento da questão agrária é intencional do ponto de vista da atuação estatal, é imprescindível garantir, minimamente, o Direito Humano a Alimentação Adequada, porque a fome ainda persiste. Em se tratando de um problema público, não há outra perspectiva para enfrentar a fome, senão a partir da ação do Estado. 

 

Ângela Maria Martins Peixoto é Doutoranda em Geografia UFG e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho, Território e Políticas Públicas (TRAPPU), vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (LABOTER)

 

Para mais informações

Plataformas de Dados do Observatório do Estado Social Brasileiro

http://obsestadosocial.com.br/

https://observatorio.spatialize.com.br/#/

Canal Porque o Estado Importa

https://www.youtube.com/channel/UCuZDu3jkiPMfxYTmfzVzKWw

 

Referências: 

CASTRO, J. Geografia da fome. 10. ed. Rio de Janeiro, Edições Antares, 1984.

CONAB. Programa de Aquisição de Alimentos. Resultados das ações da Conab em 2012. Brasília, 2013.

CONAB. Programa de Aquisição de Alimentos. Resultados das ações da Conab em 2019. Brasília, 2019.

FAO. Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: um retrato multidimensional – Relatório 2014. Brasília: agosto/2014. Disponível em:<https://www.fao.org.br/download/SOFI_p.pdf>. Acesso em: 8 set. 2015. 

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004/2013. 

IBGE. 10,3 milhões de pessoas moram em domicílios com insegurança alimentar grave». Agência IBGE. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28903-10-3-milhoes-de-pessoas-moram-em-domicilios-com-inseguranca-alimentar-grave>.  Acesso em: 20 set. 2020. 

REDE PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil - Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 2021. 

 

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos e colunas, de inteira responsabilidade de seus autores.

Fonte: Iesa UFG

Categorias: colunistas Iesa