
PORQUE O ESTADO IMPORTA
O adeus ao Bolsa Família e as incertezas do Auxílio Brasil
Diego Pinheiro Alencar e Jaqueline Neves de Oliveira*
Todos os meses, nos últimos 18 anos, milhões de pessoas encontraram-se em agências lotéricas, bancos, caixas eletrônicos, agências dos correios. Encontravam-se para sacar os benefícios do programa Bolsa Família. Encontro que, em 2004, reuniu 5.5 milhões de famílias. Encontro que, em outubro de 2021, reuniu 14,6 milhões de famílias. No mesmo período, o valor médio do benefício oscilou entre R$ 61,00 e R$ 191,00.
Observação: No mês 06/2006 ocorreu o registro do menor valor médio de repasses do Programa Bolsa Família (R$ 61,06), enquanto o valor mais elevado foi registrado em 03/2020 (R$ 191,85). O período posterior ao mês 04/2020 não foi contemplado na amostra, por conta do impacto do Auxílio Emergencial nas famílias beneficiárias).
Os valores em questão se fizeram elementares para a manutenção da subsistência de milhões de brasileiros, tendo em vista que 84,2% dessas famílias beneficiárias encontrava-se em situação de extrema pobreza em outubro de 2021.
A capilaridade do programa contribuiu incisivamente para a redução da desigualdade social em suas diversas dimensões, a exemplo da renda, gênero, educação, dentre outras. Reconhecendo o protagonismo das mulheres na economia domiciliar, empoderou sujeitas das periferias metropolitanas às áreas rurais do semiárido nordestino. Também é inegável o impacto positivo do acesso na renda de comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas. A efetividade do Bolsa Família foi apontada em 2014 como principal ferramenta que retirou o país do Mapa da Fome (ONU, 2014). Com tranquilidade, podemos afirmar que o Bolsa Família oportunizou a mobilidade social.
O projeto de futuro estava posto. A política de transferência de renda não era apenas uma estratégia para subsistência. Por meio das condicionalidades, os Sistemas Único de Saúde e Rede Pública de Educação foram evocados para cuidar das futuras gerações. Cuidados com gestantes e nutrizes, controle de peso, altura e proteção imunológica representaram importante ferramenta no desenvolvimento biológico das crianças brasileiras. O controle de frequência escolar entre crianças e adolescentes propiciou a conclusão da educação básica a milhões de jovens brasileiros. Assim, por motivos óbvios, podemos compreender que o Bolsa Família também contribuiu para a redução do trabalho infantil.
O Auxílio Brasil, programa substitutivo do Bolsa Família, tem como principal elemento narrativo a elevação do valor médio mensal, fato que já foi defendido há tempos pelo Observatório do Estado Social em texto intitulado “A Corrosão Monetária do Bolsa Família”. Entretanto, não podemos negligenciar a preocupação com as entrelinhas do referido projeto, nos pontos que devem ser sujeitos à revisão crítica, a exemplo: o Auxílio Brasil exercerá função de transferência de renda também para instituições financeiras, por meio da possibilidade de crédito consignado. Considerando o perfil de uma sociedade endividada, não é improvável o surgimento do endividamento dos vulneráveis.
- O Auxílio Brasil desconsidera conjunturas estruturais básicas do território nacional e do seu povo. É notória a negligência com as quase 1,8 milhões de famílias extremamente pobres em situação rural. Por meio do § 5º do artigo 14, o projeto apresenta que “o beneficiário deverá comprovar o percentual mínimo de entrega de alimentos, nos termos do regulamento, sob pena de não ser mais elegível para o Auxílio Inclusão Produtiva Rural” (BRASIL, 2021). A proposta em questão torna-se capciosa por se tratar de um país que mês a mês vem apresentando elevação dos indicadores inflacionários da cesta básica.
- Em relação à população urbana, o programa negligencia a erosão da qualidade de vida da população, como, por exemplo, no caso da população em situação de rua. É desconsiderado que entre 08/2012 e 08/2021 ocorreu crescimento 19 vezes de famílias cadastradas que não têm um domicílio para morar (MDS. 2021). É imprescindível salientar as especificidades desse grupo populacional. Como já analisado pelo Observatório do Estado Social, trata-se de um grupo permeado por indigentes.
- O auxílio Brasil não pode ser considerado um projeto para o futuro, tendo em vista que sua duração representa pouco mais de um ano, pois, “curiosamente”, ele estará em vigor apenas até o mês 12/2022. Ressalta-se ainda as incertezas que permeiam a fonte de recursos orçamentários para o financiamento e continuidade do referido programa (BRASIL, 2021b).
É, portanto, com angústia que o Observatório do Estado Social Brasileiro registra o fim de um dos programas que dava sentido ao Estado Social Brasileiro.
Referências
BRASIL. Medida Provisória Nº 1.061 de 9 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.061-de-9-de-agosto-de-2021-337251007. Acesso em: 02/11/2021.
BRASIL. IOF não deve financiar o Auxílio Brasil em 2022, diz secretário. Brasília: EBC, 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-09/iof-nao-financiara-auxilio-brasil-em-2022-diz-funchal. Acesso em 02/11/2021.
Ministério do Desenvolvimento Social – MDS. Relatório das Informações Sociais. Brasília: MDS, 2021. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/data3/data-explorer.php. Acesso em: 02/11/2021.
Organização das Nações Unidas – ONU. Brasil em Resumo. Brasília: FAO, 2014. Disponível em: https://www.fao.org/brasil/fao-no-brasil/brasil-em-resumo/pt/. Acesso em 02/11/2021.
* Diego Pinheiro Alencar é Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Professor de Geografia no Instituto Federal Goiano – Campus Iporá
* Jaqueline Neves de Oliveira é Arquiteta e Urbanista pela PUC-GO. Mestranda em Geografia pela Universidade Estadual de Goiás
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Fonte: Secom UFG
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