
PORQUE O ESTADO IMPORTA
A geopolítica por trás do conflito na Ucrânia
Camilo Pereira Carneiro*
A questão da Ucrânia fez o mundo reviver um cenário típico do período da Guerra Fria (1947-1991). Os interesses dos EUA em conter a Rússia (estratégia que remonta a teoria do Rimland, de Spykman) e a cobiça pelo mercado europeu de gás são o pano de fundo desta questão geopolítica. Elementos que têm se mostrado ausentes no debate veiculado nas mídias e nas redes sociais do Brasil, onde tem vigorado a opinião de leigos, falsos especialistas e jornalistas sem formação acadêmica no tema. Uma verdadeira avalanche de estereótipos e argumentos estapafúrdios. A temática é complexa e requer a análise de diferentes elementos históricos e geopolíticos.
A tensão entre Rússia e Ucrânia aumentou em razão da oposição russa à possibilidade da entrada da Ucrânia na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). A OTAN é uma aliança militar liderada pelos Estados Unidos, que conta hoje com 30 membros, entre eles o Canadá e diversos países europeus. Foi criada em 1949 para combater a expansão da União Soviética e do comunismo após a Segunda Guerra. A OTAN é uma clara ameaça à hegemonia da Rússia em sua área de influência no leste da Europa. Seus membros abrigam bases usadas por tropas estadunidenses e mísseis direcionados ao território russo. Nos últimos anos, Putin chegou a pedir ao Ocidente que a OTAN não se expandisse para o leste, sobretudo para a Ucrânia, mas não foi atendido. Ainda que não faça parte da OTAN, a Ucrânia recebeu consultoria militar da entidade.
Em meio a este cenário, em 2014, após um referendo, a Rússia anexou a península da Crimeia, território ucraniano estratégico por abrigar a base naval de Sebastopol, usada pela Rússia após o fim da União Soviética (1991). Cabe ressaltar que a Crimeia é um território com mais de 70% de população russa (conquistado em 1783 pelo Império Russo, viria a ser transferida da Rússia para a Ucrânia em 1954, quando ambas compunham a União Soviética).
Os laços históricos, econômicos, políticos e sociais entre Ucrânia e Rússia são profundos. A maior parte da Ucrânia atual foi incorporada ao Império Russo no reinado de Catarina II (1762-1796). No decorrer da revolução russa, nacionalistas ucranianos chegaram a proclamar uma república independente (1917-1920), logo dissolvida com a criação da União Soviética (1922). Separados há 30 anos (desde o fim da União Soviética, em 1991), os dois países possuem idiomas muito parecidos, compartilham a religião ortodoxa, além de abrigarem muitas famílias mistas. Atualmente, a Rússia é o principal parceiro comercial da Ucrânia, sendo o primeiro destino das exportações ucranianas e o segundo país no ranking das importações, atrás apenas da China. Por tais fatos, a Rússia teria razões para não permitir uma aproximação da Ucrânia com a União Europeia, braço econômico da OTAN, segundo o prof. Yann Richard, do Instituto de Geografia da Sorbonne. Não obstante, em 2014, foram firmados acordos de associação da UE com a Geórgia, a Moldávia e a Ucrânia (três países da zona de influência russa) e o Parlamento Europeu aprovou uma resolução reconhecendo a perspectiva europeia deste três Estados.
Apesar dos laços entre Ucrânia e Rússia, o governo do presidente Volodymyr Zelenskyy (um ex-ator, comediante, inexperiente na política) trabalha da direção de uma aproximação da Ucrânia com a União Europeia, com os EUA e a OTAN. Marionete dos Estados Unidos nas manobras que resultaram no conflito entre Rússia e Ucrânia, Zelenskyy foi usado na estratégia da guerra híbrida, uma combinação de revoluções coloridas (como a revolução laranja, ocorrida na Ucrânia entre 2004 e 2005), ataques cibernéticos, manipulação midiática e retaliações econômicas. Estratégia usada com o intuito de substituir governos que não estão alinhados aos interesses dos Estados Unidos.
Por fim, o elemento chave por trás do conflito é o aumento do fornecimento de gás russo para a Alemanha, o que fortaleceria uma aproximação entre Moscou e Berlim condenada por geopolíticos como Mackinder desde o início do século XX. Nesse contexto, a crise na Ucrânia, inflamada pelos EUA, por meio de manobras envolvendo a OTAN e a UE, impediu o início do funcionamento do Nord Stream 2, um gasoduto que passa pelo Mar Báltico, conectando Rússia e Alemanha, projetado para dobrar o fluxo de gás russo para a Europa (a UE compra da Rússia 40% do gás que consome). Justificando ser uma punição à Rússia, por esta ter reconhecido a independência das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, em 22 de fevereiro de 2022, a Alemanha, influenciada pelos EUA, suspendeu a autorização para o gasoduto Nord Stream 2. Os reais objetivos estadunidenses foram revelados quando o presidente Joe Biden afirmou que iria acabar com o Nord Stream 2 em caso de invasão russa à Ucrânia. No atual cenário, com a provável redução do abastecimento de gás para a Europa, outros fornecedores poderão vender o produto, em especial as grandes empresas de energia dos Estados Unidos, que exportam uma pequena parte do que a Europa consome, mas que nos últimos anos vêm aumentando suas vendas.
*Camilo Pereira Carneiro é colaborador do Observatório do Estado Social Brasileiro (IESA-UFG)
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Fonte: Secom UFG
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