
Cecília Maria Bacellar Sardenberg conversa com o Jornal UFG sobre o 8 de março
1. Para o feminismo, o que significa o dia 8 de março?
O Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março, com um dia de celebração e lutas das mulheres, foi por muito tempo visto como tendo origem em um incêndio de uma fábrica em N. York, em 1911, no qual cerca de 130 mulheres operárias morreram asfixiadas e carbonizadas, trancafiadas na fábrica para que não fugissem. Tal fato realmente aconteceu, mas a instituição dessa data originou-se não só nessa, mas em várias outras manifestações trabalhistas de mulheres operárias na Europa e nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX. Conforme nos informou a Profa. Dra. Eva Blay , em um artigo publicado na Revista Estudos Feministas, em 2001, as terríveis condições enfrentadas pelas mulheres operárias, a começar por uma jornada de trabalho de mais 16 horas nas chamadas “sweat shops”, se tornaram foco de uma campanha dentro do movimento socialista. Em agosto de 1910, Clara Zetkin, uma liderança socialista na Alemanha, trouxe para a reunião da Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas a proposta de criação de uma “jornada de manifestações” para denunciar essa situação. Não propunha uma data específica, mas, em tempo, tomou-se o 8 de março (23 de fevereiro no antigo calendário russo) como dia para tal manifestação. Esse dia correspondeu a uma grande manifestação de mulheres operárias na Rússia, contra a fome e a Primeira Guerra Mundial, tornando-se um dos primeiros movimentos que levaram à revolução russa contra o czarismo. Por muito tempo, essa data só era comemorada nos países socialistas, como um dia de celebração da "mulher heroica e trabalhadora." Em 1975, quando da celebração do Ano Internacional da Mulher pela ONU, o 8 de março foi oficializado como Dia Internacional da Mulher, marcado como dia de celebração das conquistas e da definição das lutas das mulheres em prol de sociedades mais justas, mais igualitárias. Não é o que o comércio transformou em dia de dar flores, mas sim uma data que marca uma jornada de lutas contra as desigualdades de gênero que ainda estruturam nossa sociedade.
Veja-se: Blay, Eva. “8 de março: conquistas e controvérsias”, Rev. Estudos Feministas, 9 (2), 2001.
2. O que seria o “feminismo acadêmico”? E por que ele é importante?
A expressão “feminismo acadêmico” vem há tempos sendo comumente utilizada, tanto em referência ao feminismo que se pratica no âmbito acadêmico – por exemplo, nas lutas por maior igualdade de gênero na academia -, quanto à produção teórica feminista propriamente dita. Trata-se de um espaço “político-analítico”, ou para usar da expressão de Sonia Alvarez (2014), de um “campo discursivo de ação feminista”, sendo o campo acadêmico um dos principais. Afirma Donna Haraway, no que concordo plenamente, que a institucionalização dos feminismos na academia é um processo importante para a reprodução e transformação dos feminismos, na medida em que “[...] jovens feministas reinventam o feminismo continuamente em seus trabalhos, em apresentações culturais, nas artes, nos estudos, na política” (2003, p.88-89). Trata-se, pois, de um campo não apenas de formação acadêmica, mas também de ativismo político, certamente bastante necessário em um momento em que o patriarcado, instigado pelo neofascismo, avança em nosso meio.
De fato, no Brasil, como na América Latina como um todo, vivenciamos um momento sui generis: por um lado, constatamos um grande crescimento dos estudos de gênero feministas, com novas abordagens originais, latino-americanas, nascidas da crítica decolonial, e com a criação de cursos de pós-graduação, mestrados e doutorados específicos. Por outro lado, vivemos um momento crítico de ataque por parte dos fundamentalismos religiosos (ou mesmo neofascistas) ao que denominam de ideologia de gênero, que ameaçam, inclusive, pessoas que trabalham no nosso campo de estudos.
Acredito que o fazer feminista nas ciências e na academia não só é possível como se faz necessário, seja como crítica ao androcentrismo nas ciências, seja no tocante à desconstrução das práticas e estruturas patriarcais acadêmicas, ou mesmo na sociedade como um todo. Creio ser equivocado pensar esse campo como algo contrário ao ativismo político, uma vez que ele abre espaço para a reprodução e transformação dos feminismos, para a formação de novas gerações de feministas.
Não se há de negar que há tensões entre os estudos e o ativismo feminista no Brasil (ou na América Latina como um todo), mas as conexões ainda se sobrepõem. Ou seja, o feminismo acadêmico no Brasil, em seu conjunto, permanece como um importante “braço” do ativismo feminista, constituindo-se, ainda hoje, como um dos principais espaços de crescimento do movimento e de formação de novas e novos agentes feministas no país. De fato, tenho mais de 45 anos de vida acadêmica e posso afirmar, com toda convicção, que fazer feminismo acadêmico no Brasil implica lutas constantes para garantir a legitimidade e espaço para o desenvolvimento de nossos cursos, estudos, pesquisas e atividades de extensão universitária (Costa; Sardenberg, 1994; Sardenberg, 1998).
Por certo, isso vem se tornando ainda mais difícil desde o golpe de 2016 contra o Governo Dilma e, mais intensamente, desde janeiro do ano passado (2019), com a chegada ao poder de um governo retrógado, antifeminista, anticientífico, em guerra com as universidades e com o que definem como ideologia de gênero. Por isso mesmo, temos um papel fundamental na luta contra o Estado que ora se volta contra os feminismos e, em especial, contra os estudos de gênero, incentivando uma onda de backlash contra nossas conquistas, contra nosso trabalho ou mesmo contra a nossa existência.
(Parte desse depoimento foi publicado em: Simpósio: cinco questões sobre os estudos de gênero na América Latina Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 70, p.227-253, Maio-Agosto 2020)
Sugiro a leitura do meu artigo sobre o Feminismo Acadêmico no Brasil: História e Memória do Feminismo Acadêmico no Brasil: O Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher- NEIM/UFBA (1983-2020) - https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/42032
3. Hoje lidamos com a discrepância das relações profissionais entre homens e mulheres inclusive no ambiente acadêmico, que se mostra um ambiente mais crítico e reflexivo. Qual seria o caminho para a mudança desse cenário, no âmbito académico?
Não só hoje, mas quase que desde sempre enfrentamos essa discrepância. Só no último século e, mais precisamente, a partir dos anos 1960, é que conseguimos avançar para além do direito ao voto. No Brasil, marcamos várias conquistas no processo da Constituinte, conseguindo construir uma cidadania mais igualitária – mas, lamentavelmente, mais no papel do que na prática. Isso também acontece na academia. Depois de muita pressão, conseguimos finalmente incluir na Plataforma Lattes itens referentes às licenças maternidades, mas, assim mesmo, enfrentando o escárnio de colegas. Mas ainda há muito a avançar. No ano passado, participei de uma banca de tese defendida no PPGNEIM/UFBA, na qual a autora, Iolanda Pinto, discute as desigualdades entre homens e mulheres que chegam a ter Bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq, principalmente as de maior prestígio. Aí os homens são numericamente superiores e mais prestigiados.
Segundo Iolanda Pinto, ter um/a filho/a não afeta igualmente as carreiras de homens e mulheres. As mulheres bolsistas de produtividade da UFBa, assim como as pioneiras laureadas com o Nobel, são um grupo com baixa natalidade. Isso pode ser decorrência das dificuldades enfrentadas por mulheres com maior número de filhos para realizar movimentos migratórios importantes para o desenvolvimento da carreira científica, como a saída do estado e do país para a formação. (2020, p.179)
O caminho para trazer mudanças nesse sentido é sempre o de lutas. A recém criada Rede de Mulheres Cientistas é uma conquista nesse sentido: construirmos uma luta organizada, um batalhão de pressão!
4. Qual mensagem gostaria de deixar nesse 8 de março de 2022?
Confesso que muito me preocupa o momento em que vivemos no país, com o avanço do fundamentalismo religioso em nossas esferas de poder. Há um processo de desmanche das universidades públicas, de desqualificação da ciência, de desvalorização de docentes — produtos do obscurantismo que paira sobre nossa sociedade e que representa uma grande ameaça à continuidade do ensino público, no geral, e dos estudos de gênero e feministas, em especial. Trata-se de um momento de retrocesso no tocante às conquistas no plano dos direitos humanos e sociais — de verdadeira ameaça à democracia —, como também de ameaça ao desenvolvimento da cultura e da ciência e tecnologia. Precisamos articular frentes de batalha para defendermos a continuidade de nossos estudos e defendermos a democracia em nosso país.
Sem esquecer as questões que nos afetam, mais especificamente, enquanto mulheres. Dentre elas, nossa luta no que tange ao enfrentamento da violência de gênero contra mulheres – inclusive a violência política de gênero -, quanto pelos nossos direitos sexuais e reprodutivos. Pela vida das mulheres!!!
5. Poderia fazer uma breve apresentação da senhora?
Sou uma feminista septuagenária, avó de João Henrique, Luana e Luquinha, e de minhas peludas, Lucy e Lolly, com muito amor. Profissionalmente, sou Professora Titular de Antropologia formalmente aposentada pela UFBA, mas ainda na ativa, como professora permanente do PPGNEIM e pesquisadora do NEIM/UFBA. Pratico a antropologia feminista no ensino e na ação.
Fonte: Secom UFG