Avanços nas Ações Afirmativas com a Lei de Cotas
Após dez anos da Lei de Cotas, novo perfil dos estudantes das instituições federais dão a tônica dos resultados alcançados
Reportagem: Tarcízio Macedo
Produção: Carolina Melo, Edmê Gomes, Mateus Salomão, Rosyane Rodrigues, Tarcízio Macedo*
Edição: Edmê Gomes, Felipe Ewald, Serena Veloso, Vanessa Vieira*
Produção audiovisual: TV UFG
Fotos: Alexandre Moraes, Beatriz Ferraz, Carlos Siqueira, Flávio Dutra
Em 2022, a Lei Federal n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012, mais conhecida como Lei de Cotas, completa uma década. Marco legal que dispõe sobre a reserva de vagas em cursos superiores de instituições federais de ensino para minorias historicamente excluídas, a norma passa por um momento decisivo diante da revisão do sistema de cotas no Congresso Nacional, prevista para este ano.
Para ilustrar o impacto da política nacional de cotas na educação e na mudança do perfil de estudantes das instituições públicas brasileiras, o JU (UFRGS), o Jornal Beira do Rio (UFPA), o Jornal da UFG e a Revista Darcy (UnB) colaboraram para produzir esta reportagem especial. Os cenários verificados mostram que as quatro universidades anteciparam a Lei de Cotas ao criarem suas próprias políticas afirmativas anos antes.
As repercussões das decisões dessas instituições estimularam um amplo debate na sociedade brasileira e geraram um efeito que se espalharia por diferentes partes do país, culminando com a consolidação de uma legislação federal sete anos depois. Juntas, as instituições destacam a relevância da manutenção e da expansão das políticas de cotas para que seus resultados produzam efeitos ainda mais positivos na promoção da igualdade racial e na luta contra a segregação e o racismo estrutural que ainda assolam o país.
Políticas de ações afirmativas no Brasil
As ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas desenvolvidas por governos ou iniciativas privadas. Seu intuito é rever desigualdades raciais na sociedade para proteger determinados grupos e minorias excluídos que tiveram direitos negados ou renegados historicamente. Esses grupos podem ser sociais, incorporando diferentes minorias da sociedade (imigrantes e ribeirinhos, por exemplo), ou étnico-raciais, especificamente negros, indígenas e quilombolas.
Para Edilson Nabarro, responsável pela Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF/UFRGS) e militante do Movimento Negro no Rio Grande do Sul há 47 anos, a reserva de vagas é uma medida compensatória que busca reduzir as desigualdades a que são sujeitados grupos vulneráveis que sofreram e ainda sofrem algum tipo de exclusão histórica.
Antes da sanção de uma legislação específica, várias universidades públicas iniciaram um movimento de criação – por iniciativa própria, com base na autonomia universitária, no empenho de suas comunidades e na luta de diversas organizações sociais – de políticas de ações afirmativas a partir da reserva de vagas para candidatos cotistas. Para a professora emérita da Universidade Federal do Pará (UFPA), Zélia Amador, referência do Movimento Negro na Amazônia, as cotas são políticas públicas de ação afirmativa de combate ao racismo e uma forma de repor direitos humanos retirados de determinados grupos historicamente discriminados.
Lei de Cotas
Em 2009, as cotas implementadas por universidades públicas foram alvo de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF). A ação questionava a constitucionalidade da política e levantava dúvidas sobre sua legalidade e eficácia. Apesar das críticas, em 2012 a Suprema Corte brasileira reconheceu as políticas por unanimidade, após entender que a medida contribui para superar distorções históricas de oportunidades.
As vitórias acumuladas no campo jurídico levaram a um efeito dominó. No final de agosto de 2012, o governo federal atendeu a uma demanda histórica do Movimento Negro brasileiro e sancionou a Lei de Cotas. Trata-se de uma legislação que muda a forma de entrada em cursos de ensino superior de todas as universidades, institutos e centros federais brasileiros. A Lei passou a garantir que as instituições reservassem no mínimo 50% das vagas ofertadas a cada ano em seus processos seletivos para alunos cotistas. O texto previa que essas vagas fossem direcionadas aos alunos que concluíram completamente o ensino médio na rede pública e determinava uma nova discussão sobre o tema em 2022.
A metade das vagas reservadas é direcionada a alunos cujas famílias têm renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio por pessoa. Ainda de acordo com a Lei, em número proporcional ao percentual desses grupos em cada estado, parte das vagas da cota racial é preenchida por negros (pretos e pardos) e indígenas. Mais tarde, com a atualização da legislação pela Lei 13.409/2016, que estabeleceu a cota para pessoas com deficiência, o sistema de reserva de vagas para o ensino superior foi consolidado.
Pioneiras, democráticas e inclusivas
Pioneira, a Universidade de Brasília (UnB) fez história em 2004 ao se consolidar como a primeira universidade federal do país a adotar a reserva de vagas para negros. A medida visava reconhecer demandas sociais e mitigar desigualdades históricas. Não havia, à época, mecanismo legal que obrigasse as instituições de ensino superior a destinar vagas em políticas de ações afirmativas.
De autoria da professora emérita do Departamento de Saúde Coletiva Rita Segato e do professor do Departamento de Antropologia José Jorge de Carvalho, o Plano de metas para a integração social, étnica e racial da Universidade de Brasília foi aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) da UnB em junho de 2003. O documento previa reserva de 20% das vagas do vestibular para negros. “A origem das cotas no Brasil foi local. Nós não copiamos modelos. Foi um processo de crítica ao racismo acadêmico no país”, relembra a emérita.
Em 2012, a partir da sanção da Lei de Cotas, a UnB passou a reservar 50% das vagas para alunos de escolas públicas, com base nos critérios de renda e raça. Foram mantidas ainda 5% das vagas exclusivas para negros. A decisão precursora da UnB estimulou movimentos sociais em prol de políticas afirmativas no ensino superior e abriu espaço para que outras instituições seguissem caminho similar. Dione Moura, professora da Faculdade de Comunicação e relatora da proposta aprovada no Cepe, observa que “a vanguarda da UnB teve efeito positivo, histórico e definitivo no debate e na promoção de políticas de igualdade racial e do acesso ao ensino superior”.
Os ventos produzidos no Centro-Oeste rapidamente alcançaram a maior instituição da região Norte do Brasil, a Universidade Federal do Pará (UFPA). A instituição deu seus primeiros passos rumo à adoção de um sistema de reserva de vagas em agosto de 2005, a partir da Resolução n.º 3.361 do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe), que estabelecia normas para o acesso de estudantes egressos da escola pública. A ideia era garantir excelência acadêmica aliada à inclusão social.
Àquela altura, metade das oportunidades de ingresso na instituição passava a ser ofertada exclusivamente a estudantes oriundos do ensino público (Cota Escola), sendo 40% desse total destinado a candidatos autodeclarados pretos ou pardos (Cota Racial, hoje, Cota Pretos, Pardos e Indígenas – PPI). Por uma recomendação do Ministério Público Federal, a adoção efetiva do sistema, entretanto, deu-se apenas três anos depois, em 2008.
Com a aprovação da Lei de Cotas, o sistema de reserva de vagas na UFPA foi consolidado. Entre os 50% das vagas destinadas a estudantes de escolas públicas se estabeleceram percentuais específicos para estudantes negros (de cor preta ou parda), pessoas de baixa renda (Cota Renda), indígenas (Cota PPI) e alunos com deficiência (Cota PcD).
Desde 2019, a UFPA também oferta uma vaga extra em todos os cursos de graduação regulares para Pessoas com Deficiência (PcD). Compõem ainda a política da inclusão na UFPA os Processos Seletivos Especiais para Indígenas e Quilombolas e para estrangeiros em vulnerabilidade socioeconômica (refugiados, apátridas, asilados e vítimas do tráfico de pessoas).
Na esteira da UnB e UFPA, em 2005 houve uma intensa mobilização a favor da implementação de cotas raciais na UFRGS. Entre a comunidade acadêmica, com a parceria dos movimentos negros e indígenas, foram promovidas amplas discussões. Em agosto de 2007, os esforços de mobilização culminaram com a aprovação do Programa de Ações Afirmativas da instituição, a partir da Decisão 134 do Conselho Universitário (Consun), que estabelecera a adoção do programa a partir de 2008.
O programa introduziu o ingresso de alunos de escola pública, incluindo autodeclarados negros, o que conduziu a um novo cenário acadêmico na Universidade. O documento garantia 30% do total das vagas para os candidatos egressos do ensino público, sendo 15% desse percentual reservado aos estudantes autodeclarados negros.
Participante ativa da mobilização estudantil que levou a Administração Central da UFRGS a alterar a forma de ingresso, Eliane Almeida, pós-doutoranda em Educação na Faced/UFRGS, foi uma das pessoas que lutou e ajudou na implementação das políticas de cotas. “Nós fomos ao Ministério Público, fizemos várias comissões. Num primeiro momento, no Consun, a proposta não foi muito bem entendida, e nós chegamos já com a mobilização”, relembra.
Em 2008, os esforços para aprovação de políticas de ações afirmativas também chegaram à Universidade Federal de Goiás (UFG). Criado em 2008, o Programa UFGInclui foi uma iniciativa inovadora de ampliação do acesso e da permanência. Na proposta inicial, a reserva de vagas destinava 10% do total ofertado para estudantes oriundos de escolas públicas, 10% para estudantes autodeclarados negros oriundos de escolas públicas e criava uma vaga adicional em cada curso para estudante indígena e quilombola quando houvesse demanda.
Diogo Marçal, egresso da instituição envolvido diretamente na implementação das cotas, recorda a importância da participação dos estudantes negros, dos coletivos e dos diretórios acadêmicos para a aprovação da política de cotas na UFG. “Se não fossem os estudantes pressionando, talvez até 2012 […] nós teríamos uma política de ação afirmativa tapa buraco”, aponta.
A aprovação da Lei de Cotas levou a adaptações no UFGInclui. Desde 2013, o programa foi direcionado de forma mais específica ao público indígena e quilombola. Atualmente, mantém a criação de vaga adicional para esses grupos, quando há demanda, e reserva 15 vagas no curso de Letras: Libras para candidatos surdos.
Diversidade no perfil de alunos
Em 7 de junho de 2003, a edição impressa do Jornal do Brasil destacou que a UnB tinha apenas 2% de graduandos negros. Em uma década, a política afirmativa mudou esse cenário: no primeiro semestre de 2013, pretos e pardos somavam 31% dos graduandos, segundo o Decanato de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional (DPO/UnB). Seis anos depois, pretos e pardos eram 47,8% dos graduandos (quase 19 mil), de acordo com o Anuário Estatístico 2020.
Na UFPA, dados do Centro de Indicadores Acadêmicos (CIAC/UFPA) mostram que entre 2010 e o primeiro trimestre de 2022 ingressaram na instituição 30.002 estudantes negros (de cor parda ou preta). No ano passado, 3.740 estudantes entraram na UFPA apenas por meio das cotas raciais. Na opinião da professora Zélia Amador, hoje o perfil de estudantes dentro da Universidade mudou graças à reserva de vaga: “[…] se a cota não tivesse sido implementada desde 2008, alguns cursos, como Comunicação Social e Arquitetura, não teriam nenhuma pessoa negra”, comenta.
Na UFRGS, o último vestibular sem cotas, realizado em 2007, contou com a entrada de 3,17% de candidatos pretos e pardos. No ano seguinte, em 2008, já com a política de ações afirmativas da Universidade vigente, esse número quase quadruplicou, chegando à marca de 11,12%, de acordo com dados da CAF/UFRGS. Mais recentemente, no primeiro trimestre de 2020, 41,1% dos alunos de graduação que ingressaram na instituição o fizeram a partir da política de reserva de vagas. Isso equivale a 9.224 estudantes, dos quais 3.237 são vinculados às cotas raciais. Hoje, de acordo com o diretor da CAF, 52% dos alunos da UFRGS são oriundos de escola pública.
Na UFG, o quantitativo de alunos de graduação beneficiados pela Lei de Cotas e matriculados chegou a 7.314 em 2022. Destes, 4.137 estão vinculados em cotas PPI. Do total de estudantes vinculados em cotas PPI, 3.097 declararam a cor parda, 1.035 a cor preta e 5 a etnia indígena. Diogo Marçal viu de perto essa mudança no perfil dos estudantes entre 2003 a 2010, período em que esteve vinculado à instituição, e comenta que havia uma sensação de que todos os estudantes negros eram conhecidos. Em visita feita à UFG em meados de 2013, ele relata: “Fiquei estarrecido com a quantidade de estudantes negros circulando […]. Os corpos que circulavam eram outros na UFG. Não dá para nós negarmos o impacto que foram, no corpo estudantil, as políticas de ações afirmativas e políticas de cotas”, relembra.
Dez anos depois: há o que comemorar?
Embora a política de cotas não resolva o problema racial, para Eliane Almeida elas dão conta de um processo de inclusão para os grupos que são etnicamente excluídos. “Se nós hoje temos uma universidade mais plural, mais diversa, é porque tivemos uma política muito forte que deu certo. Que incomoda, desacomoda, tira algumas coisas do lugar e que existe”, destaca. Para a professora emérita da UFPA, Zélia Amador, a política de cotas faz com que a universidade deixe de ser apenas um reduto da classe média branca e “[...] passe a conviver com outros grupos que historicamente sempre estiveram fora dela”.
Para Edilson Nabarro, os dez anos da vigência da Lei de Cotas permitem festejar os resultados qualitativos e quantitativos, especialmente na melhoria da presença negra na universidade. Os resultados alcançados permitem a celebração do êxito das políticas de ações afirmativas nas instituições de ensino públicas brasileiras, mas ainda existem inúmeros desafios para a consolidação de programas e ações voltados mais efetivamente aos diagnósticos reconhecidos durante os anos.
Em debate nos últimos tempos, a expansão das políticas para os programas de pós-graduação e para o emprego mostram os avanços ainda necessários para a diminuição das desigualdades raciais no ensino e no trabalho. A relação entre as ações de ingresso e permanência na graduação e na pós, assim como as articulações entre as políticas de acompanhamento acadêmico e apoio material, dão a tônica dos desafios institucionais ainda persistentes.
Esse cenário de incentivo e manutenção às políticas de inclusão e ações afirmativas é complexificado com a demanda por diversos mecanismos de fiscalização e controle para fazer frente às tentativas de fraudar o sistema. Nesse sentido, as IFES têm criado estruturas institucionais – como assessorias, comitês e coordenadorias – destinadas ao acompanhamento, à fiscalização e à efetivação da política.
Os números atuais, no entanto, devem ser comemorados, reforça Edilson. “Nós temos que positivar os ganhos até agora alcançados com muito esforço, mesmo que insuficientes. A política ajudou a diversidade na universidade”, finaliza.
* Carolina Melo é jornalista da UFG, Edmê Gomes e Rosyane Rodrigues são jornalistas da UFPA, Felipe Ewald e Tarcísio Macedo são jornalistas da UFRGS, Serena Veloso e Vanessa Vieira são jornalistas da UnB, Mateus Salomão é estagiário da UnB/Revista Darcy
Fonte: Secom UFG
Categorias: destaque Especial Institucional