
INOVA
O Impacto da Inteligência artificial nos rumos da propriedade intelectual
Tatiana Duque Martins Ertner de Almeida*
Mesmo o menos atento pode dizer, sem pestanejar, que a evolução da tecnologia, como a vivemos hoje, é impressionante!
Há um século não era possível imaginar todo o avanço de que hoje desfrutamos no nosso dia a dia, bem como se torna uma tarefa digna de ficção científica fazer previsões de como será nosso modo de vida daqui a um século. São aparelhos, meios de comunicação, meios de locomoção, formas de relações comerciais e de aprendizado, formas de fazer arte e de compartilhar saberes totalmente novos e impensáveis há não tanto tempo atrás.
Nesse contexto, a inteligência artificial tem se apresentado como uma componente fundamental no desenvolvimento da sociedade contemporânea, pois tem auxiliado o desenvolvimento humano em diversos aspectos, trazendo uma maior compreensão, inclusive, da própria inteligência humana, além de estar sendo empregada na melhoria da qualidade de vida das pessoas, por meio da rápida incorporação das novidades em nosso dia a dia.
No entanto, no que se refere às características dessas contribuições, é necessário compreender como elas se inserem no mundo como desenhado hoje, e com isso, compreender como as inovações advindas da utilização da inteligência artificial afetam o nosso sistema de propriedade intelectual, se é que afetam. Vamos entender?
Muitas das soluções que foram alcançadas por meio da inteligência artificial são imbuídas de novidade e possuem valor comercial. Esses dois aspectos são os que melhor caracterizam as inovações que movem as mudanças de comportamento de uma sociedade e, também, são as características que tornam produtos consumíveis e geradores de recursos financeiros para seus proprietários. É aqui que se encontra o problema.
Por haver a necessidade de se qualificar a origem de um novo desenvolvimento e por ele ser monetizado, faz-se necessário normatizar seu reconhecimento e utilização, bem como discriminar regras que inibam abusos. É isso que as regulamentações sobre propriedade intelectual fazem, e é isso que precisam fazer quando a inteligência artificial está envolvida na criação de algo novo.
Os problemas com relação a isso podem não ser tão evidentes, mas vou tentar apresentar aqui os aspectos mais importantes. A primeira característica que temos que considerar da inteligência artificial é que ela é autônoma, e então, pode desenvolver coisas novas sem a intervenção humana. Isso significa que um algoritmo, criado por uma pessoa, mas que se retro abastece de informação, passa a ter uma ação que não é controlada pelo seu criador, muitas vezes, nem imaginada por ele. Ela, então, passa a desenvolver mais e mais produtos. Se o criador da inteligência artifical que se retroalimenta de informação não é o responsável pelas novidades que ela conseguiu entregar, como pode ele ser considerado o criador da novidade, se ele nem sequer pensou nessa novidade?
A lei do direito autoral, em seu artigo 7º (Lei 9610/98) coloca claramente que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio[...] tangível ou intangível, conhecido ou que se venha a inventar no futuro...”, o que caracteriza a criação como uma atividade inerentemente humana, dessa forma, não reconhecendo a inteligência artificial como uma potencial criadora do que quer que seja!
Se não é possível caracterizar a nova criação como uma criação humana, ela também não está à mercê das regulamentações impostas pelas leis da propriedade intelectual em lugar nenhum do mundo, ainda assim existe e está sendo comercializada, e está influenciando o modo de vida das pessoas.
Compreende o problema? Se não é possível discriminar especificamente quem é o criador daquele produto, como será possível impor regras a quem ferir o direito do criador ou regular abusos de usos?
Vamos pensar a hipótese de que, com auxílio da inteligência artificial, modificações em pinturas tenham sido realizadas, por meio de um algoritmo que seleciona formas e cores com base na probabilidade de que combinações agradem a uma parte significativa da população, descartando as combinações que mais provavelmente desagradam, de modo a resultar em uma pintura diferente que qualquer outra utilizada como base, sendo considerada nova. Ela pode estar adequada à proteção por direitos conexos, que cobririam essas relações que a inteligência artificial realizou para chegar nessa pintura única. Quais seriam, então, as dificuldades na proteção? Como atribuir direitos morais a uma entidade que não tem consciência? Como conferir direitos patrimoniais a quem não existe ou impedir abusos de seu uso, se não há um autor interessado?
A figura abaixo mostra que essa já é uma situação real! Nesse exemplo, uma figura foi criada pelo uso da inteligência artificial, resultando numa imagem que entrou para um concurso de arte no mês de Agosto de 2022, no Colorado, Estados Unidos e, qual não foi a surpresa quando a imagem recebeu o primeiro prêmio? E qual não foi a indignação dos demais artistas, ao sentir que sua habilidade não poderia ser páreo para a de um algoritmo?
Não que a imagem criada artificialmente não tenha seu mérito, muito pelo contrário, todos podem admirar sua beleza e reconhecê-la facilmente, mas pode ser que num futuro, essas obras de arte tenham uma classificação que as diferencie em uma outra categoria, como ocorre com desenhos artísticos e fotografias: são artes distintas, reconhecidas e que não são comparáveis entre si.
encia artificial). FONTE: https://www.smithsonianmag.com/smart-news/artificial-intelligence-art-wins-colorado-state-fair-180980703/
O mesmo ocorre se o desenvolvimento for um novo produto ou tecnologia, que encontra proteção por patente. Se não há um inventor, a patente não pode ser concedida e, então, quem terá o direito sobre a criação? E como a lei poderá intervir em caso de abusos?
Na realidade, já vimos isso acontecer no âmbito das patentes, portanto, não é uma pergunta sem respostas. Na época da escravidão, muitas das invenções tinham escravos como inventores, mas suas patentes consideravam o senhor de escravo como o detentor da patente, isso porque o escravo não era reconhecido como cidadão em muitos lugares, e, portanto, não poderia jurar ser a mente criativa responsável por aquele desenvolvimento. Tardiamente, a solução para isso chegou, com a abolição da escravatura.
Para a inteligência artificial, ainda há muita discussão, mas uma das possibilidades é que a inteligência artificial seja de domínio público e, então, licenças do tipo Creative Commons, prevendo limites de uso nos produtos, poderia ser uma solução, a pergunta é: será que é suficiente?
Considerando que o desenvolvimento da inteligência artificial parece estar entrando numa fase em que o controle dos processos pelos humanos está cada vez menor, é impossível predizer.
Como será daqui a 50 anos? E daqui a 30 anos? Alguém pode dizer com certeza? Talvez estejamos enfrentando uma severa mudança de paradigmas nesse momento, que não afeta somente os direitos de propriedade intelectual, mas sistemas econômicos e mesmo nossa organização social.
*Tatiana Duque Martins Ertner de Almeida é professora do Instituto de Química, presidente da Comitê Interno de Internacionalização do IQ, mantém linhas de pesquisa sobre propriedade intelectual, projetos de extensão de PI no ensino básico e coordena o curso de especialização em Propriedade Industrial da UFG
Fonte: Secom UFG