
Metodologia da UFG assegura respeito às cotas raciais em concurso docente
Desde 2019, Universidade garante a reserva de 20% das vagas dos editais
Carolina Melo
“A presença de uma docente negra na Universidade impacta de maneira estrutural e problematiza o racismo institucional. A simples presença de um corpo negro pode levar a uma mudança de cultura e ajudar na promoção de uma universidade mais antirracista”. A fala da professora e secretária de Inclusão da Universidade Federal de Goiás (UFG), Luciana de Oliveira Dias, ilustra o valor do cumprimento da reserva das cotas raciais nos concursos públicos para docentes nas instituições de ensino federais e, consequentemente, da metodologia adotada pela UFG para garantir a entrada de professores do magistério superior, pretos e pardos.
Prestes a completar 10 anos da Lei 12.990/2014 de Cotas em concursos públicos, há apenas cinco anos as universidades federais brasileiras começaram a se organizar para, de fato, cumprirem a reserva de 20% das vagas a candidatos docentes negros. Para se ter ideia, de 2014 a 2017, apenas 3,18% do total das vagas foram destinadas às cotas raciais nos concursos universitários do País, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A região centro-oeste apresentou o maior índice de reserva de vagas, ou seja, 7,86%, mas, ainda assim, muito aquém dos 20% exigidos pela legislação. “O que a gente observou de 2014 a 2017 é uma não efetivação da Lei de Cotas”, afirma a professora Luciana Dias. A interpretação equivocada da lei foi o principal obstáculo.
“Apesar de ser destinado a diferentes áreas de atuação, o cargo de docente de magistério superior é um só: professor de terceiro grau. No entanto, as universidades faziam a distribuição da oferta de vagas considerando as áreas do concurso docente, por exemplo, História, Comunicação, etc, e não do cargo em si. Com isso, o quantitativo por área era em torno de uma ou duas vagas e não permitia a aplicação da reserva”, explica o pró-reitor de Gestão de Pessoas (Propessoas) da UFG, Sauli dos Santos Júnior. De acordo com a legislação, a reserva é aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público é superior ou igual a três. Ao considerar o cargo e não a área de atuação do docente, o número de vagas aumenta consideravelmente e garante a reserva. A mudança na interpretação da lei foi disciplinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 e, a partir de então, as instituições de ensino superior federal tiveram que repensar os editais de concurso docente.
A UFG foi uma das pioneiras na criação de uma metodologia que respeita a reserva de cotas raciais. A sua definição foi “um rito puramente burocrático", segundo o pró-reitor Sauli dos Santos, e garantiu o respeito à legislação. A Universidade apresentou à comunidade acadêmica os novos critérios adotados nos concursos para docentes da carreira de magistério superior por meio de ofício circular, que também informou sobre a adequação às regras para a reserva de vagas às pessoas com deficiência (PCD). Dessa forma, ficou definido que nos concursos docentes da Universidade, a cada edital, seria considerado o quantitativo total de vagas para a distribuição dos 20% de vagas para candidatos negros e 10% para PCD.
A partir de então, a cada cinco solicitações de concurso pelas unidades acadêmicas à Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Pró-Pessoas), via Sistema Eletrônico de Informações (SEI), a primeira é reservada aos candidatos que se autodeclaram negros. Por sua vez, a cada 10 solicitações de concurso, a última é destinada a pessoas com deficiência. “Dessa forma, a decisão não está nas nossas mãos e muito menos nas mãos das unidades acadêmicas, uma vez que elas não têm conhecimento sobre a ordem dos pedidos de concurso”, explica Sauli dos Santos. “É uma metodologia muito transparente, muito clara, muito objetiva".

Mesmo a vaga sendo destinada à reserva, o concurso permite a participação da ampla concorrência. “Afinal, se não houver cotistas aprovados, a vaga será ocupada pelo primeiro colocado aprovado na ampla concorrência. Agora, havendo um candidato cotista classificado entre os aprovados, automaticamente a vaga será dele”, afirma o pró-reitor, que ainda faz questão de ressaltar, com base na legislação e na metodologia adotada pela UFG, o mérito do processo seletivo. “Não falta mérito no caso de concurso com reservas de vagas. Todos os classificados aprovados tiveram mérito. Passaram por toda a seleção. Passaram nas etapas eliminatórias, que são a prova escrita, didática, memorial, e na etapa classificatória, ou seja, a prova de títulos. Sendo assim, os candidatos de reserva têm mérito e foram aprovados em igualdade de condições”, afirma o pró-reitor Sauli dos Santos. “E não é incomum o candidato de reserva ainda ficar em primeiro lugar entre os classificados".
Após aprovado e antes da nomeação e posse, os candidatos autodeclarados negros ainda passam pela avaliação da banca da Comissão de Heteroidentificação da UFG, onde serão aferidas as características fenotípicas dos candidatos, tais como a cor da pele associada às demais marcas ou características da população negra (formato do nariz, textura dos cabelos e lábios). A banca é composta por cinco membros e a decisão é por maioria.
Universidade antirracista
Reparação histórica, a reserva de cotas raciais em concursos públicos para o magistério superior federal tem o potencial de transformar a cultura acadêmica e científica nas universidades, afirmam os professores negros da UFG. “A diversidade nesse contexto é fundamental. É impossível transformar a sociedade sem incluir a visão de mundo e a participação de grupos historicamente marginalizados”, afirma o professor Julliano Nascimento, aprovado em 2019 no primeiro concurso com reserva de vagas da UFG. Em consonância, a secretária de Inclusão da UFG, professora Luciana Dias, acredita que “a presença de mais docentes negros na Universidade pode ajudar a construir uma cultura mais antirracista, mais democrática racialmente, portanto, mais justa”.

Para Luciana Dias, com a presença de corpos negros, o racismo, além de ser problematizado, é combatido ou ao menos contido. “Há, portanto, todo um processo pedagógico que é disparado e começa a acontecer”, afirma a secretária de Inclusão da UFG. “O professor negro, a professora negra quando entra para uma universidade e ocupando o lugar de docente, ele vai promover uma mudança nas interações sociais que são estabelecidas ali. Aquelas declarações abertas de teor racista tendem a ser contidas e não mais poderão ser feitas, pois tem uma pessoa negra ali e essa pessoa negra está habilitada a reagir no sentido de combater esse racismo”.
A secretária de Inclusão ainda destaca que a presença de uma pessoa negra na universidade não muda somente o próprio destino dessa pessoa, “mas muda também o destino de várias outras pessoas que têm semelhanças com ela, que são parecidas com ela, que vêm do mesmo lugar que ela e que começam a idealizar possibilidades e a construir trajetórias de vida”. Trata-se portanto de “representatividade”, destaca a professora Kalyna Ynanhiá Silva de Faria, aprovada em 2020 em primeiro lugar no concurso com reserva de vagas. “A entrada de professores negros e negras nas Universidades faz parte do rompimento da herança colonial de invisibilidade do corpo negro e de que apenas corpos não negros têm o direito de ocupar locais de poder”. Kalyna lembra que ela não teve a sorte de se enxergar entre os seus professores. ”Todo o caminho acadêmico que eu trilhei foi pautado pela ausência dessas referências, e me fez querer ser para uma pessoa negra o que eu não tive dentro da universidade”.
Fonte: Secom UFG
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