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Universidade Federal de Goiás
Jordana Avelino dos Reis

Novo Ensino Médio: por que sai espanhol e fica inglês?

Em 01/04/24 14:14. Atualizada em 01/04/24 14:15.

Estudo da UFG analisa interesses sociais e linguísticos no ensino obrigatório da língua inglesa

Ricardo Lima

O que estaria por trás da escolha do inglês como língua obrigatória a ser ensinada no Ensino Médio? Seria apenas por ser a língua mais falada no mundo? Ou pelo fato de ser considerada a "língua dos negócios"?

Durante quatro anos, a professora e pesquisadora Jordana Avelino dos Reis mergulhou em diretrizes, reportagens, referenciais curriculares, relatórios, livros didáticos, documentários e discursos políticos para entender essa escolha, cristalizada sobretudo na Reforma do Ensino Médio, em 2017, que revogou a oferta obrigatória do espanhol e manteve apenas o inglês.

O resultado deste grande quebra-cabeça político, ideológico e educacional está na tese "Ideologias de linguagem articuladas nos discursos sobre a reforma brasileira do ensino médio: por que sai espanhol e fica inglês?", desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG), sob orientação do professor André Marques do Nascimento.

Nesta entrevista concedida ao Jornal UFG, Jordana fala sobre sua pesquisa, motivada por sua própria experiência profissional e pessoal com o ensino de língua espanhola. Confira.

 

Jordana Avelino dos Reis

Professora e pesquisadora Jordana Avelino, autora da tese sobre o Novo Ensino Médio (Foto: Arquivo pessoal)

 

Como surgiu o interesse na pesquisa sobre ideologias de linguagem no cenário político e educacional de 2014 a 2023?

Jordana Avelino dos Reis – Sou professora e pesquisadora da língua espanhola. Tenho investigado, nos últimos anos, as conexões entre línguas, povos e política. Em 2012, iniciei uma investigação (de mestrado) sobre as representações que estudantes do Ensino Fundamental II tinham sobre a língua-cultura (hispano-americana). Os resultados foram impactantes. Enquanto professora e pesquisadora, notei que as escolhas de estudar e aprender espanhol estavam diretamente ligadas às representações que o grupo discente tinha das pessoas usuárias da língua espanhola na América. Crenças como língua fácil, que não precisa ser estudada, ou de pessoas pobres e que não têm nada, atravessavam a ideia de que escolhê-la seria como tornar-se igual às representações atribuídas à própria língua. Em 2019, fiz uma disciplina como aluna especial na Faculdade de Letras da UFG. O professor André Marques do Nascimento ofereceu o curso "Tópicos em Língua e Cultura". A partir desse curso, conheci a área de estudos sobre Ideologias de Linguagem. É um campo de pesquisa transdisciplinar que perpassa a Antropologia, Linguística, Filosofia e Sociologia. No ano seguinte, em 2020, me inscrevi para concorrer a uma vaga no doutorado pelo Programa de Pós-Graduação de Letras e Linguística na UFG. Desde esse período, tenho mergulhado em leituras de estudos e pesquisas sobre essa área. O professor André foi meu orientador e interlocutor nesse mergulho acadêmico e científico. Em 2022, tive a oportunidade de fazer um intercâmbio para a Univerdad de Buenos Aires, a fim de ampliar a pesquisa no campo glotopolítico, ou seja, das ideologias de linguagem na política linguística. A professora Elvira Narvaja de Arnoux foi minha orientadora durante sete meses. Mantive contato com meu professor no Brasil e tive outras orientações na Argentina: Roberto Bein (Universidad Três de Febrero), Virginia Rubio Scola, Carolina Tramallino, Natalia Ricciardi e Talita Angelucci, bem como outras/os colegas da Universidad Nacional de Rosario. Foi uma experiência incrível, um divisor de águas enquanto pesquisadora, professora, mulher negra periférica e estudante brasileira. Essas pessoas foram muito generosas comigo, me receberam com carinho e admiração. Agradeço à Capes pela oportunidade concedida via bolsa de estudos oferecida pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). A partir dos estudos realizados na Argentina, pude redigir uma tese da qual me orgulho muito, porque me envolvi nas teorias e pesquisas que antecederam minha investigação. Pude, com calma, analisar os discursos que envolviam as línguas na reforma educacional brasileira do ensino médio.

 

Como as reformas durante os governos impactaram as concepções de língua e educação no Novo Ensino Médio?

Jordana – Se fizermos uma análise profunda, no Brasil sempre houve uma discussão sobre a (des)importância das línguas e suas variedades, bem como seu valor, econômico ou não, na sociedade: o uso da linguagem neutra, a polêmica do Pajubá (linguagem LGBTQIAPN+) no Enem em 2018, a crença de que somos monolíngues quando temos 19 línguas cooficiais no país, a desvalorização da Libras, o apagamento dos conhecimentos quilombolas e indígenas nos currículos educacionais, a invisibilidade das línguas e intelectuais indígenas e das comunidades quilombolas e romani (ciganos/as) etc. As políticas linguísticas sempre existiram no país, via medidas provisórias, leis, decretos e debates, e nós, enquanto agentes desse tipo de política, liberamos ou cerceamos pessoas, a partir das línguas que podem ou não ser estudadas na escola. No campo educacional, a política linguística controla e orienta o modo como as línguas devem ser estudadas. A reforma educacional iniciada oficialmente em 2016, via Medida Provisória nº 746, apresentou diversas ações que envolvem a glotopolítica: revogação da lei do espanhol, obrigatoriedade do inglês, a invisibilidade das línguas indígenas e a ausência de uma ação glotopolítica concreta com relação à Libras. Tais medidas foram, paulatinamente, mudando o cenário das políticas linguísticas educacionais no Brasil, e por terem sido realizadas em momentos diferentes, os efeitos foram imperceptíveis para a maior parte da sociedade. O grupo atingido diretamente foi o de professores/as de língua espanhola. Desde 2016, essas pessoas tiveram perdas de aulas por conta da saída do espanhol dos ensinos fundamental e médio. Em 2024, o espanhol configura como a única disciplina excluída da reforma educacional do ensino médio. Contudo, se perguntarmos aos/às estudantes por que eles/as não têm mais aulas de espanhol nas escolas, não saberão responder. Até mesmo entre alguns/mas docentes, o debate se diluiu e poucas pessoas saberiam explicar a exclusão dessa disciplina. E se perguntarmos ao grupo discente se gostariam de ter aulas de espanhol, boa parte dirá que sim. Tenho plena convicção disso, porque durante minha pesquisa tive acesso a microdados do Inep que mostram as escolhas das línguas entre candidatos/as do Enem. Somam-se todo ano em torno de 60%, ou seja, mais da metade dos/as candidatos/as escolhem realizar a prova de espanhol no Enem. A partir da reforma, tivemos acesso às concepções de quem atua na tomada de decisões do MEC. Com a infiltração de entidades privadas, organizações empresariais e pessoas ligadas ao setor econômico, testemunhamos a concepção de que estudar inglês seria melhor para conseguir um emprego e para tornar o Ensio Médio mais atrativo. Esse discurso foi evidenciado no primeiro capítulo da minha tese, a partir da análise dos discursos de integrantes do terceiro setor na gestão de reforma educacional do MEC.

 

Como as ideologias do inglês foram identificadas nos documentos analisados?

Jordana – Identifiquei as ideologias do inglês em diversos registros documentais: BNCC, reportagens sobre a reforma educacional, diretrizes nacionais curriculares para a educação plurilingue, livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), etc. Antes de fazer o levantamento, fiz leituras de artigos, dissertações e teses que antecederam meu trabalho, tendo em vista que muitas pesquisadoras já atuavam nesse tipo de análise. A diferença é que na minha pesquisa, além de identificar tais ideologias, eu as conectei com os fatos políticos e sociais, ou seja, com as ações glotopolíticas para demonstrar como as ideologias de linguagem se articulam nessas tomadas de decisão na época. Foi como montar um grande quebra-cabeça político, ideológico e educacional. Ao se juntarem às peças que aparentemente não teriam conexão, tivemos acesso a um cenário perigoso e catastrófico para a educação brasileira. Um exemplo: em novembro de 2015, apresentei, no capítulo um, as ideologias de linguagem do inglês articuladas em discursos de autoridades políticas e educacionais em um encontro educacional realizado em Rondônia. Destaco as presenças de José Mendonça Filho (autor da reforma de 2016 – governo Temer – e relator da última votação da reforma, realizada em março de 2024 – governo Lula) e Maria Helena Guimaraes nesse evento. As pessoas que participaram desse encontro alegaram, na época, que a reforma educacional deveria acontecer e o inglês deveria ser obrigatório para que o Ensino Médio pudesse ser "mais atrativo" ao/à estudante. No dia 15 de setembro de 2016, Mendonça Filho, enquanto ministro da educação, enviou uma carta ao ex-presidente Temer solicitando a reforma da educação, via Medida Provisória. Sugere a obrigatoriedade do inglês e a redução do número de disciplinas. Maria Helena, diretora executiva de uma fundação, sempre esteve entre os nomes da BNCC e da reforma. Ao analisar os documentos federais da reforma (BNCC, diretrizes, páginas da internet, etc.) publicados entre 2016 e 2023, observei que eram sempre as mesmas pessoas. Havia apenas uma "troca de cadeiras" entre diretoria, secretários/as e presidentes das organizações do MEC. Logo, notei que quem fez parte das aprovações da BNCC, quem foi chamado/a para falar sobre a reforma e representar o MEC eram sempre os mesmos nomes, e os discursos apresentados naquela reportagem do encontro de 2015 se replicaram nos anos seguintes até 2023 (data em que finalizei a pesquisa). Outro detalhe importante: a carta do ex-ministro foi enviada no dia 15 de setembro; uma semana depois (22 de setembro) a Medida Provisória nº 746/2016 foi assinada pelo ex-presidente Temer.

 

Como as ideologias nos discursos dos documentos atenderam aos interesses de empresas privadas no novo ensino médio?

Jordana – Primeiro de tudo, é preciso destacar a fala do professor da Faculdade de Educação da USP, Daniel Cara, registrado no documentário "(NEM) Novo Ensino Médio – um fracasso anunciado", de Carlos Pronzato. Daniel Cara afirma: "o grupo Cogna é líder na educação privada, e, segundo xs autorxs, tem um faturamento de R$ 7 bilhões no setor educacional, uma fatia considerada ainda pequena diante do valor total investido na educação pública brasileira, estimado em 170 bilhões". O faturamento das instituições privadas é alto, desde a concepção de ensino, produção de materiais, oferta de cursos profissionalizantes e idealização de ações à presença de representantes. Alimentar a ideologia de que o inglês é mais importante poderia justificar o direcionamento desses bilhões às escolas de idiomas. No documentário, Cara ainda informa que a "Ifood é financiadora de fundações empresariais e é apoiadora da reforma do Ensino Médio". Os números são altíssimos. Vale a pena destacar nesta entrevista que transcrevi para a tese o seguinte relato: "a educação tem 40 milhões de estudantes nas escolas públicas indo todos os dias, mais de um milhão de estudantes nas universidades públicas também. Tem 2,2 milhões de professores, ao todo 5 milhões de profissionais da educação, além dos professores. Então é uma política muito superlativa. O segundo objetivo das fundações empresariais é em relação ao dinheiro que está disponível, controlar esse dinheiro. Não é pouca coisa: 300 bilhões! Só que só controlar o dinheiro não basta, então eles também agora querem privatizar, ou seja, além de controlar o dinheiro, eles querem também obter lucro com esse dinheiro né!?, desses 300 bilhões de reais que circulam na política educacional brasileira. E o quarto é o mais debatido na área de educação, mas economicamente ele é o menos relevante, em termos de curto prazo, ele é muito relevante a longo prazo, que é formar o indivíduo neoliberal, aquele que acredita que é empreendedor de si mesmo, aquele que acha que… ele é sócio, por exemplo, ele é motorista de aplicativo e é sócio de uma empresa de aplicativo como o Uber, como qualquer outra, né!?". Em 2020, quando as DCNs para educação plurilingue foram aprovadas pelo MEC, encontrei a justificativa de que a existência das diretrizes se devia "ao crescimento exponencial de instituições de ensino bilíngues, sobretudo na rede privada, e que o Conselho Nacional de Educação (CNE) recebeu solicitações de criação de normas para o ensino de línguas". São fortes evidências de que a reforma do Ensino Médio não visava melhoria educacional, mas lucro e controle das empresas privadas infiltradas no MEC.

 

Quais as conclusões sobre a hierarquização das línguas estrangeiras, com ênfase no inglês?

Jordana – Entre as línguas, assim como entre os grupos socioculturais, construíram-se hierarquias que podem se modificar, conforme seus valores socioeconômicos e etnico-raciais. Falar de línguas é também falar de pessoas, ou seja, de quem as usa. Excluir ou torná-las obrigatórias são ações que visibilizam ou apagam grupos étnico-raciais. Em minha tese, não analisei apenas línguas, mas como tais grupos hegemônicos se mantêm no poder através das línguas. A professora argentina Elvira Narvaja de Arnoux problematiza em uma de suas publicações que a "política linguística neoliberal acentua a socialização das elites em inglês", na qual o ensino de inglês cria consumidores, quando se assenta no imaginário de que essa língua seria um veículo de mobilidade social. Na primeira etapa da globalização, ocorreram as navegações marítimas para o que chamamos de parte "sul global". As línguas inglesa, portuguesa, francesa e espanhola alcançaram muito prestígio. Com o passar dos séculos, Portugal e Espanha ficaram à margem nesse processo de dominação colonial. No combo desse declínio, as línguas oficiais desses países também se desvalorizaram. Passamos por outras globalizações e as línguas inglesa e francesa passaram a ter mais prestígio. Ainda que espanhol, francês e português exerçam certo prestígio diante de línguas indígenas, africanas e de outras minorias étnico-raciais e sociais, atualmente elas não têm o mesmo valor hegemônico que a língua inglesa.

Fonte: Secom UFG

Categorias: entrevista Humanidades FL Notícia 5