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Universidade Federal de Goiás
Inova

INOVA

Em 20/05/24 14:30. Atualizada em 20/05/24 14:31.

O sistema de proteção da propriedade intelectual é adequado para os produtos da inteligência artificial?

Tatiana Ertner*

A inteligência artificial (IA) é como eletricidade! Se a eletricidade surgiu como um efeito especial que serviria para substituir velas na iluminação das casas e ruas, de fato, hoje, ela é imprescindível em todas as atividades humanas.

E a comparação à IA? Exagero? Visão curta das perspectivas de uma das mais importantes forças de progresso que vivenciamos na atualidade?

Talvez seja cedo para se agarrar a uma previsão, mas é fato que as mudanças que acompanham sua aceitação (ou não) já se fazem sentir.

A IA também tem sido aplicada de forma crescente em diversos processos industriais e tem tido papel fundamental, por exemplo, no desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas, de novos equipamentos e novos processos industriais. Todos esses são produtos do uso da IA para além do que o homem pode controlar. São soluções para problemas persistentes que são novas, não óbvias e eficientes, a ponto de despertar o interesse de diversos mercados. E eles não são poucos!

Estas são características de produtos que, se criados unicamente pelo intelecto, certamente encontrariam proteção no sistema patentário. No entanto, devido ao fato de que esses produtos não encontram previsão para sua proteção nas legislações vigentes mundialmente, essas criações reconhecidamente inovadoras e disruptivas encontram-se desamparadas.

E por que isso deveria ser uma preocupação nossa?

Ora, para começar, basta voltar alguns séculos no tempo para nos lembrarmos por que existe um sistema de proteção de propriedade intelectual.

Seu maior papel é reconhecer e garantir os direitos do criador a explorar a sua invenção, numa maneira de premiar e incentivar a mente brilhante a continuar seu caminho. Tem também a função de disseminar conhecimento e promover o desenvolvimento da sociedade, através da completa entrega da invenção ao domínio público, após a vigência da proteção. No entanto, se o sistema não pode cumprir seu papel, o criador não continua sua atividade e não há novos desenvolvimentos que possam ser entregues à sociedade.

Mas, se o sistema de proteção da propriedade intelectual existe, afinal, qual é a barreira para a proteção dos produtos da inteligência artificial? Muito simples: as legislações vigentes não conseguem definir o autor ou inventor das criações com uso da inteligência artificial. Para haver direitos relativos à propriedade intelectual, eles têm que se referir a uma pessoa, um cidadão que está sob as determinações da lei. Esse indivíduo não é explícito nas criações com o uso de inteligência artificial.

Por essa razão, muitos dizem que basta não considerar essas criações como suscetíveis de proteção, a despeito dos prejuízos aos desenvolvimentos futuros. Outros, no entanto, usam do argumento de que as legislações não fazem objeções específicas a considerar a inteligência artificial por si, o inventor, no entanto, ignorando a necessidade de haver um indivíduo a quem conferir direitos e deveres.

Há uma terceira corrente que afirma ser urgente a mudança de paradigmas no entendimento da propriedade intelectual e urge para que isso se faça ao tempo do desenvolvimento da própria IA. Mas como? O "como" é a dificuldade...

No entanto, é consenso que uma proposta deve ser rapidamente apresentada, porque os casos controversos surgem a todo instante e, sem uma orientação, as soluções têm sido casuísticas, o que gera uma quantidade enorme de exceções jurídicas que acabam por enfraquecer o sistema de proteção da propriedade intelectual.

Como exemplo, cito o caso DABUS.

DABUS, acrônimo para Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience, é designada pelo seu criador, Dr. Stephen Thaler, como a "máquina da criatividade". É realmente fabuloso, cria hipóteses a partir de dados padronizados e aprende de forma autônoma, através da análise de padrões sutis que geram novas conexões. DABUS já tem diversas invenções, como por exemplo um copo de plástico com formato otimizado para que pudesse ser empilhado ou para ser manuseado por braços robóticos (pedido de patente PCT/IB2019/057809, que reivindica a prioridade das patentes EP18275163 e EP18275174).

O pedido de patente do copo foi depositado por Thaler em diversos países, inclusive no Brasil, Reino Unido e Estados Unidos, mas com o diferencial de informar como inventora a inteligência artificial DABUS.

Nesses países, o pedido de patente foi indeferido pela mesma razão: a impossibilidade de indicar como inventora a inteligência artificial, de acordo com o entendimento de que o inventor deve ser um ser humano, para que direitos e deveres sobre a propriedade intelectual tenham efeito.

No entanto, na Austrália, o pedido de patente do Dr. Thaler teve outro entendimento. Em seu relatório, o vice-comissário de patentes, ao indeferir o pedido, afirmou que a lei nacional não reconhece atualmente a capacidade de uma máquina de inteligência artificial em atribuir propriedade e que ela não poderia ter interesse benéfico a essa propriedade. Com isso, abriu precedente para que Dr. Thaler recorresse, por se tratar de uma situação não prevista na lei vigente.

Do lado contrário, houve o argumento de que não há necessidade de se explicitar o que é um inventor na lei, uma vez que dicionários podem fazer o trabalho de defini-lo. O juiz, então, concedeu a patente por concluir que não havia "nenhuma disposição específica [na Lei de Patentes] que expressamente excluísse a possibilidade de IA ser inventora". Ele considerou a natureza evolutiva das invenções patenteáveis e dos seus criadores e, em vez de "recorrer aos antigos usos milenares dessa palavra", ele precisava restringir-se à ideia subjacente, reconhecendo a "natureza evolutiva das invenções patenteáveis e de seus criadores". Foi uma decisão inédita, por reconhecer a IA como inventora!

Ainda, na África do Sul, a patente também foi concedida ao Dr. Thaler, no entanto, sem avaliar a indicação da inteligência artificial como inventora, uma vez que a Lei de Patentes Sul-Africana prevê somente a análise dos requisitos formais do pedido, deixando a questão da autoria a questionamentos posteriores. Esses precedentes são perigosos porque não se correlacionam num entendimento harmonioso e isso é resultado de uma demora do sistema de proteção da propriedade intelectual em se adaptar e se modernizar à nova situação.

 

Patente

Registro do depósito do pedido de patente conforme está no banco de dados do Inpi (Imagem: Reprodução)

 

Uma solução que parece ser a mais ponderada é que os produtos da IA encontrem proteção sui generis. Isso porque é mais fácil adaptar uma nova regulação a algo que escapa das definições pré-existentes do que adaptar uma regra a um novo estilo de criação que não equivale àquele já sob proteção.

Mas muitos pensam que esta proteção sui generis deve ser a mais próxima à patente possível. Em seu trabalho, Jin e Ravid (Summoning a New Artificial Intelligence Patent Model: In the Age of Pandemic**) propõem um modelo alternativo de proteção por patente das criações oriundas da IA. Nele, há 6 pilares importantes que devem ser considerados:

1) Proteção de sistemas criativos de IA e invenções feitas por IA;
2) Mudança do que vem a ser a figura do técnico no assunto, essencial no exame de patentes;
3) Prever um exame acelerado de patentes;
4) Uso de IA para executar o exame de patentes;
5) Vigência reduzida, uma vez que os desenvolvimentos nessa área são rápidos demais e uma vigência de 20 anos pode significar um monopólio permanente;
6) Ter requisitos especiais para o depósito de patentes de IA.

Esta é uma das diversas sugestões que têm sido debatidas.

Como será, ainda é uma incógnita, mas a proteção deverá ser de forma que permita o desenvolvimento contínuo da IA generativa e sua interlocução com a sociedade, de modo que traga sempre soluções assertivas aos problemas que emergem.

A regulamentação para a proteção da IA generativa e seus produtos deverá levar em consideração que a IA é diversa e deve claramente apontar quem se beneficiará dos direitos conferidos ao produto da IA. Deve-se sempre ter claro que, assim como as patentes, essa proteção deve promover o desenvolvimento e a inovação e atuar de forma a estimular a capacidade inerentemente humana.

O fato é que a IA veio para ficar. Não é possível ainda fazer previsões sobre seu desenvolvimento e a evolução das formas de seu uso, mas qualquer um pode ver que o que será do futuro é o que estamos fazendo por ele agora.

 

* Tatiana Duque Martins Ertner de Almeida é professora do Instituto de Química, coordenadora de Internacionalização do IQ, mantém linhas de pesquisa sobre propriedade intelectual, projetos de extensão de PI no ensino básico e coordena o curso de especialização em Propriedade Industrial da UFG.

** Pré-print disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7366817/pdf/nihpp-3619069.pdf 

 

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Jornal UFG.

Fonte: IQ

Categorias: colunistas Tecnologia IQ