Apagaram tudo! Mas estamos desapagando!
Em 2024, Dia da Consciência Negra foi celebrado com feriado nacional pela primeira vez
Maria Zenaide Alves
O 20 de novembro, que em 2024 foi celebrado pela primeira vez com feriado nacional, é uma data para celebrarmos as memórias do povo negro, povo que chegou ao Brasil em navios negreiros e foi oficialmente escravizado por políticas de Estado, e que continua sendo escravizado por negligência tanto do Estado quanto da sociedade, que insiste em manter vivo um sistema racista que oprime, encarcera e criminaliza o povo negro. E quando todas as estratégias de criminalização e opressão falham, não hesita em matar ou simplesmente deixar morrer.
A morte, para o povo negro, pode estar em qualquer esquina. Uma simples ida ao supermercado pode ser o fim da linha. As câmeras estão sempre voltadas para nós e os fuzis também. Os olhares de reprovação, quando falhamos ao executar algum serviço, geralmente vêm seguidos da frase: "só podia ser serviço de preto, feito nas coxa". Os comentários quando tentamos nos defender geralmente desconsideram que, muitas vezes, a única coisa que queremos é sermos avaliados como humanos, que erram, como qualquer outro da nossa espécie. Isso faz nascer essa sensação de que não somos bem-vindos. O benefício da dúvida, princípio fundamental do direito contemporâneo, nunca foi e continua não sendo para nós.
Há 500 anos nossos ancestrais foram sequestrados de alguns dos 54 países que compõem o continente africano. Não vieram para o Brasil, como alguns dizem; eles foram caçados, perseguidos, sequestrados e trazidos à força. Separados de suas famílias, foram obrigados a viver como animais, a desenvolver trabalho forçado, a ter poucas horas de descanso e a se alimentar de restos. Alguns, geralmente mulheres, eram domesticados para trabalhar dentro da casa grande; os outros, os selvagens, deveriam manter-se distante dos civilizados.
Nada que fosse do nosso povo era bem-vindo. Nossa religião, nossas artes, nossa cultura, nossa história... apagaram tudo! Apagaram toda a nossa subjetividade, e nossa existência só tinha uma razão de ser: nosso corpo precisava sobreviver e produzir riqueza para sustentar esta nação. Sim, hoje sabemos que, se não fosse pela força do nosso trabalho, esta nação não estaria de pé. O Brasil foi erguido às custas do suor e do sangue da população negra.
Ah, mas se erão tão difícil, por que aceitavam isso passivamente? Por que não lutaram? Por que esperaram a bondade de uma princesa branca para acabar com o regime escravocrata? Essas são frases que ainda hoje ressoam na esteira das manifestações racistas que insistem em nos culpar pelas atrocidades que nos vitimizam. Esses são argumentos de quem quer nos fazer crer que nossa liberdade nos foi dada pelos brancos.
Os guerreiros e as guerreiras que resistiram, que lutaram e que deram suas vidas em prol da liberdade do povo negro foram apagados da nossa história, assim como foi apagada boa parte das atrocidades cometidas pelo Estado e pela sociedade brasileira contra o povo negro.
Ganga Zumba, Dandara e Zumbi foram apagados dos livros didáticos, assim como foram apagadas as cerca de 20 mil pessoas (escravizados, alforriados e indígenas) que habitaram o Quilombo dos Palmares no auge da sua existência, na segunda metade do século XVII, território que sobreviveu por quase meio século e que inspirou outras experiências Brasil afora. Essa história nunca foi contada para as nossas crianças.
Apagaram as lutas e as estratégias de sobrevivência e resistência do povo negro. Apagaram as histórias das mães que, ao verem Palmares sendo invadida, preferiram sacrificar seus próprios filhos a condenarem eles à animalização da escravidão. Por muitos anos esconderam de nós a história de Dandara, guerreira corajosa, que não se curvou, não baixou a cabeça e não se deixou capturar viva. Era como se ela dissesse: se querem meu corpo, venham buscar, mas ele não produzirá nem mais um grão de riqueza para manter seus privilégios.
Mas um povo que não se curva a uma chibata, não se curvaria a uma borracha. Esse povo não deixou morrer sua história. Esse povo reuniu forças para juntar vestígios de sua própria história e não deixar morrer seu legado.
Essa história tem sido resgatada por historiadores com linguagens distintas. São professores, artistas, intelectuais, jornalistas, advogados, poetas, cientistas, mestres de capoeira, religiosos... sim, nosso povo segue se movimentando. O movimento negro, o movimento do povo negro, vem reconstruindo e reescrevendo essa história, de diferentes formas, através de diversas linguagens.
Na música, nossa história vem sendo recontada por sambistas de várias vertentes. Do samba de roda aos sambas-enredo, temos uma grande escola para nos contar essa história de lutas e resistência. O samba, assim como outras manifestações da cultura negra, que já foi criminalizado e proibido, punido com cadeia, que cresceu e se fortaleceu à revelia da casa grande, nos morros e favelas, hoje ecoa a nossa voz, conta a nossa história e contribui para a afirmação da identidade negra. O samba nos ensina a não esquecer esse legado e a seguir resistindo.
Aprendemos com a nossa querida Alcione que não podemos deixar o samba morrer. Não deixemos nossa história morrer.
Que a luta daquelas e daqueles que vieram antes de nós não tenha sido em vão. Que o Dia da Consciência Negra nos inspire a todos, negros e brancos, a seguir reescrevendo essa história para conquistar a tão sonhada liberdade que não chegou com a Lei Áurea. Afinal, não basta uma lei para nos libertar das correntes; precisamos de conhecimento para nos libertar a todos do racismo, que é a corrente contemporânea que ainda nos impede de viver em uma verdadeira democracia racial.
Maria Zenaide Alves é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Catalão (UFCAT) e integrante do Coletivo Esperança Garcia.
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Fonte: UFCAT
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