
A cultura erudita para a sociedade de massa
A presença das orquestras na terra da música sertaneja
Adriana Milene Rodovalho
Gyovana Carneiro
No Brasil, a região Centro-Oeste, com foco em Goiânia (GO), possui uma forte tradição na música sertaneja. A música sertaneja é uma manifestação cultural enraizada na identidade local, mas isso não exclui a possibilidade de outras expressões culturais, como a música erudita, coexistirem e se desenvolverem no estado.
Conforme Malinowski (1970), a "tradição" não é apenas um conjunto de normas e costumes, mas também um meio pelo qual as pessoas se adaptam ao seu ambiente e garantem a coesão social. Nesse sentido, ele relaciona a escolha da pessoa à sua manifestação cultural.
Por séculos, a música erudita foi estereotipada como elitista, pois carrega símbolos hierárquicos de uma sociedade privilegiada, já que o poder econômico exerce influência sobre as suas manifestações culturais. No entanto, em Goiânia, ela busca se inserir em um contexto mais amplo, que desafia os estereótipos e busca a democratização e sua popularização. Dessa forma, os espaços geográficos também desempenham um papel crucial na construção da memória coletiva. Em relação às orquestras, ela está relacionada à burguesia e à aristocracia.
A presença dessas orquestras contribui para a construção de uma memória coletiva que inclui tanto a cultura popular quanto a erudita. Conforme as autoras Figueiredo e Tuzzo (2011, p. 29), "a busca de critérios de identidade local não deve fazer esquecer que eles se tratam de ações de representação e apreciação de sujeitos sociais". Na visão das autoras, os aspectos que corroboram esse problema são a construção de sentido da cultura erudita na cidade de Goiânia.
Por isso, quando afirmamos que alguém "não possui cultura", é o mesmo que dizer que o indivíduo não possui ações coletivas. Em outras palavras, a cultura é determinada pelo sujeito pelas regras da sociedade e seu ambiente. Portanto, o cidadão constrói memória de duas formas: individual e coletiva, de forma concomitante (ambos são influenciados um pelo outro), no seu ambiente.
Assim, o método de avaliação da presença da cultura deve ser contínuo e está sempre em movimento. Um dos critérios para os estudos antropológicos deve se limitar às pesquisas sobre as leis que governam o desenvolvimento de uma sociedade. Diante da apresentação desse cenário, Boas (1993) definiu que a cultura está ligada à organização estrutural, às regras e às instituições do povo.
Em Goiânia, existem três orquestras: a Orquestra Filarmônica de Goiás (1980), a Orquestra Sinfônica Jovem de Goiás (2018) e a Orquestra Sinfônica de Goiânia (1993). Essas instituições são mantidas pelos governos estadual e municipal, que refletem um esforço para promover a cultura erudita na região.
O estado possui a Lei Goyazes, bem como o Fundo de Arte e Cultura de Goiás, que são fundos de investimentos que fomentam a produção cultural ofertada pela Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esporte de Goiás. Além disso, a prefeitura de Goiânia possui a Lei de Incentivo à Cultura.
Para Adorno (2009, p. 14), "falar de cultura é sempre contra a cultura". Apesar disso, o diálogo promove a reflexão e contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico em relação à cultura e sua representação na sociedade. Dessa forma, a manifestação cultural apresenta um fator de análise e evidência: o consumo de cultura é importante para a compreensão do papel dos meios de comunicação na construção simbólica de cultura.
A Escola de Frankfurt (1923-1969) ficou conhecida por criticar a Indústria Cultural e a Teoria Crítica, de 1937. Segundo o marxista Adorno (2009), a manifestação cultural foi um produto criado pelo modelo econômico capitalista. Para a Indústria Cultural, foi o processo que transformou a cultura em um produto. Por isso, a música representa um produto comercializado de forte interesse econômico.
A crítica da Escola de Frankfurt, especialmente de Theodor Adorno, é mencionada para discutir como a cultura pode se tornar uma mercadoria dentro do sistema capitalista. No contexto de Goiânia, a música erudita é vista como um produto cultural que precisa ser "comercializado" de forma acessível para atingir a sociedade de massa.
Nesse cenário, a própria cultura se torna uma mercadoria da sociedade. Dessa maneira, não é exagero afirmar que a Indústria Cultural transforma a música em um produto. Posteriormente realiza cópia da cópia desse produto para a sua comercialização. No caso em questão, a Indústria Cultural comercializa a cultura como um produto para direcionar o consumo da música em Goiás.
O maior desafio para a criação e consolidação das orquestras foi a falta de dinheiro e de investimento público. Para Mário de Andrade (1893-1945), precursor da administração pública da cultura no Brasil, o apoio governamental foi crucial para a sustentação das manifestações culturais (Andrade et al., 2015). Esse apoio permitiu que conservatórios, orquestras, corais e outros conjuntos musicais prosperassem.
Segundo Gabriela Souza (2012), as primeiras orquestras dependiam de doações de comerciantes locais, propaganda e apoio financeiro de estatais para sobreviver. Conforme o escritor Basileu França, "o maestro foi visto como a figura central e prestigiosa do conjunto orquestral, sendo admirado por suas habilidades musicais e sua capacidade de liderar e inspirar a orquestra" (França, 1962, p. 28).
Por outro lado, "apesar das diferenças na colaboração entre músicos e regente, Mário entende que as dificuldades não deveriam ser tão evidentes, de modo a prejudicar a realização das obras e, em último caso, não permitir a fruição da plateia" (Sato, 2016, p. 116).
Em sua pesquisa sobre a música em Goiás, a pianista Belkiss Spencière (1987) foi orientada por sua professora a realizar a catalogação do cenário da música no estado. Como resultado dessa pesquisa, constatou-se que Goiânia foi o local que mais colaborou para a manifestação cultura da vida e obra dos maestros João Francisco Douliez (1903-1987), Camargo Guarnieri (1907-1993) e Joaquim Jayme (1941-2020).
O maestro é visto como uma figura central e inspiradora, responsável por liderar e unir os músicos. Sua influência vai além da esfera artística: contribui também para a captação de recursos e a promoção da música erudita.
Para o maestro Eliseu Ferreira da Silva (2017), "a orquestra é uma característica essencial de qualquer cidade grande e reflete a vitalidade cultural de uma metrópole". Da mesma forma, o maestro Neil Thomson (2017) afirma: "O público vai ouvir música contemporânea, de um jeito que você não vai ver em outras cidades na Europa. As coisas só se tornam elitistas quando você não tem acesso a elas. E em Goiás nós estamos muito empenhados em democratizar a música clássica. No momento, os nossos concertos são de graça. Ninguém paga pelos ingressos. Isso pode mudar no futuro. Então, 2 mil pessoas vêm para ouvir Nelson Freire, de graça. O que tem de elitista nisso?".
Portanto, enfatiza-se a importância de reconhecer e valorizar diferentes manifestações culturais presentes na cidade, que inclui a música erudita, além da música sertaneja. Isso requer um esforço contínuo de investimento e apoio por parte do governo e da sociedade.
O governo estadual e a prefeitura de Goiânia, em parceria com patrocinadores locais, devem ampliar o apoio financeiro, essencial para proporcionar a presença da orquestra no Estado. Além disso, a figura do maestro é fundamental para garantir o investimento econômico do governo para promover a música erudita à sociedade de massa.
A falta de recursos financeiros e de investimento público foi um dos maiores obstáculos para a criação e manutenção das orquestras. O apoio governamental, conforme destacado por Mário de Andrade, é crucial para a sustentação dessas manifestações culturais. Iniciativas como concertos gratuitos, como mencionado pelo maestro Neil Thomson, são estratégias para democratizar o acesso à música erudita e desconstruir a ideia de que ela é elitista.
Por fim, a presença de orquestras em Goiânia, em uma região tradicionalmente associada à música sertaneja, demonstra a complexidade e a diversidade cultural do Brasil. A música erudita, embora historicamente ligada a elites, busca democratizar, se popularizar e se integrar à sociedade de massa, ao desafiar estereótipos, interesses de ordem política-econômica-cultural e promover o acesso a diferentes formas de expressão cultural.
Adriana Milene Rodovalho é Relações Públicas formada pela UFG e mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras pela Universidade de São Paulo (USP).
Gyovana Carneiro é professora da Escola de Músicas e Artes Cênicas (Emac) da UFG.
Referências
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ADORNO, T. W. Indústria cultural. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
BELKISS, S. A música em Goiás. 2. ed. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1981.
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ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.
FRANÇA, Basileu Toledo. Música e maestros. Associação Brasileira de Escritores, 1962.
JÚNIOR, José Eliton de Figuerêdo. Bate-papo com o maestro Eliseu Ferreira, diretor do ITEGO Basileu França. Youtube, 21 ago. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l_-l5-DjW6k. Acesso em: 1 set. 2019.
MALINOWSKI, B. Uma teoria científica da cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1970.
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SATO, Eduardo Tadafumi. Mário de Andrade n'A Gazeta (1918-1919): um “plumitivo incipiente”?. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos Brasileiros) – Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. DOI: <10.11606/D.31.2016.tde-17062016-114718>. Acesso em: 17 mar. 2025.
SOUZA, Gabriela Gasparotto. Música de concerto 'à paulista': um estudo sobre a criação de orquestras sinfônicas em São Paulo na década de 30. 2020. Dissertação (Mestrado em Estudos Brasileiros) – Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. DOI: <10.11606/D.31.2020.tde-09062021-122206>. Acesso em: 17 mar. 2025.
TUZZO, S. A. O pensamento da Escola de Frankfurt e a comunicação em Paulo Freire: uma. In: INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 7-9 jun. 2012. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/centrooeste2012/resumos/R31-0400-1.pdf. Acesso em: 6 jun. 2020.
Fonte: Emac
Categorias: artigo Arte e Cultura Emac