
Documentário critica representação trans no cinema nacional
Obra é resultado de pesquisa de mestrado realizada na UFG
Atriz e Miss World, Camila Miss conta que Rogéria foi a primeira pessoa trans a ver no cinema (Foto: Cristiano Sousa)
Piter Salvatore
Exibido em Goiânia e São Paulo em 2024, o documentário Impressões da história da personagem transgênero no cinema brasileiro explora como as representações de personagens trans nas telas frequentemente carecem de abordagens positivas. A produção foi resultado da dissertação de mestrado com o mesmo título, defendida pelo também diretor e produtor do curta-metragem, Cristiano de Oliveira Sousa, no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), com orientação da professora Rosa Berardo.
O objetivo do trabalho audiovisual – e também da dissertação – foi conduzir dez entrevistas com pessoas trans para identificar, analisar e registrar suas reações sobre as representações que lhes são atribuídas no cinema brasileiro. A obra possui pouco mais de 24 minutos e teve o apoio de instituições governamentais, culturais e internacionais.
Assista aqui ao documentário:
Entre as dez pessoas entrevistadas, seis moram em São Paulo e quatro, em Goiás. As primeiras entrevistas ocorreram em um estúdio alugado por Cristiano no bairro da Liberdade (SP) e o restante ocorreu em outro estúdio, de propriedade do diretor, localizado na capital goiana.
O grupo entrevistado possui diferentes trajetórias de vida, muitas delas com histórico no cinema e no teatro. Em São Paulo, participaram do curta pessoas ligadas à atuação, direção, ativismo e terapia espiritual. Já as personalidades entrevistadas em Goiânia são Camilla Miss, atriz e Miss World Trans; Brenda OIiveira, criadora digital; Cristiany Beatriz, presidente da Rede Trans GO; e Rayanne Eduarda, ingressante do curso de Jornalismo da UFG em 2025.
Durante o documentário, Leandra Gitana, atriz e drag queen, questiona a participação de Rodrigo Santoro no filme Carandiru, de 2003. Na opinião da entrevistada, o fato de o filme ter escalado um ator cisgênero e heterossexual para interpretar uma personagem trans foi uma escolha infeliz por parte da produção. "Por que não ter colocado uma atriz transexual ou travesti?".
Em sequência, Leona Jhovs, atriz e diretora, comenta sobre os papeis escalados para as personagens trans ao argumentar que "o estigma ainda é muito dado", e cita exemplos de estereótipos vigentes, como "o da prostituta", "o da drogada", e o "da que a família expulsa".
Já Rayanne diz que, "em sua maioria, esses personagens têm sempre uma veia cômica, ou servem de base para algum tipo de preconceito ou discriminação, e até bullying".

Ressonâncias
Em um episódio recente, a atriz cisgênero Thainá Duarte, antes escalada para ser a protagonista do filme Geni e o Zepelim, anunciou que não fará mais o papel após uma série de questionamentos sobre sua identidade de gênero. Na peça original – a Ópera do Malandro – a personagem Geni é uma mulher transexual. Em nota, a Migdal Filmes, responsável pela produção, disse que a decisão foi coletiva e, agora, a protagonista será interpretada por uma atriz trans.
Apesar de reconhecerem mudanças no cenário brasileiro, os entrevistados e entrevistadas destacam a carência de uma representatividade consciente. Alguns, como Julia Katherine, atriz e cineasta, reivindicam o protagonismo de pessoas trans em obras cinematográficas nacionais, em especial homens transgênero, que são, segundo ela, "mais invisibilizados no cinema". Outros, como Bernardo de Assis, diretor e ator, declaram nunca terem visto um filme com personagem trans nas salas de cinema comerciais.
Perguntados sobre como gostariam de ver os personagens representados na arena cinematográfica nacional, os participantes ouvidos apontam a necessidade de papeis mais naturais e menos estereotipados. Cristiany Beatriz afirma que não gostaria de ver "somente as vivências ruins que essa população passa".
O documentário articula recursos de animação e grafismos juntamente com o relato dos entrevistados, exibidos em um plano de fundo preto com a câmera focada em suas expressões. Na dissertação, o pesquisador explica que se apropriou da técnica do fundo verde, ou chroma key, para captar as filmagens, em busca de proporcionar "uma sensação visual aos espectadores com foco total nas pessoas entrevistadas".
De acordo com o autor, o documentário significou "um grito necessário" e um instrumento de denúncia social. Para além disso, a produção também tece soluções e caminhos para uma representatividade mais respeitosa. Uma dessas propostas, segundo Cristiano, é "abrir espaço para profissionais transgêneros, garantindo que possam contar suas próprias histórias".
Pesquisa
Um dos instrumentos de coleta de dados do documentário foi um questionário destinado às pessoas entrevistadas, que também foi utilizado como recurso para a escrita da dissertação. Entre as perguntas conduzidas pelo pesquisador, estão: "Você se lembra da primeira ou do primeiro personagem transgênero que você assistiu no cinema nacional? Se sim. Como foi a experiência?"; "Já assistiu a algum filme com um ou uma personagem transgênero em uma sala de cinema ou em público? Como foi a experiência?".
No decorrer das entrevistas, como conta Cristiano no estudo, "percebeu-se que apenas 40% das pessoas conseguem lembrar do primeiro personagem transgênero que viram no cinema nacional".
Na curadoria de Cristiano, três filmes nacionais apresentam uma representatividade consciente para pessoas trans. São eles: Alice Júnior (2019), Paloma (2022) e Valentina (2020). Nesses longas, as histórias trazem protagonistas interpretadas por pessoas que, de fato, identificam-se como trans. A última produção possui no elenco a youtuber Thiessa Wonbackk, natural de Goiás, que marca sua estreia na carreira de atriz com o filme.
Já em uma perspectiva negativa, Cristiano aponta como exemplos os longas A Rainha Diaba (1974), Os Machões (1972), A Casa Assassinada (1971), A República dos Assassinos (1979), além de tantas outras produções nacionais.
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Milton Gonçalves como a Rainha Diaba, filme de 1974 (Imagem: Reprodução)
O mestre em Arte e Cultura Visual ainda relata que seu envolvimento como organizador do DIGO – Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual em Goiás possibilitou "um senso de conforto adicional" aos entrevistados. O Digo é um projeto independente cujo objetivo é promover a divulgação de obras de vários formatos que tratem da temática LGBTQIA+. A partir dele, o diretor conseguiu estabelecer contatos com pessoas da cena trans e queer, além de ampliar seu repertório sobre a curadoria de filmes do gênero.
"O DIGO, ao longo de suas dez edições, me proporcionou uma vivência fundamental para essa pesquisa", revela o diretor. "Organizar um festival desse porte em Goiás é um desafio imenso, mas extremamente necessário, pois ele se tornou um espaço de acolhimento e visibilidade em meio a um cenário de ódio. As experiências adquiridas ao longo dos anos foram cruciais para construir um olhar mais amplo sobre essa narrativa no cinema".
Agora no doutorado, Cristiano pretende continuar estudando a mesma temática.
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Cristiany e Brenda (acima), Bernardo e Julia (abaixo) estão entre os participantes do documentário (Foto: Cristiano Sousa)
Impacto
A transmissão do documentário foi noticiada por diversos veículos jornalísticos e perfis de redes sociais voltados à diversidade. Em São Paulo, foi exibido no Cine Satyros Bijou, no dia 20 de março de 2024.
Além disso, o curta estreou no Outfest Peru 2024, em Lima, levando a discussão para um público internacional, e participou de importantes festivais no Brasil, como o Modive-se Campinas 2024, o Festival de Cinema de Jaraguá do Sul de 2024, o VI Cine Diversidade 2024 e o Curta Canedo GO 2024, onde recebeu uma menção honrosa pelo roteiro.
O projeto também contou com apoio da Secretaria de Cultura do Estado de Goiás (Secult) e do governo estadual, tendo sido contemplado pelo Edital de Fomento ao Audiovisual do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás (FAC) em 2023.
O diretor elaborou um site próprio para o documentário, o Transcinema, onde é possível acessar, entre outras informações, o trailer e o perfil das pessoas entrevistadas.
Acesse aqui a dissertação Impressões da história da personagem transgênero no cinema brasileiro.
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Fonte: Secom UFG
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