
Bebês reborn em tempos de IA: desespero, frieza, adoecimento mental e delírio social
Bonecas hiper-realistas têm levado adultos a confundir fantasia e realidade
Silvia Zanolla
Não é preciso ser psicólogo ou psiquiatra para perceber que a saúde mental da população em geral está no limite do caos em todos os setores sociais. Não bastassem reflexos da pandemia de covid-19 manifestarem seus danos em aumento de doenças mentais em 20% – e isso associado à ampliação de múltiplas violências, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) –, acompanhamos nas mídias o avanço acelerado das tecnologias de "inteligência" como ameaça projetiva à subjetividade criativa e à sanidade mental. Aliado a isso, vivemos um contexto de diversas "guerras mundiais" em um universo polarizado por tendências progressistas libertárias e totalitaristas conservadoras.
A julgar pela conjuntura, elementos sociais tendem a acirrar o que seria, freudianamente falando, um delirante desespero social. Psicólogos tentam compreender cientificamente – sob a perspectiva do surgimento de novas subjetividades e comportamentos variados – tal conjuntura. Não raro se deparam com comportamentos coletivos que deixariam até mesmo o pai da psicanálise, Freud, de "queixo caído", como no caso do apego compulsivo de adultos a bonecas conhecidas como bebês reborn.
Tentemos compreender isso do ponto de vista psíquico e social, embora saibamos que comportamentos coletivos ocultam detalhes específicos a cada sujeito. São diversos os casos de homens e mulheres demonstrando apego emocional para com tais "bebês". Contudo, o problema maior não seria o apego emocional se este não fosse consequência do que poderíamos chamar de um delírio profundo que leva essas pessoas à confusão entre fantasia e realidade, ao ponto de projetarem vida real nos bebês sintéticos construindo uma relação cotidiana alucinada, transformando-os em sujeitos, parte de sua família. Tal construção reflete simulações que vão do nascimento, com o consumo de barrigas artificiais, de alimentos, roupas, e, pasmem, até planos de saúde, babás e brigas judiciais pela sua "guarda".
Todo esse cenário bizarro poderia ser minimizado se manifestassem uma espécie de teatro, mas não é o que se vê pelos argumentos dos "pais apegados". A internet noticia que advogados, babás e médicos são acionados diariamente a intervirem como se de fato se tratassem de humanos e que os "pais" mobilizam toda a dinâmica de sua vida para "criar" tais bonecos como se filhos reais fossem.
Bonecas hiper-realistas têm se popularizado entre adultos (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Psicanaliticamente tais reações suscitam hipóteses estarrecedoras devido ao seu grau de regressão psíquica. Se o desenvolvimento humano se baseia em laços afetivos construídos durante a história dos indivíduos, sua vida adulta reflete uma etapa na qual o sujeito consegue administrar experiências e referências infantis, resultando de elaboração da realidade com base em certa maturidade de seu aparelho cognitivo, incluindo linguagem, memória, percepção e consciência. Portanto, idealmente, suas referências, elaborações adultas, valores e dinâmicas definem por autoridade a formação da personalidade das crianças.
No caso do apego de adultos a bebês reborn, o desenvolvimento sofre um revés e a regressão a estágios de infantilidade é inexorável. O adulto volta ao desamparo infantil onde predomina o narcisismo primário, a realidade individualizada e própria, torna-se uma espécie de mecanismo de defesa para lidar com inseguranças, delírio infantil tardio em relação à própria capacidade de se colocar como autoridade adulta responsável por si e pelo outro realmente humano.
Projeções carregam um tanto de nós, do que absorvemos e doamos ao outro. Dotar de vida humana um boneco manifesta na vida adulta amor doentio por um objeto inanimado e revela constituição esquizofrênica, fria e objetal; coisificada. Se tal boneco vem substituir uma criança que morreu ou se comparece como um consolo em uma sociedade brutalmente irracional e bárbara, importa que estamos nos identificando e nos objetificando como seres humanos impedindo a real capacidade de amar. Por essa lógica, se tal regressão impõe uma infantilização doentia, na qual o delírio toma como realidade o potencial formativo consciente da personalidade, sobrepuja o real amor em estado inicial.
Nem o sociólogo e filósofo frankfurtiano Adorno, um dos autores do conceito de indústria cultural, poderia imaginar tamanho aprisionamento da alma dos consumidores atuais. Enfim, em tempos em que a Inteligência Artificial ameaça a criatividade como fator primordial da subjetividade, a única forma de barrar a desumanização e a frieza pelo comportamento coisificado e pragmático, desprovido de seu caráter humanista, é não silenciar sobre a destituição do calor humano em nome do progresso tecnológico.
Nunca a educação e os educadores foram tão importantes para a sociedade como referências contra delírios desumanizantes. Nunca foi tão importante confrontar a cultura ideológica do silenciamento divulgada ideologicamente como princípio estoico nas redes a isolar cada vez mais as pessoas de contato físico e do diálogo. Só uma educação humanista possibilita, pela própria subjetividade criativa, impedir a coisificação pela máquina, a esquizofrenia coletiva e a frieza social.
Silvia Rosa da Silva Zanolla é psicóloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.
Envie sua sugestão de artigo para o Jornal UFG
Acesse aqui as diretrizes para submissão.
Receba notícias de ciência no seu celular
Siga o Canal do Jornal UFG no WhatsApp e nosso perfil no Instagram.
Política de uso
Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Jornal UFG.
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal UFG e do autor.
Fonte: FE
Categorias: artigo Humanidades FE