
Pesquisa da UFG analisa discurso de Bolsonaro sobre Direitos Humanos
Postagens do ex-presidente em rede social revelam uma gramática seletiva sobre o tema
Kharen Stecca
"Conosco não haverá essa politicalha de Direitos Humanos". A frase, uma das mais diretas e impactantes declarações de Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial de 2018, ilustra o que foi a construção narrativa dessa figura pública com relação à temática e o quanto o padrão discursivo do ex-presidente refletia valores e crenças alinhados à extrema direita. Investigar o modelo de construção dessa narrativa e os impactos na sociedade foram os objetivos da tese de doutorado do publicitário e bacharel em Direito Leonardo Rezio, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás (UFG).
O estudo adota o conceito de pós-verdade como eixo teórico central. Segundo o Dicionário Oxford, pós-verdade denota "as circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal".
"A tese argumenta que o discurso digital de Bolsonaro não se caracterizou apenas pela disseminação de fake news, mas pela construção de uma realidade seletiva, na qual determinados grupos foram priorizados e outros, marginalizados", afirma o pesquisador, que é diretor de Publicidade Institucional na Secretaria de Comunicação (Secom) da UFG. A tese descreve a complexa relação entre a comunicação política na era digital, a disseminação da pós-verdade e a percepção dos direitos humanos na sociedade brasileira.
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Simplificando o complexo
Ao avaliar a construção discursiva do ex-presidente, fica claro que não se trata apenas de um apanhado de frases de efeito ou sem sentido. Há uma construção narrativa feita por meio de escolhas de frases e palavras que "simplificam pautas complexas", afirma o pesquisador. Para além da distribuição de fake news, informações emocionalmente carregadas construíram uma realidade seletiva, pautada em fatos isolados. "Essa linguagem de fácil compreensão aproxima as pessoas, criando um senso de pertencimento do público", explica Leonardo.
Ao investigar a comunicação de Bolsonaro, a pesquisa revela como a "política da pós-verdade", marcada pela simplificação, pela desinformação e pelo apelo às emoções em detrimento dos fatos, se tornou uma ferramenta central no populismo digital de extrema direita, fenômeno que não é exclusivo do Brasil. "Assim como Trump nos EUA, Bolsonaro explorou o desgaste da política tradicional, a insegurança social e os algoritmos das redes sociais para criar uma narrativa polarizadora", ressalta.
Hoje, a disputa política não se dá apenas por ideias, mas por atenção e engajamento, e isso exige mensagens simples, rápidas e que despertam emoção. A tese mostra como essa nova dinâmica favorece discursos que relativizam os fatos e reforçam crenças já existentes, em um ambiente marcado por bolhas informativas e desconfiança nas instituições.

Deus, Pátria e Família
A análise qualitativa também exemplifica essa construção de narrativas de fácil assimilação. Por exemplo, na categoria "Criança, Adolescente e Juventude", a defesa de valores conservadores é expressa na crítica à "ideologia nas escolas", um tema simplificado e de forte apelo a determinados segmentos.
Similarmente, na categoria "Mulheres e Direitos Reprodutivos", a predominância de termos como "mulher", "não", "aborto," "família" e "vida" reflete uma narrativa pró-vida e conservadora que conversa com valores sociais e é de fácil compreensão.
O ex-presidente frequentemente enfatizou o amor à pátria e princípios morais, utilizando o lema "Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!". A alta frequência e engajamento da categoria "Patriotismo e Valores" nos dados analisados sugere que temas patrióticos e valores conservadores ressoaram fortemente com o público. "O apoio de grupos evangélicos, que valorizam a 'família cristã tradicional', foi crucial para Bolsonaro, e suas mensagens sobre temas como aborto e 'ideologia de gênero' mobilizaram esse eleitorado a seu favor", explica o pesquisador.
A tese levantou que na era da pós-verdade não é preciso que o conteúdo seja necessariamente alinhado com a visão das pessoas, basta que converse com emoções, como o medo, a raiva ou o ressentimento. Há várias questões abordadas no estudo que mostram o que o ex-presidente atingiu em seus discursos simplificados no X (antigo Twitter): os valores conservadores e religiosos; o medo da violência e a segurança pública; o antipetismo e o antissistema, se colocando como o outsider; a exploração da pós-verdade e a desconfiança da mídia tradicional; a construção de inimigos e a utilização da estratégia de polarização. São narrativas simples, de fácil assimilação e que facilmente criam paixões e radicalização do discurso.
As consequências também são extensas e vêm sendo vistas na realidade. O conceito de direitos humanos é distorcido, gerando desinformação e dificultando a compreensão das pessoas sobre seu alcance. Por outro lado, há um aumento da divisão da sociedade, causando uma maior polarização e a dificuldade de entrada de novas alternativas. Os grupos minoritários se tornam ainda mais marginalizados com a influência de uma "nova gramática dos direitos humanos" no governo Bolsonaro, marcada pela atuação de ativismo antigênero e pela desinstitucionalização de políticas públicas para grupos específicos.
Também é atribuído um papel centralizante da segurança pública como solução dos problemas no país, deixando de lado outras questões importantes como a educação, a saúde e o combate à desigualdade social.
Aprendizados
Estudos como o de Leonardo trazem um novo olhar para a comunicação política: "O estudo ajuda a compreender uma mudança profunda na lógica da política contemporânea: o deslocamento do debate racional para estratégias de engajamento emocional nas plataformas de mídias sociais". Ele ressalta que, em uma década, a popularização dos smartphones e a hiperconectividade consolidaram as mídias sociais como principal arena para a construção política – não apenas de imagem, mas de sentido.
Mas é possível tirar algo de positivo do entendimento dessa estratégia, embora com destaques importantes: "A comunicação baseada na lógica da pós-verdade, que pressupõe o uso intencional da desinformação para mobilizar emoções e manipular percepções, não deve ser considerada um caminho legítimo nem democrático. O que a pesquisa mostra é que é possível aprender com as estratégias de engajamento que funcionaram, sem replicar os métodos nocivos que colocam em risco a qualidade do debate público", explica Leonardo.
Para ele, um dos caminhos está no uso estratégico e ético das plataformas digitais. "As mídias sociais permitiram uma aproximação direta entre os políticos e o público, sem o filtro tradicional da imprensa. Essa desintermediação pode ser perigosa quando rompe com qualquer compromisso com a verdade, mas também abre espaço para uma comunicação mais ágil, acessível e horizontal, quando usada com responsabilidade", ressalta o pesquisador.
"Minha tese mostra que Bolsonaro explorou com eficácia a lógica das redes sociais: construiu uma identidade política forte com linguagem simples, direta e emocional. Outros campos políticos podem aprender com isso ao entender que, mais do que dados, o engajamento nas redes exige narrativas que dialoguem com os valores e sentimentos do público", complementa.
Na informação sobre Direitos Humanos, o pesquisador também ressalta que essa simplificação pode ser uma aliada, desde que usada com responsabilidade. "Isso significa comunicar de forma clara, acessível e conectada à realidade das pessoas, sem recorrer ao 'juridiquês' ou ao discurso academicista, que muitas vezes afasta o público. Os Direitos Humanos são alvo constante de desinformação e precisam ser apresentados de forma que sua importância no cotidiano fique evidente. Não se trata de 'defesa de bandidos', mas de garantir saúde, educação, liberdade e dignidade para todos".
No entanto, ele lembra que é preciso reconhecer o desafio: "O público muitas vezes já foi exposto a discursos distorcidos sobre o tema. Valores como justiça, solidariedade e igualdade, embora fundamentais, não têm provocado o mesmo nível de engajamento que discursos baseados no medo, na moralidade ou na exclusão, como mostrou a retórica bolsonarista. O desafio, portanto, não é apenas explicar melhor os Direitos Humanos ou simplificá-los, mas também reconstruir sua legitimidade simbólica em um cenário marcado pela pós-verdade e pela polarização política".
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Fonte: Secom UFG
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