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Universidade Federal de Goiás
Inova hiroshima

80 anos das bombas de Hiroshima e Nagasaki e o papel das patentes em tempos de guerra

Em 18/08/25 09:06. Atualizada em 18/08/25 14:51.

Artigo analisa como sistema de proteção da propriedade intelectual pode propiciar vantagens e desvantagens no desenvolvimento das nações

Tatiana Ertner

Após 80 anos do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki por um poder bélico norte-americano nunca antes experimentado e que, nas palavras do então Presidente Harry Truman, foi "a maior conquista da ciência organizada da história", termos a oportunidade de reexaminar as estratégicas bélicas utilizadas na época, em busca do que realmente altera rumos de guerras. Uns dirão que é o poder bélico, o investimento em armamento superior e em tecnologia; outros, as estratégias militares; e outros ainda dirão que é uma soma dessas apostas. Realmente, quanto mais opções uma estratégia abarca, maiores são as chances de vencer. E o sistema de proteção da propriedade intelectual é um meio para isso.

O fim principal do sistema de proteção da propriedade intelectual é fomentar o livre mercado, assegurando vantagens de exclusividade da exploração de inovações ao próprio inovador e culmina com a entrega completa dessas inovações ao domínio público para fomentar o ciclo da inovação de uma forma sustentável. No entanto, ele pode ser utilizado para enfraquecer o oponente no período de guerra, protegendo invenções com potencial de se tornar uma vantagem em caso de guerra e escondendo-as do oponente.

Tomando a Segunda Guerra Mundial como cenário e o poderio bélico que as bombas de Hiroshima e Nagasaki representaram, vamos compreender o papel da propriedade intelectual neste contexto. E isso se dá justo pelas opiniões do presidente Truman e do secretário de Guerra, Henry Stimons, que disse que o ataque "provavelmente representa a maior conquista dos esforços combinados da ciência, da indústria, do trabalho e dos militares em toda a história", deixando claro que havia, por trás das decisões, um desenvolvimento inovador que envolveu um esforço conjunto de cientistas, militares e da indústria norte-americanos.

De fato, a bomba atômica já era sinalizada desde 1939 pelo presidente Roosevelt. Já em 1941, a Ordem Executiva 8807, de 28 de junho de 1941, criou o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (OSRD), sob a direção do Dr. Vannevar Bush, o que marcou o início do programa atômico e que evoluiu, em junho de 1942, com a transferência do OSRD para o Departamento de Guerra e a criação do Projeto Manhattan.

Tudo envolvendo o Projeto Manhatan era conduzido em segredo e isso está de acordo com a estratégia norte-americana para lidar com a guerra, que envolvia o controle de novas tecnologias que pudessem ameaçar a defesa nacional e a estabilidade econômica do país, por meio de dispositivos criados ainda durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando o Congresso dos Estados Unidos autorizou o escritório americano de propriedade intelectual (USPTO) a classificar patentes relacionadas à defesa, com o objetivo de restringir a divulgação de invenções quando elas fossem prejudiciais à segurança ou à defesa pública, ou que pudessem significar vantagem ao oponente.

Então, em 1º de julho de 1940, as Ordens de Sigilo para as patentes passaram a vigorar e foram impostas até o fim da Segunda Guerra (1945), afetando mais de 11 mil pedidos de patentes, que foram submetidas à revisão de classificação. Isso representou mais de 50% de todos os pedidos de patentes apresentados ao USPTO naquele período. Destes, 75% foram realmente colocados em sigilo.

As Ordens de Sigilo proporcionaram, por exemplo, que a patente de Enrico Fermi sobre o processo de produção de radioisótopos (US2206634) fosse publicada cinco anos depois de seu depósito, mas com severas modificações, que incluíram resultados experimentais detalhados sobre todos os 92 elementos químicos. Ela foi concedida em 2 de julho de 1940 e reivindicava direitos apenas sobre o processo de geração de nêutrons lentos, para estar em conformidade com a legislação de patentes dos EUA, que distingue entre um processo e um produto.

Com isso, uma segunda patente de Fermi, que versava sobre uma pilha nuclear, foi indeferida porque seu funcionamento baseava-se fortemente na patente anterior e, então, não dispunha dos requisitos de patenteabilidade. No entanto, ela era um precursor do principal instrumento para a produção de radioelementos e energia nuclear após a Segunda Guerra Mundial.

Devido ao sigilo do Projeto Manhattan, Fermi foi obrigado a vender todas as patentes relativas às pilhas nucleares por um dólar cada. Ele reivindicou por anos uma indenização pelo uso da patente do nêutron lento e, finalmente, conseguiu um acordo, em 1953, conseguindo US$ 300 mil. Graças a esse acordo, as empresas associadas à Comissão de Energia Atômica dos EUA tinham uma licença gratuita para produzir radioisótopos. Empresas como a Westinghouse e a General Electric podiam explorar a produção de radioisótopos em um mercado em rápido desenvolvimento e sem dever royalties aos inventores, o que as torna as verdadeiras vencedoras dessa disputa por direitos de propriedade intelectual (para mais informações, leia The invisible businessman: Nuclear physics, patenting practices, and trading activities in the 1930s, de S. Turchetti).

Esse é um exemplo, mas entre as 11 mil patentes em sigilo, havia diversas outras, por exemplo, sobre radares, que tinham o poder de mudar os rumos da guerra para o lado que as possuíssem, como publicado uma semana após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki no The New York Times.

Estratégia

Diferente do que ocorre com os EUA, manter patentes em sigilo não é uma previsão legal na maioria dos países. No entanto, existem diversas maneiras de se fazer uso dos direitos de propriedade intelectual, principalmente de patentes, para promover instabilidade em países rivais.

Considerar os direitos de propriedade intelectual como estratégia de guerra é eficaz por propiciar poder de uma nação sobre outras economias. Nações que utilizam perspicazmente o sistema patentário podem "militarizar" o desempenho comercial, impactando o de outros países, por meio das diversas formas de utilização das patentes como regulador do comércios; por exemplo, criar cerca de patentes para impedir desenvolvimentos industriais e comerciais, impor royalties muito altos sobre produtos e serviços importantes ou conduzir litígios desgastantes e caros, que minam o poder econômico e criam instabilidade e insegurança jurídicas.

Além disso, um baixo desempenho comercial impacta o desenvolvimento de diversos setores, principalmente, educação, saúde, tecnológico e  desenvolvimento sociocultural, o que é a receita para mudar as perspectivas de uma sociedade.

Os EUA, que têm sua economia fortemente baseada em inovação, tecnologia e conhecimento, utilizam seu sistema de patentes e sua influência global para proteger seus interesses econômicos e, assim, interferir na economia de outras nações. Eles mantêm uma "Lista de Observação", o Special 301 Report, que apresenta uma revisão anual do estado global dos direitos de propriedade intelectual com o fim de incentivar e manter ambientes propícios à inovação e à proteção eficaz de propriedade intelectual em mercados em todo o mundo. O relatório ainda identifica países que, na visão dos EUA, não protegem adequadamente os direitos de propriedade intelectual norte-americanos. A inclusão de um país nesta lista funciona como uma forte pressão diplomática e econômica, uma vez que esse país fica suscetível a sanções comerciais e pode enfrentar dificuldades em acordos comerciais com os EUA.

O Brasil esteve na lista por muitos anos. Nesse período, sofreu uma pressão dos EUA para harmonizar a lei de propriedade intelectual ao TRIPS imediatamente, culminando com a promulgação da nossa LPI 9.279/96. Dentre as mudanças, ela conferiu proteção de patentes, especialmente para produtos farmacêuticos, beneficiando as grandes empresas norte-americanas do setor.

No entanto, estamos vivendo um outro lado da compreensão brasileira destes dispositivos. Com a lei da reciprocidade 15.122/2025, regulamentada pelo Decreto 12.551/2025, o Brasil vislumbrou uma estratégia para negociar a imposição do tarifaço norte-americano às exportações brasileiras para aquele país, tendo uma forma legítima de regular exatamente este mercado farmacêutico por meio de licenças compulsórias a patentes relevantes de medicamentos, impostas como retaliação.

Atualmente, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia também tem envolvido estratégias de manipulação de direitos de propriedade intelectual como uma forma de desestruturar os oponentes. Em 2022, o governo russo emitiu um decreto determinando que as empresas russas não seriam mais obrigadas a indenizar os titulares de patentes de países "hostis". Essa suspensão de direitos de propriedade intelectual não ocorre desde o fim da Primeira Guerra Mundial, quando, após a guerra, a marca Aspirina, da empresa farmacêutica alemã Bayer, foi cedida aos EUA, França, Reino Unido e Rússia, como parte das reparações de guerra acordadas no Tratado de Versalhes.

Hoje, na Rússia, pode-se ter notícias de marcas de restaurantes similares à do McDonald's (procure pela marca do Uncle Vanya), numa infração visível à marca mundialmente conhecida. E isso tem um significado muito maior, pois, na década de 1990, com o fim da Guerra Fria, o McDonald's abriu o maior restaurante do mundo no coração da Rússia, como um monumento claro à vitória do capitalismo sobre o socialismo.

A Ucrânia também já anunciou e publicou informações sigilosas sobre uma usina nuclear russa. Sua lei de patentes prevê, a exemplo da lei norte-americana, que uma patente pode ser mantida em segredo por até 30 anos. No entanto, esse período não pode superar a vigência da patente, que é de 20 anos. Há, aqui, uma preservação da essência do sistema patentário, que é entregar toda inovação ao domínio público ao fim da vigência da patente.

O sistema de proteção da propriedade intelectual tem muitas possibilidades e é muito poderoso no que tange propiciar melhores condições de vida em todo o mundo. No entanto, pode também significar uma importante vantagem em tempos de guerra e pode ser usado também para dificultar o desenvolvimento de uma nação. Nos resta ter fé de que os líderes do nosso mundo sempre coloquem os interesses humanitários à frente de qualquer razão de guerra.

 

Tatiana Duque Martins Ertner de Almeida é professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (IQ/UFG), coordenadora de Internacionalização do IQ, mantém linhas de pesquisa sobre propriedade intelectual, projetos de extensão de PI no ensino básico e coordena o curso de especialização em Propriedade Industrial da UFG.

 

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