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Universidade Federal de Goiás
Aline Carrijo

Um diamante escondido do sertão goiano

Em 05/09/25 10:00. Atualizada em 05/09/25 10:26.

Sertão sem fim, de Bariani Ortencio, inaugura Coleção Biblioteca Goiana da Editora UFG

Aline Fernandes Carrijo

O que significa ter "paciência de goiano"? A expressão, aparentemente simples, ganha camadas de significado no universo criado por Bariani Ortencio no livro Sertão sem fim. Nele, a referida calma não quer dizer resignação, mas, sim, uma sabedoria própria do homem sertanejo, que sabe esperar o momento certo para agir.

Publicada pela primeira vez em 1965, a obra, em que estão reunidos 11 contos e uma novela, foi eleita para inaugurar a Coleção Biblioteca Goiana da Editora UFG. A nova empreitada preenche uma lacuna importante na preservação e no acesso a textos fundamentais para a história de Goiás e do Brasil, não apenas na literatura, mas também em áreas como história, crítica literária e sociologia.

E a escolha de Sertão sem fim como pontapé inicial não poderia ser mais certeira. Ao retratar os paradoxos do espaço cultural goiano sem romantismos ou condescendência, Bariani Ortencio nos oferece importantes chaves interpretativas para um pensamento crítico sobre a formação da região.

Nascido em Igarapava (SP), o autor se mudou para Goiânia em 1938, com 15 anos de idade, e fez da cidade sua casa. Ao longo da vida, foi de tudo um pouco: alfaiate, jogador do clube de futebol Atlético Goianiense, professor, comerciante, fazendeiro. Nessa trajetória, tornou-se um profundo conhecedor da cultura do Brasil Central, capaz de captar nuances da vida sertaneja que, muitas vezes, escapam a observadores externos.

Personagens além dos estereótipos

Os personagens estão entre os grandes destaques de Sertão sem fim. Bem distantes dos estereótipos caricatos, comumente associados aos habitantes do sertão, eles são pessoas complexas e contraditórias. As mulheres de Bariani são fortes sem serem santas. Os homens, corajosos sem serem heróis. Todos carregando suas incoerências e conflitos.

Chico Benzedor é um deles. Além de sua sabedoria ancestral, exerce um poder político alternativo diante do poder econômico do coronel João Galdino. A complexidade do personagem não passou despercebida aos pesquisadores, que exploram o benzedor como símbolo de resistência cultural e sincretismo religioso.

Gilson Xavier de Azevedo e Simone Maria Zanotto afirmam que a figura de Chico oferece uma resposta prática às necessidades de comunidades rurais com acesso limitado aos serviços da área de saúde. Diante dessa situação, a oralidade e a fé mantêm-se como tradições culturais vivas e necessárias.

As mulheres também possuem um lugar especial nas páginas de Sertão sem fim. Tianinha, em A mulher do Elpídio – cuja ironia do título é percebida ao longo do conto –, pode até se submeter às aparências sociais, mas não deixa que isso se sobreponha à sua astúcia e inteligência comercial. Sua postura, firme e convicta, é o enredo da história, mas também aparece nos detalhes, como em uma simples resposta:

 

"Já com seis anos de casados, muita dança e filho mesmo que é bom, nenhum. Elpídio censurava, culpava Tianinha por isso, e ela, muito despachada, respondia que o defeito poderia ser dele, porque a sua família era de mulheres todas parideiras, criadeiras de filhos".

 

A personagem de Donana, em Os Pereira, também é descrita de maneira imponente, "um mulherão, danada de faladeira, sabedora de tudo, e com a mesma energia para o trabalho". Essas imagens revelam mulheres como agentes ativos da realidade sertaneja, mostrando como a subversão feminina resistia cotidianamente ao machismo estrutural.

Formados pela "escola do mundo", os dilemas enfrentados pelos personagens extrapolam, portanto, as fronteiras locais. Além da resistência feminina e do conhecimento popular como forma de poder, outro tema que aparece em mais de um conto é a esperança inabalável trazida pelo vício do garimpo. Ele consome o protagonista de O patuá, Izidoro, assim como Josino, que não larga o sonho de "enricar".

 

Bariani Ortencio

Bariani Ortencio recebeu o título de doutor honoris causa pela UFG (Foto: Adriana Silva)

 

Entre o universal e o particular

Se os temas tratados no livro transcendem o regionalismo, as histórias estão emaranhadas nas especificidades do sertão goiano.

Bariani foi um profundo conhecedor da cultura local e do Centro-Oeste brasileiro. Um conhecimento que veio da convivência diária com quem vivia essa realidade. Ele sabia os nomes das plantas, dos costumes, das receitas caseiras e das histórias que passam de pai para filho. Sua história de vida, diversa, sem dúvidas também contribuiu para que ele pudesse contar causos tão diferentes.

Seu olhar atento e sensível, capaz de captar a beleza da flora e da fauna da região, somou-se a outra habilidade: a da pesquisa. Bariani é autor de obras como A Cozinha Goiana, com cerca de mil receitas e histórias, e O Dicionário do Brasil Central, com mais de 14 mil verbetes, sobre linguagem, usos, costumes, folclore e a toponímia dos municípios goianos. Ainda escreveu Cartilha do Folclore Brasileiro, demonstrando a importância de preservar e valorizar a cultura popular com abrangência nacional.

O narrador como guia do sertão

Toda essa trajetória parece se concretizar na figura interessantíssima do narrador em cada uma das histórias. Ele varia de narrativa a narrativa. Ora onipresente, por vezes intrometido, muitas vezes reflexivo, julgador ou provocativo. Em Primeira segunda-feira de agosto, ele já começa atiçando:

 

"O senhor é supersticioso? Não? Que coisa mais boa! Imagina só se fosse. Mesmo assim o senhor vai ver como as coisas acontecem neste mundo cheio de superstição".

 

Sobre o garimpo, em O Patuá, não há meias palavras para falar sobre a estupidez do vício: "O garimpo é um vício tão capital quanto a cachaça, pior que o tabagismo e não há baralho que chegue perto. É o vício da ambição pelo trabalho estúpido a céu aberto", afirma.

Em A busca, na figura de um entrevistador, ele se surpreende com a incapacidade do protagonista Limírio de se encantar com a paisagem e com a beleza e diz, sem rodeios:

 

"Casinha poética, saudável, romântica para os que passam. Mas para o Limírio e os seus que moram lá dentro, o quadro é pelo avesso. Não reparam em nada disso. Os seus olhos não veem a força da natureza, não sabem fazer poesia".

 

Logo em seguida, no entanto, se redime, ao valorizar o que de fato importa para o personagem:

 

"Para ele a chuva-de-ouro é apenas um pé de flor, assim falando, displicentemente. Mas quando lhe perguntam como foi aquela estória da busca do Zé da Conceição, então o velho se ilumina, abre a cara e pisca os olhinhos miúdos, remexendo-se como moça assanhada, procurando o tamborete para sentar-se. Aí se esquece das agruras da vida, da doença da mulher, da perrenguice dos meninos e da dele mesmo, e garra a contar".

 

Ao longo dessa história, a única novela do livro, a incapacidade de Limírio de se encantar parece se transformar, na verdade, na necessidade de falar, no incômodo que ele carrega por dentro – talvez o maior arrependimento da sua vida. A impossibilidade de se surpreender se traduz na impossibilidade de superar o insuperável, aquilo que não tem volta.

A arte de contar histórias

E é assim, com temas universais, e ao mesmo tempo tão locais; personagens construídos na simplicidade e com bases tão complexas; e com uma capacidade imensa de nos absorver nas histórias, que Sertão sem fim constrói as infinidades de significados do sertão goiano.

O crítico português Adolfo Casais Monteiro, em 1959, em texto reproduzido nessa edição, talvez tenha definido a mais importante característica de Bariani como escritor: "esse indefinível dom que transporta o leitor ao próprio coração das histórias que nos são contadas".

Como o segredo que o velho Benedito guardava no patuá, seu amuleto especial, essas histórias estavam esperando para serem redescobertas por novos leitores.

 

Aline Fernandes Carrijo é jornalista e historiadora, mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

 

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Fonte: Editora UFG

Categorias: artigo Humanidades Editora UFG