Pesquisa investiga como saberes sobre plantas medicinais resistem ao avanço urbano
Conhecimento tradicional ensina sobre biodiversidade, autonomia na saúde e fortalecimento de laços comunitários

Tradição e resistência: folhas e raízes em exposição no comércio popular no centro de Goiânia (Foto: Gabriel Aires Peixoto)
Anna Paulla Soares
A forma como os saberes populares sobre plantas medicinais sobrevivem em meio ao imediatismo de uma capital planejada é o tema central de uma pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade (PPGProCidade) da Universidade Federal de Goiás (UFG). O estudo buscou entender como a farmácia do povo, baseada em plantas medicinais, resiste às pressões da modernidade.
A dissertação de Gabriel Aires Peixoto de Lima, orientado pela professora Adriana Mara Vaz de Oliveira, é intitulada Apagamentos, resistências e transformações dos saberes medicinais com plantas em Goiânia e revelou como o conhecimento tradicional se adapta, enfrenta a mercantilização e resiste em espaços que vão de quintais domésticos a mercados públicos.
A relação do pesquisador com as plantas medicinais começou em sua infância, nos quintais da avó Marisa, em Aragarças (GO). Essa familiaridade com o universo das plantas foi fundamental para a abordagem em campo, que durou de março de 2023 a junho de 2025. "Em vez de ir a campo com um roteiro rígido, eu ia para a rua com uma estrutura flexível, buscando mais escutar do que falar", explica o autor.
Gabriel afirma que pesquisar os saberes com plantas na capital é uma forma de questionar o modelo de cidade que está sendo coletivamente construído. "A manifestação dos saberes com plantas na paisagem urbana nos ensina sobre biodiversidade, autonomia na saúde e fortalecimento de laços comunitários". Para ele, o grande desafio para arquitetos, urbanistas e gestores públicos é aprender com esses pequenos territórios de cultivo e criar políticas que protejam e incentivem sua existência na cidade.

Comércio ambulante de plantas medicinas disputa espaço na cidade (Foto: Gabriel Aires Peixoto)
O processo de pesquisa
A metodologia etnográfica combinou observação e entrevistas semiestruturadas com raizeiros, comerciantes e consumidores. Um diferencial foi o uso de desenhos e fotografias para captar a cultura material da pesquisa. "As embalagens dos remédios, a estética dos quiosques, a forma como as ervas são expostas e até mesmo a caligrafia de um letreiro são narrativas visuais", afirma o pesquisador, destacando que esses detalhes, que podem passar despercebidos, foram fundamentais durante a experiência.
A pesquisa identificou uma tensão entre um saber integrado, vivido nos quintais – espaços de cultivo –, e um saber fragmentado, encontrado nos espaços de comércio. O quintal doméstico representa o conhecimento completo, onde a pessoa planta, cuida, colhe e prepara o próprio remédio. "No quintal, o conhecimento é completo. É um saber que está incorporado na vivência e na relação direta com a natureza", detalha Gabriel.
Em contrapartida, nos mercados e feiras, esse saber aparece de forma segmentada. "O vendedor pode conhecer a indicação de uma casca seca, mas talvez nunca tenha visto a árvore de onde ela veio. O consumidor, por sua vez, adquire um produto já processado, distanciando-se da origem".
É nesse ponto que a dissertação revela seu paradoxo central: em uma cidade que suprime cada vez mais o contato com a natureza, o mercado se torna o principal ponto de acesso às plantas, mas esse processo acelera a descontextualização do saber. A fiscalização da Vigilância Sanitária intensifica essa dinâmica.
Segundo o autor, a exigência de rotulagem e padronização marginaliza as práticas artesanais, como a produção de garrafadas. "A regulação empurra o saber tradicional para a informalidade ou o força a se vestir com a roupagem da indústria para sobreviver no espaço formal", conclui.

Gabriel mapeou os locais de venda de plantas medicinas no centro (Imagem: Reprodução)
Quem busca a cura nas plantas?
Segundo o pesquisador, o público consumidor é extremamente diverso, indo de idosos que mantêm receitas de família a jovens que buscam alternativas à medicina convencional. O que os une, para ele, são alguns fatores-chave: uma forte herança cultural e afetiva, a busca por autonomia e uma visão integral da saúde ou uma desconfiança crescente em relação à indústria farmacêutica.
Entretanto, há um outro fator imprescindível: a fé. "Como uma das comerciantes me disse em campo, a planta cura quando a pessoa acredita no poder dela", relata o autor.
De acordo com Gabriel, as mulheres continuam sendo o público principal, buscando o cuidado não apenas para si, mas para toda a família. Na pesquisa, ele escolheu priorizar as narrativas femininas como uma maneira de "combater o silenciamento e o apagamento que essas detentoras de conhecimento sofreram ao longo da história".
Um legado geracional
A continuidade dessa tradição depende, crucialmente, da imersão cotidiana. A pesquisa contrastou o desinteresse de jovens que veem a prática como algo desconectado da vida urbana com o caso de continuidade do filho da raizeira Liliane, que cresceu participando ativamente do ofício no quiosque da família no Setor Central.
"A transmissão acontece quando o conhecimento é parte integrante do ambiente e da vivência, e não apenas uma herança que precisa ser 'resgatada' de forma abstrata", analisa Gabriel, que também sugere o papel da escola como um espaço para reconectar as crianças com a natureza.
É necessário que haja diálogo entre um quintal doméstico e um jardim medicinal institucional, por exemplo, na manutenção desses saberes populares. Em uma visita ao Espaço Energia Desenvolvida em Equilíbrio com o Meio (Edem/UFG) – local dentro da Universidade que abriga, entre outros tipos de preservação, as plantas medicinais –, o pesquisador conheceu estudantes do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) vindos de assentamentos rurais e comunidades com forte tradição no uso de plantas.
"Eles me contaram que utilizam o jardim medicinal do Edem para obter insumos para seus próprios remédios caseiros. Ou seja, um espaço de saber sistematizado acaba servindo como subsistência e apoio para a manutenção do saber tradicional de seus alunos".
Ao final, a "farmácia viva" de Goiânia, documentada na dissertação, não é apenas sobre plantas, mas sobre identidade, memória e resistência. A pesquisa questiona o modelo de cidade que estamos construindo e revela a urgência de reintegrar a natureza ao dia a dia. Ela mostra que, mesmo em uma paisagem de concreto, as raízes da cultura popular continuam a buscar espaço para brotar, curar e ensinar.
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Fonte: Secom UFG
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