Especialistas alertam para a urgência climática no bioma mais ameaçado do Brasil
Painel no Conpeex abordou os efeitos já comprovados pela ciência e defendeu a criação do Instituto Nacional do Cerrado
Luiz Felipe Fernandes
No Cerrado cada vez mais quente e seco, o tamanduá-bandeira – um dos animais símbolos do bioma – sofre para controlar a temperatura corporal. As mudanças climáticas também estão alterando o ciclo reprodutivo da pequena rã Boana albopunctata, cujo canto de anúncio, emitido pelos machos para atrair as fêmeas, depende diretamente de condições estáveis de temperatura e umidade. O desajuste também afeta o pau-terra, árvore cuja floração é sincronizada com o início das chuvas e agora ocorre de forma cada vez mais irregular.
Os exemplos dados pelo professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Paulo De Marco, ilustram a gravidade das transformações em curso no bioma. As observações foram apresentadas durante o painel Ciência no calor do Cerrado: a mudança do clima e o bioma mais ameaçado do Brasil, realizado na última quarta-feira (5/11) como um dos momentos centrais do 22º Congresso de Ensino, Pesquisa e Extensão (Conpeex) da UFG.
Moderado pela reitora Angelita Pereira de Lima, o evento reuniu pesquisadores de diferentes áreas para debater os impactos das mudanças climáticas no bioma e as estratégias necessárias para mitigação e adaptação.
Savana mais biodiversa do planeta
O pesquisador Gabriel Selbach Hofmann, da Plataforma Internacional para Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (Pictis), de Portugal, enfatizou a importância global do Cerrado, que, com cerca de 320 mil espécies estimadas, é considerado a savana mais biodiversa do planeta, abrigando quase o dobro de espécies do continente europeu, em uma área cinco vezes menor. Além disso, o bioma é fundamental para a hidrologia nacional, sendo o berço de oito das 12 principais bacias do Brasil.
Gabriel apresentou dados que confirmam que o Cerrado está se tornando mais quente e seco. Ele demonstrou que os recordes de temperaturas máximas ocorreram nos últimos 20 anos, com diminuição da chuva, observada em 54 das 70 estações pluviométricas analisadas. Os efeitos são a intensificação e o prolongamento da estação seca, que tem se estendido até o início de novembro.
"A mudança climática no Cerrado não é uma questão que a gente vai enfrentar no futuro, ela é um problema da nossa atualidade", alertou. O pesquisador também mostrou que a vazão dos rios, incluindo o Araguaia, diminuiu abaixo da média nos últimos dez anos, e essa redução é mais rápida do que a diminuição da chuva.
O professor Angel Chovert, do Instituto de Física (IF) da UFG e meteorologista do Cempa-Cerrado, explicou que o bioma está numa localização intermediária na América do Sul, onde a maioria dos sistemas meteorológicos se manifestam, tornando-o especialmente vulnerável.
Ao mostrar o aumento das emissões de dióxido de carbono na atmosfera – um dos principais gases do efeito estufa –, Angel ressaltou a urgência em agir, sobretudo de modo preventivo. "Lamentavelmente precisamos chegar ao ponto de sentir na pele os efeitos e a manifestação das mudanças climáticas para começar a pensar com mais interesse e para começar a realizar ações que realmente contribuam para mitigar e adaptar".
Extinção de espécies
Paulo De Marco ressaltou o fato de que os impactos climáticos não ocorrem isoladamente, mas são potencializados pelas modificações no uso do solo. "A única coisa que nós não podemos esquecer é que quaisquer desses efeitos não acontecem independentemente das mudanças de uso do solo da expansão da agricultura. Eles estão todos interligados, porque o sistema é um só".
Gabriel Hofmann acrescentou que essas alterações atingem todos os níveis da organização ecológica, desde o superaquecimento de indivíduos e a desidratação, até a redução da atividade diurna de mamíferos e a incompatibilidade fenológica entre plantas e polinizadores.
Agronegócio sustentável
O agronegócio foi identificado como um vetor que impulsiona o aquecimento no Cerrado, mas também como uma atividade econômica importante que se vê prejudicada pelas mudanças climáticas. Angel Chovert observou que o produtor agropecuário parece estar mais aberto a receber informação científica para melhorar os processos produtivos.
Em termos de justiça climática, Paulo De Marco destacou que a agricultura familiar, responsável por 70% da comida brasileira, e os povos originários e quilombolas são os mais vulneráveis. No entanto, esses grupos também podem ser detentores de soluções. O professor citou o conhecimento ancestral, como o uso de sementes crioulas, que podem conter o genoma de plantas mais resistentes aos efeitos climáticos.
Instituto Nacional do Cerrado
O debate culminou com a defesa do Instituto Nacional do Cerrado (INC), uma proposta liderada pela UFG e outras universidades do bioma para criar uma unidade de pesquisa ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A proposta já é endossada por 26 universidades e institutos de sete estados do Cerrado e será levada à COP30, em Belém.
A reitora Angelita Pereira de Lima destacou a urgência de que o bioma seja discutido em nível mundial. "Não existe Cerrado sem Amazônia e não existe Amazônia sem Cerrado. Por isso, é urgente que o mundo, na COP 30, olhe para o Cerrado. São dois territórios, mas um só futuro", disse.
Na ocasião, o professor Laerte Guimarães, do Laboratório de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento (Lapig) da UFG, falou sobre a campanha Eu apoio a criação do Instituto Nacional do Cerrado, como forma de mobilizar as instituições e a sociedade para a efetivação do projeto.
Laerte destacou que o INC deve ser capaz de capitalizar o conhecimento e produzir ciência para uso do Estado brasileiro, focando em políticas públicas e lacunas de conhecimento, como a restauração de ambientes alterados.
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Fonte: Secom UFG
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