Como raça, classe e região definem quem usufrui dos direitos reprodutivos no Brasil
Professora da UFG aborda seletividade no acesso aos serviços de saúde por pessoas que gestam
Anna Paulla Soares
No Brasil, a urgente discussão sobre os direitos à saúde sexual e reprodutiva de pessoas que gestam parece não ter fim. Enquanto aquelas com mais recursos navegam por um sistema de escolhas, outras – de cor, classe e endereço bem definidos – enfrentam um labirinto de barreiras que vão desde privação de contraceptivos nos postos de saúde até violência obstétrica e risco de morte por um aborto inseguro.
A cientista social Mariana Prandini Fraga Assis, professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS/UFG), afirma que a desigualdade é, hoje, o principal obstáculo que impede a plena cidadania reprodutiva das mulheres brasileiras, mas que é necessário entender as particularidades de cada situação.
"Não dá para falar de barreiras ou dificuldades de acesso de uma forma universalizada, porque a capacidade das mulheres e outras pessoas que gestam de usufruir de direitos reprodutivos e acessar políticas na área da saúde reprodutiva depende muito de quem são essas mulheres", explica Mariana, destacando a importância dos recortes de raça, classe, orientação sexual e localidade para entender as desigualdades de acesso.
Segundo a professora, os serviços de aborto legal, por exemplo, estão concentrados nas regiões Sul e Sudeste e, principalmente, nas áreas urbanas, dificultando o acesso da população que vive no campo. Esse fato ilustra a disparidade no acesso, que é restringido à determinada localização geográfica e/ou classe social.
A desigualdade social é revelada quando se observa que mulheres pretas e pardas são as maiores vítimas de violência obstétrica – uma forma de violência de gênero que consiste na apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher por profissionais de saúde, por meio de tratamento desumanizado e medicalização excessiva durante a gravidez, o parto ou o pós-parto.
A falta de financiamento público também afeta diretamente a qualidade e a disponibilidade de serviços de saúde reprodutiva. "Para as mulheres e pessoas de gênero diverso que dependem do SUS, haverá uma série de dificuldades produzidas por falta de recursos financeiros", detalha a docente.

Aborto inseguro, ainda que legal
O boletim epidemiológico do Ministério da Saúde lançado em 2023, que registrou os óbitos maternos entre 2010 e 2021, revela que o aborto está entre as cinco principais causas de mortalidade materna, e relaciona-se a aproximadamente 5% do total de óbitos maternos. Esses dados ilustram como a criminalização do aborto pode acarretar consequências graves para a saúde e a vida das mulheres e outras pessoas que gestam, especialmente as que vivem em situação de vulnerabilidade.
As pessoas que precisam realizar um aborto e não podem acessar o serviço de forma legal acabam procurando-o clandestinamente. Segundo a professora, o aborto clandestino não necessariamente é um aborto inseguro, e o que os diferencia é, muitas vezes, o poder aquisitivo da pessoa que precisa fazê-lo. Diante desse impasse, mulheres, em sua maioria brancas e de classe média, podem pagar por um atendimento médico de qualidade, enquanto mulheres periféricas precisam buscar esse procedimento em espaços, em sua maioria inseguros, em situações de medo e violência.
A pesquisadora também faz um alerta para nos atentarmos a um outro lado da criminalização: ela não só afeta as mulheres que passam por um aborto induzido, mas também estigmatiza aquelas que sofrem um aborto espontâneo. "Se o aborto é crime e é algo que não deve acontecer, como é que isso impacta o serviço de saúde, transformando-o em um lugar de policiamento e controle?", questiona.
Ela afirma que médicos, enfermeiros e assistentes sociais que trabalham na área da saúde acabam arrogando para si o dever de investigar se as pessoas aguardando por atendimento induziram um aborto ou se aquele aborto foi espontâneo. Nessa situação, a criminalização transforma o sistema de saúde em um sistema de vigilância e punição.
"Elas são discriminadas no tipo de tratamento que recebem. Muitas vezes, chegam com sangramento e dor no serviço de saúde. Por estarem em uma situação de abortamento, são as últimas da fila a serem atendidas. Dá-se preferência àquelas que estão em outras situações de necessidade de cuidado obstétrico", relata.
Ao relacionar diretamente a criminalização do aborto com os altos índices de mortalidade materna, Mariana destaca o contexto de medo e insegurança vivido por muitas mulheres, que acabam morrendo ao temer buscar um serviço e sofrer maus-tratos por profissionais da saúde que deviam tratá-las sem julgamentos, pois não cabe a eles esta função.
Maternidade: entre a negação e a imposição
A professora da UFG ainda explica sobre as expectativas sociais construídas sobre as mulheres de acordo com suas identidades: "Por um lado, mulheres pretas, pardas e indígenas no Brasil vivenciaram historicamente e continuam a vivenciar ainda hoje a negação da sua maternidade. Essas mulheres são vistas como mulheres que não devem ser mães, que não podem e não devem aspirar ou acessar a maternidade".
Mariana destaca como mulheres em situação de rua ou dependentes químicas são frequentemente submetidas à esterilização forçada, ou seja, a intervenções médicas que colocam fim à sua capacidade reprodutiva sem o seu consentimento. Por outro lado, para mulheres brancas de classe média, há uma forte expectativa social para que se tornem mães, e a rejeição desse papel gera outras formas de controle e violência.
Além disso, as políticas públicas são desiguais, fortalecendo a assistência materno-infantil em detrimento de políticas de planejamento familiar, contracepção e aborto legal, reforçando a ideia de que o papel primordial da mulher é ser mãe.
"Quando a gente fala de planejamento familiar, é um planejamento que deve envolver toda a família. Então, as parceiras dessas mulheres também deveriam estar implicadas no planejamento e no processo de contracepção", afirma a docente, ressaltando como os contraceptivos podem trazer uma série de consequências para a saúde da mulher, que deve ter o direito de decidir, inclusive, qual é a forma como deseja cuidar de sua saúde reprodutiva.
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Fonte: Secom UFG






