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Universidade Federal de Goiás
luís augusto vieira

Quando o medo reinventa a cidade: o caso de uma rua tranquila em Goiás

Em 19/12/25 08:57. Atualizada em 19/12/25 09:12.

Pesquisas mostram que o medo contemporâneo é menos consequência da experiência e mais resultado de discursos que amplificam inseguranças

 

Luís Augusto Vieira*

 

Há dez anos moro em uma rua pacata na cidade de Goiás-GO. Uma década inteira em que nunca houve um chamado à polícia, nenhum furto, nenhum roubo, nenhum episódio que justificasse preocupação dessa natureza. É o tipo de lugar onde todos se cumprimentam, onde as crianças brincam na rua, onde o tempo parece correr mais devagar. Mas, curiosamente, é justamente agora – quando nada mudou nos índices reais de violência – que tudo parece ter mudado, ao menos no comportamento dos moradores.

 

luís augusto vieira
Foto: Divulgação

Atualmente, motociclistas de empresas de segurança privada, passam noite e madrugada, fazendo rondas regulares pela rua; diversas casas instalaram câmeras nas fachadas; em outras residências, pequenas varandas foram fechadas com grades e até aqui em casa, colocamos novas fechaduras na porta. A pergunta é inevitável: se nada aconteceu, por que estamos agindo como se algo estivesse para acontecer?

A cena da minha rua não é exceção. Ela expressa um fenômeno que avança silenciosamente pelo país: a cultura do medo. Trata-se da adoção de medidas de segurança que não respondem a riscos concretos, mas a uma sensação difusa de ameaça.

Pesquisadores mostram que o medo contemporâneo é menos consequência da experiência e mais resultado de discursos (midiáticos, políticos, comerciais) que amplificam inseguranças e as transformam em estado permanente de alerta. Nesse ambiente, qualquer lugar pode parecer perigoso, mesmo que a realidade diga o contrário.

O medo, hoje, é contagioso. Basta uma casa instalar câmeras para que outras façam o mesmo. Basta a ronda de uma empresa privada para que a vizinhança conclua que a rua está vulnerável. Basta uma grade para que outras surjam. Em pouco tempo, a paisagem se altera. O curioso é que o perigo não precisa existir para que sua sombra produza efeitos. Efeitos materiais: novos gastos, novas estruturas, novas tecnologias de vigilância. Efeitos subjetivos: retração do convívio, desconfiança, fechamento.

E o medo tem donos e rende dividendos.

O mercado de segurança privada cresce aceleradamente, mesmo em cidades pequenas onde a violência é baixa. Ao mesmo tempo, discursos políticos que exploram a sensação de insegurança ganham fôlego, mobilizam apoios e justificam medidas cada vez mais duras.

 

Cidade de Goiás

Foto: Luís Augusto Vieira

 

Quando a grade substitui o abraço, e a câmera substitui a conversa na calçada, a cidade se torna menos cidade e mais coleção de fortalezas individuais. A vida pública se esvazia. Os vínculos se afrouxam. O mais preocupante é que essa transformação não decorre de fatos, mas de percepções. Estamos reorganizando nossos modos de viver por medo de algo que, muitas vezes, não aconteceu e talvez jamais aconteça.

A rua onde moro continua tranquila, nada, objetivamente, mudou, mas... mudamos nós.

Se uma comunidade que nunca vivenciou episódios de violência se equipa como se estivesse sob risco permanente, isso diz muito menos sobre a criminalidade e muito mais sobre o país que estamos nos tornando: um país que se fecha, que desconfia, que naturaliza a vigilância e que perde a capacidade de construir segurança por meio da convivência, e não da blindagem.

A pergunta que fica é simples e urgente: quem queremos ser, uma sociedade movida pelo medo ou uma sociedade movida pela solidariedade e o cuidado?

Enquanto a resposta não chega, seguimos instalando câmeras, gradeando fachadas e trancando portas que nunca precisaram ser trancadas.

 

*Luís Augusto Vieira é coordenador e professor do curso de Serviço Social, Câmpus Goiás da Universidade Federal de Goiás

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Fonte: Secom UFG

Categorias: Opinião artigo Goiás segurança