Informação e tecnologia barata para o campo
Patrícia da Veiga e Roberto Nunes
A mesa-redonda da edição de abril do Jornal UFG debate o tema da soberania alimentar como única alternativa à crise de abastecimento que se alastra no mercado global de commodities (ou seja, dos produtos básicos para a produção de alimentos). Para tanto, foram convidados os professores da Escola de Agronomia e Engenharia de Alimentos (EA) Sônia Milagres, doutora em Economia Rural pela Universidade de Purdue (EUA), e Gabriel Medina, doutor em Ciências Ambientais e Florestais pela Universidade de Freiburg (Alemanha); o engenheiro agrônomo do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Rodrigo Gonçalves e o líder nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dirceu Fumagalli. Consenso entre os entrevistados foi a necessidade urgente de se construir formas de autonomia, sobretudo, entre os pequenos produtores. Isso, apontaram eles, depende do envolvimento tanto das instituições públicas como da própria sociedade para disseminar informação e fortalecer a produção de tecnologia barata. Esse é o desafio.
A quem a crise no mercado de alimentos atinge mais diretamente?
Sônia Milagres – Como produtos da alimentação básica são commodities, a população em geral é afetada e a insegurança alimentar prevalece. Mais frágeis são as populações que empregam na alimentação a maior parte de sua renda. Os mais pobres são vulneráveis porque têm menos capacidade de fazer substituições, não indo além da alimentação básica necessária. Mas, nós, no Brasil e em Goiás, somos detentores de tecnologia e capacidade produtiva. Nosso problema é a logística, determinante dos mercados atuais de alimentos.
Goiás é um grande produtor de carne e soja. Como podemos entender a dinâmica das commodities, na maior parte produzidas para exportação?
Sônia Milagres – Os mercados agrícolas têm o componente da demanda, que precisa ser levado em conta – seus clientes, seu consumidor e suas exigências de qualidade. O problema da qualidade tem muito a ver com a informação. Temos de conhecer melhor nossos mercados. Temos de ver até que ponto diferentes classes de renda, consumidores e destinos de produtos têm demandas diferenciadas de qualidade.
Que papel a reforma agrária tem na garantia da soberania alimentar do país?
Dirceu Fumagalli – Nunca produzimos tanto no país, mas isso não resolve o problema da alimentação. Isso porque a concentração das terras e o modelo de produção empresarial não têm como objetivo a superação da fome, mas o abastecimento do mercado. De acordo com o IBGE, mais de 70% daquilo que consumimos é oriundo da agricultura familiar. Portanto, o debate da reforma agrária é de suma importância.
O que é preciso para que um território se desenvolva de forma autônoma?
Gabriel Medina – Em Goiás, são mais de 13 mil famílias assentadas e 88 mil agricultores tradicionais. Esse é um potencial alto de produção de alimentos que garantiria nossa soberania alimentar. Mas falta desenvolvê-lo. Por exemplo, a média das pequenas propriedades nas áreas em que pesquisamos é de 20 hectares. Desses, 16 estão ocupados com pastagem. O restante, uma área muito pequena, é destinado a hortas, frutas e agriculturas. Temos, portanto, uma baixa diversificação produtiva e uma grande concentração da economia na criação e comercialização do gado de leite. E uma das razões para isso é o pouco apoio para esse segmento do campo. Menos de 30% dos agricultores recebem assistência técnica. E, quando recebem, é a visita do técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensa Rural (Emater), que elabora um projeto para se ter acesso ao crédito, não é assistência técnica de fato. O crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), por sua vez, chega a apenas 45% dos agricultores. Quanto às políticas de comercialização, apenas 13% dos produtores rurais têm apoio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e somente 16% deles comercializam para as prefeituras, com base na Lei nº 11.947, de junho de 2009, que determina às prefeituras que pelo menos 30% dos produtos da merenda escolar sejam adquiridos diretamente dos agricultores familiares.
Sônia Milagres – Diante desses números, tenho uma observação: se 45% dos agricultores têm acesso ao Pronaf, por que só 16% fazem correção e adubação correta do solo? Não seria interessante anexar a esse programa a exigência de que as tecnologias fossem adotadas? Pode ser que em muitos casos esses percentuais reflitam a não necessidade de adoção da tecnologia. Correção de solo pode ser algo que se faz em dois ou três anos, tendo efeito residual. É preciso que esses dados sejam mais apurados, que ampliemos nossas pesquisas, que tenhamos condição de acessar o maior número possível de agricultores, para podermos fazer algum tipo de proposição.
É possível produzir alimentos de qualidade sem recorrer a altos investimentos em tecnologia? E qual o papel da universidade nisso?
Rodrigo Gonçalves – Depende de qual tecnologia. A tecnologia não é neutra. O paradigma tecnológico é possível de ser apropriado democraticamente ou é para poucos? Essa é a questão. Estamos chegando a uma inflexão de que as pessoas precisam discutir o modelo da agricultura e o uso de insumos. Atualmente, os principais são: a água, fonte da maior crise ecológica no mundo; o fósforo, um elemento cujas reservas estão ficando escassas e que não se reciclam; os fertilizantes nitrogenados, que requerem muito petróleo e estão ficando caros. Temos muita especulação da terra, conflitos entre países e conflitos comerciais para adquirir terra. No Brasil, o governo está tomando medidas para limitar isso e enfrenta poderosos lobbies por essa razão. Esse modelo tem de ser repensado em favor de outro, que recicle insumos e tenha uma tecnologia de baixo impacto, a qual possa ser apropriada democraticamente; que não deixe o agricultor vulnerável e dependente de comprar e gastar recursos com um cartel de empresas. Uma ação do governo que precisa ser mais difundida é a linha do Pronaf chamada Mais Alimentos. Há parcerias do governo com empresas que produzem tratores e sistemas de irrigação de menor impacto e podem ser utilizados em pequenas propriedades. É uma linha de financiamento atrativa que empresta, para projetos individuais, até R$ 130 mil com juros de 2% ao ano e, para projetos de cooperativas, até R$ 500 mil, com a mesma taxa de juros. Mas, é preciso levar essa discussão para dentro das universidades e da Embrapa, para pensar em que tipo de tecnologia se deve investir e para atender qual paradigma produtivo, qual modelo.
Sônia Milagres – Muitas vezes, a qualidade está mais ligada ao uso de insumos. Inseticidas e fungicidas em excesso, usados para aumentar a produção de alimentos, geram elementos nocivos aos sistemas naturais. Causam problemas sérios aos mananciais de água e mais dificuldades para conseguir a qualidade dos alimentos. Por isso, chamo atenção para o problema da informação: a qualidade está muito relacionada a isso. Existem muitos consumidores que buscam alimentos produzidos em condições de sustentabilidade ambiental, social e a preço justo. Nisso vejo um papel importante da universidade, que deve monitorar e acompanhar esses processos, com intervenção e indução, para que seja adotada a tecnologia sempre que necessário e possível. Ao mesmo tempo, deve contribuir para melhorar a eficiência da produção e das cadeias produtivas por meio da capacitação – que é o que a Escola de Agronomia faz, capacitando o engenheiro agrônomo que vai atuar na produção agrícola. Além disso, é preciso intensificar os programas de pesquisa.
Gabriel Medina – É preciso ter tecnologia barata e funcional para os diferentes sistemas produtivos. O governo federal promove a agroecologia com tecnologia adequada para a agricultura familiar, uma vez que reduz a dependência de insumos e garante uma produção mais saudável de alimentos. Na UFG, também estamos buscando construir propostas técnicas adequadas para a agricultura familiar. Estamos com um projeto em Itapuranga, em que temos o dilema da criação de gado de leite, como já disse. Estamos apoiando os agricultores a fazer piqueteamento da sua área de pasto, porque ele tem altura de entrada e saída, se o gado vai para o pasto na época errada, destrói a pastagem. E é uma tecnologia muito simples, que basicamente consiste em dividir a área de pasto em unidades menores em respeito ao processo vegetativo da pastagem. Com isso, consegue-se uma melhor lotação de animais: até cinco por hectare. Também estamos apoiando a produção de horta e frutas com uso menor de insumos externos, o que garante para os agricultores melhor retorno financeiro da atividade. Além dessas propostas técnicas, temos, entre os alunos de Agronomia, um grupo de extensão rural que vai todos os sábados para os assentamentos rurais. O contato desse grupo é
O que o governo federal tem feito para diversificar a produção?
Rodrigo Gonçalves – Um dos trabalhos do MDA é apresentar a filosofia do Pronaf, que não é apenas um programa de crédito. O programa é de fortalecimento da agricultura familiar. Se fosse apenas para dar crédito, poderia gerar um problema: o produtor se endividaria sem a perspectiva de desenvolvimento de seu sistema agrícola. Há recursos embutidos no Pronaf para a assistência técnica. O técnico recebe 0,5% do valor total do projeto para fazê-lo e 1,5% para acompanhá-lo. No Pronaf, se um investimento para reforma agrária for de até R$ 20 mil para cada pequeno produtor, há um adicional de R$ 1,5 mil para financiar a assistência técnica. Outra questão é o programa executado na Conab de aquisição de alimentos. A Conab adquire produtos da agricultura familiar para formação de estoques, regulação de preços, mas também para distribuir para redes de assistência social, como escolas e creches. No entanto, o problema não é só dinheiro. Há os gargalos estruturais, como a desorganização do produtor, as dificuldades fiscais e a logística de distribuição. Há resistência também política, por causa dos esquemas históricos de compra de alimento. O Plano Safra, por exemplo, que financia o Pronaf, ano passado investiu R$ 16 bilhões. Em Goiás foram executados 30 mil contratos, mas, para agilizar esses processos, esbarramos em problemas nas esferas estadual e municipal e também no Congresso. Isso tem a ver com as discussões travadas no espaço público. O governo tem dificuldade para executar suas políticas públicas, se os debates não são feitos ou são enviesados. Os programas para a agricultura familiar dependem diretamente da visão que a sociedade tem desses produtores pequenos. Mas, na mídia nacional, os movimentos sociais do campo são estigmatizados e criminalizados. O governo pode injetar o dinheiro que for, que haverá outros gargalos que vão rotular a agricultura familiar. Se isso não entrar no debate público, empresas de comunicação continuarão colocando em pauta outras coisas que não são prioridade para o desenvolvimento, mas que atendem a outros lobbies, inclusive o do latifúndio. Se o assunto não for pautado, sempre será marginalizada a discussão do problema do desenvolvimento rural com gente no campo. E as pessoas seguirão pensando que o problema da fome no mundo decorre da falta de grãos, quando não é.
Podemos entender que é possível conectar formas alternativas de produção, a demanda da agroecologia, com a produção de biocombustíveis mais limpos?
Gabriel Medina – O que estava em discussão um tempo atrás era a política do etanol, que beneficiou no Brasil segmentos empresariais. Então, o governo federal passou a apostar nos biocombustíveis como forma de apoiar a agricultura familiar. Foi lançado o Programa Nacional de Biocombustíveis, para criar um mercado a mais para o segmento da agricultura familiar no Brasil. Essa política está em fase de implementação, há críticas e há sinais de avanços. É ainda muito cedo para tecer comentários.
Rodrigo Gonçalves – O governo federal tem feito um balanço, observado quais são os gargalos para avançar na produção de biocombustíveis, seguindo a perspectiva de seguridade econômica da agricultura familiar e da reforma agrária. Ainda estão em fase de avanço as pesquisas das espécies mais apropriadas. No início, pensou-se muito na mamona, mas percebeu-se que ela não era apropriada para qualquer contexto ambiental e geográfico. Há outras espécies, como gergelim, soja. A soja é cara e rende pouco óleo combustível e isso é um gargalo. Há uma discussão entre a competição e a produção de biocombustíveis e alimentos. No Brasil, isso é amenizado porque a cana-de-açúcar é mais eficiente em relação a outras matrizes de outros países. Mas há o problema da disputa por espaço e encarecimento da terra, inclusive para a reforma agrária. É um momento em que estamos repensando essa questão.
Fonte: Ascom/UFG