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Universidade Federal de Goiás
Prof. Angela Mascarenhas

Conceitos de transformação da sociedade

Em 22/03/12 10:08. Atualizada em 16/04/12 16:18.

Entrevista com Ângela Cristina Belém Mascarenhas, professora da Faculdade de Educação (FE/UFG), analisa o Fórum Social Mundial, os movimentos sociais e a esquerda brasileira

Patrícia da Veiga

Conforme mostra a edição impressa do Jornal UFG nº 50, os desdobramentos do Fórum Social Temático 2012 foram levados à professora da Faculdade de Educação, (FE) Ângela Cristina Belém Mascarenhas, para uma análise crítica. Ângela é socióloga, foi militante do movimento feminista e também se envolveu, ao longo das últimas três décadas, com o movimento sindical. Viu nascer a Central Única dos Trabalhadores (CUT), um dos seus objetos de estudo no mestrado e no doutorado. Integrante do Núcleo de Pesquisas e Estudos Sociedade, Subjetividade e Educação (Nupese), a professora é autora de obras como Desafiando o Leviatã: sindicalismo no setor público (Campinas: Alínea, 2000) e O trabalho e a identidade política da classe trabalhadora (Goiânia: Alternativa, 2002). Foi co-autora, com Miriam Bianca Ribeiro, também docente da FE, de Redescobrindo Goiás: história e sociedade (São Paulo: FTD, 2006), além de organizar trabalhos como Educação e trabalho na sociedade capitalista: reprodução e contraposição (Goiânia: Editora da UCG, 2005). Recentemente publicou, em parceria com a professora Sílvia Rosa Zanolla (FE) e outros pesquisadores do país, as coletâneas Sociedade, subjetividade e educação: perspectiva marxista e frankfurtiana e Cultura, infância e educação (Campinas: Átomo e Alínea, 2011). Nessa etapa de sua entrevista, a professora aprofunda questões sobre a contraposição à ordem hegemônica estabelecida, a atualidade dos movimentos sociais, a utopia da sociedade do trabalho etc. Vale a pena conferir.

Na primeira etapa da entrevista, disposta na versão impressa do Jornal UFG (n. 50, p. 3), a sra. usa com frequência o termo “estrutura societal do capital”. Qual seu significado?
Este é um conceito desenvolvido pelo filósofo húngaro István Meszáros, marxista ainda vivo e um dos mais lúcidos pensadores da atualidade. Para ele, não é possível falar simplesmente em capitalismo. Havia uma organização estrutural da sociedade, anterior à configuração do capitalismo industrial, que já formava o capital, ou seja, houve elementos históricos que favoreceram a consolidação do capitalismo. Hoje também não vivemos mais a fase do capitalismo industrial e, sim, do financeiro. Até os industriais estão chorando lágrimas de sangue, pois capital também engole capital. Nesse sentido de pensar situações pré e pós-capitalistas, segundo Meszáros, a experiência do socialismo que conhecemos não é marxista, não é uma oposição de fato à “estrutura societal do capital”, são outras formas de socialismo, como o de Estado, por exemplo. O autor caracteriza os socialismos que tivemos como parte de uma “estrutura societal do capital pós-capitalista”. É uma estrutura que pode prevalecer mesmo quando se rompe com alguns preceitos políticos ou de organização do próprio capitalismo. Meszáros faz essa análise na obra Para além do capital: rumos a uma teoria da transição (São Paulo: Boitempo, 2002), ressaltando que nenhum dos socialismos praticados faz frente, de fato, ao capitalismo. Ele destaca também que essa “estrutura societal do capital” é sem controle e autodestrutiva. Se não fizermos frente a isso, se continuarmos alimentando essa estrutura, vamos nos destruir. E não é destruição que vem de fora, é autodestruição. Isso é o mais doloroso. Qualquer modelo de contraposição ao capitalismo tem de ter por princípio ir além do capital, fazer uma contraposição real à “estrutura societal do capital”. Não é questão alarmista e nem pessimista, até porque não há pessimismo no marxismo. A questão é de construção de um posicionamento claro, que seja declaradamente de oposição.

O que seria o inverso da “estrutura societal do capital”?
A construção da “estrutura societal do trabalho”. É o trabalho que tem de estar na base das relações sociais, pois é por meio dessa atividade que nos humanizamos, criamos, transformamos nossas ações. Se é o trabalho que faz das pessoas o que elas são, a estrutura que as torna mais humanizadas tem de se basear nisso, e não na riqueza, nem no acúmulo de metais, propriedades, terra etc. O que produz riqueza humana, de fato, é o trabalho. Quando perdemos essa perspectiva do trabalho como centralidade, não fazemos frente ao capital. Esvaziamos, sim, o discurso, a capacidade de ação, despolitizamos o processo. E é isso o que vemos atualmente no Fórum Social Mundial, como já mencionei. Por exemplo, não concordo que a centralidade dos discursos esteja na questão ambiental. É claro que os problemas ambientais são relevantes e a preocupação com eles é importantíssima, mas só haverá uma solução, de fato, se a contraposição for pelo trabalho. O meio ambiente pode ser salvo de outra forma.

Como podemos interpretar a essência dos debates acerca da “economia verde”, promovidos no Fórum Social Temático 2012, ora em tom de crítica, ora como uma preparação para a Conferência das Nações Unidas Rio +20?
É uma contradição. Penso que expor no documento final da Assembleia dos Movimentos Sociais a expressão “enverdecimento do capitalismo” não é circunstancial. Isso quer dizer que a crítica existe, mas não é suficiente, tem de ser aprofundada. Estão criticando a economia verde, mas por onde? Em que medida? É pelo estabelecimento de marcos dentro da própria “estrutura societal do capital” ou para além dela? Não lemos isso no documento. É preciso explicitar. Isso para mim tem ficado cada vez mais claro, até mesmo no meu posicionamento teórico. Por exemplo, faço uma autocrítica, uma crítica à minha tese de doutorado. Afinal, o pensador tem de ter autocrítica. Quando analiso, na tese, a importância de o movimento sindical incluir na sua luta outros aspectos da vida do trabalhador (a esfera do não-emprego e do não-trabalho, por exemplo, pois o trabalhador não é trabalhador somente em um momento, é em todos), cito a economia solidária como uma das formas de sobrevivência das pessoas. Hoje eu não diria mais isso, pois percebo que, naquele momento, fui um tanto seduzida pela conciliação com o capital.

Como a sra. avalia o atual momento da esquerda brasileira?
Primeiramente, é bom lembrar que há vários tipos de socialismo e o que é hegemônico no Brasil é uma pasteurização de várias correntes, uma mistura de ideias que não ficam claras. Não tenho problemas em afirmar que a esquerda brasileira é totalmente cooptada e cooptante. E ainda há um agravante: a acensão do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder. Esse fato foi um retrocesso, em termos de organização dos movimentos sociais brasileiros, que estão vinculados a uma estrutura partidária. Antes da acensão do PT, tínhamos radicalidade para lidar com os problemas do país. Por exemplo, quando a esquerda estava unida na oposição, conseguimos barrar a reforma da previdência, projeto que veio a ser aprovado depois, justamente no governo do PT. Participei da CUT desde a sua formação e lembro bem que seu papel foi importante nos primórdios. Analiso seus documentos e sua história na minha tese de doutorado. A CUT tinha uma posição evidente de contraposição ao capital. No final da década de 1980 e início de 1990, com marco no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, ocorre claramente um início de articulação descomprometida com a postura crítica e radical. Isso foi se aprofundando, até Lula ser eleito. Atualmente, o governo do PT não é nem de centro-esquerda, é, sim, de centro-direita. Não há a menor dúvida disso. Até as políticas sociais têm uma característica filantrópica, o que revela um traço forte da reprodução do capital. E com isso as contraposições foram sendo minadas. Qual é o partido de esquerda no Brasil? O PT poderia ter cumprido um papel histórico, mas não o fez. Pelo contrário, desmantelou os movimentos sociais quando construiu uma “correlação de forças”. Uma das consequências foi a cooptação dos movimentos. Outra foi que, paralelamente a isso, houve um fortalecimento das organizações não governamentais. O que as ONGs passaram a retirar do erário não foi brincadeira. E ainda serviram para que o Estado se desresponsabilizasse em algumas áreas. As políticas sociais passaram a ser planejadas e executadas pelas ONGs, e não mais pelo Estado. Isso também foi muito prejudicial à nossa participação política. Por isso vivemos esse momento de pasteurização e de dificuldade de identificar a contraposição.

Poderia ser diferente?
Não rodamos para trás a roda da história. Essas foram as condições constituídas. Mas, a partir disso, é possível fazer diferente. Aliás, precisamos reconstruir essas lutas dos movimentos sociais. Estamos vivendo um momento de refluxo e pessimismo, mas isso não é fruto da vontade das pessoas e sim das condições criadas. A esperança vem do caráter contraditório da história, que pode ser favorável a uma reação popular.

Considerando o propósito da efetiva contraposição, que movimentos ou organizações a sra. destaca como autênticos ou renovadores?
Antes de responder, farei uma breve retrospectiva, para reafirmar como a história é dinâmica. No final da década de 1970, os operários do setor industrial eram os mais radicais e os mais progressistas. Lula é produto disso. Os bancários e os petroleiros também fizeram greves memoráveis no início da década seguinte. Na segunda metade de 1980 e durante toda a década de 1990, o grupo que mais avançou em termos políticos foi o dos funcionários públicos, que todos menosprezavam e chamavam de “barnabés”. Na Constituição de 1988 nossa participação foi belíssima, digna de nota. Na segunda metade da década de 1990, nós, funcionários públicos, entramos em declínio, começamos a refluir, e surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). O grande estouro desse movimento camponês ocorreu na virada para o século XXI. De 2004 em diante, nem o MST, nem o funcionalismo público e nem o ABC paulista passaram a ser referência. Mas isso não significa que o momento é de desesperança, pelo contrário, todos os momentos são de luta. Atualmente, vejo com curiosidade dois movimentos: o dos sem-teto, sobretudo nas grandes cidades, e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Um diz respeito à zona urbana e outro à zona rural. A expansão do processo de urbanização foi tão nefasta que agora as metrópoles estão com dificuldades de sustento. E o movimento dos sem-teto surge como uma contraposição organizada a toda essa estrutura. Já o MAB lida com uma questão muito séria, pois atingidos não são somente as pessoas, são as cidades, a história, a memória, a natureza de modo geral. É o homem e a natureza sucumbindo à sua própria construção. E isso pode provocar uma reação popular. Se fizermos uma pesquisa sobre os movimentos sociais que têm despontado na atualidade, poderemos localizar ainda outros. Têm me chamado a atenção também os que estão fora do mercado de trabalho e da própria estrutura sindical. É preciso analisar isso com cautela, mas vejo que está começando a surgir um movimento nesse sentido, na Argentina, desde aquela crise de 2001, e também na Espanha, com os Indignados.

Os jovens que ocuparam certo espaço midiático em 2011, tais como os estudantes chilenos e os representantes do Ocupa Wall Street, foram aclamados no FST 2012 como exemplos de esperança. Que conclusões se pode retirar disso?
A mobilização dos jovens é importante e o movimento estudantil sempre teve  um papel fundamental em nossa sociedade. Porém, não vejo que a potencialidade seja maior. Pelo contrário, mobilizar pela juventude é um aspecto circunstancial e de efemeridade. A questão central, para mim, é de não ter trabalho para todos e de existir uma série de situações de conflito e até mesmo degradantes para os seres humanos em decorrência disso. A falta de trabalho é o que desperta a organização popular. E quem está sem trabalho hoje não é somente o jovem, é também o pai de família que tem filhos para sustentar.

A crise econômica que o mundo experimenta neste momento pode também ser impulsionadora de transformações?
A crise é uma condição estrutural, é parte dessa “estrutura societal”. E foi a própria estrutura que gerou a crise. O capitalismo vive de crise em crise porque é um sistema de contradições, que cria muita riqueza e muita miséria ao mesmo tempo, pois para alimentar a riqueza é preciso explorar demais e ao mesmo tempo ampliar mercado. Outra contradição: o mercado não é regulador de nada, pelo contrário, é inseguro, fora de controle, mas ainda assim se diz que o mercado pode ser “autorregulador”. É assim que surgem as crises. Da produção no campo, da indústria, dos bancos, do capital especulativo. E vão continuar existindo crises de todas as formas, pois elas não são solucionadas de fato, apenas remediadas. Como se faz para salvar os bancos? Retiram dinheiro do bolso do trabalhador. Quem acudiu o capital financeiro em 2008? Os Estados? Mas os Estados não são produtores de riqueza, quem produz é o contribuinte. Então, quem salvou o mercado, de fato, foram os trabalhadores. Ou seja, para resolver a crise é preciso ir além do capital. E em um momento como esse é até possível começar uma construção, no sentido de uma nova formatação “societal”. É possível começar isso agora, já. Mas não a curto prazo. Não se faz revolução, ou mudança radical, no sentido marxiano, por decreto. Talvez não vivamos para ver isso. Mas é preciso começar. Se eu sou professora da Educação, não basta dar aulas de Sociologia, tenho de preparar meus alunos para a luta política. Tenho de participar com eles da luta. Tenho de ajudar a organizar o Centro Acadêmico, ir a manifestações etc. Por exemplo, um caso emblemático para mim foi a tentativa, há quatro anos, de instalar catracas na entradas das unidades da UFG. Um absurdo. Então fizemos um debate e um movimento na UFG, partindo da Faculdade de Educação e do Centro Acadêmico do curso de Pedagogia. Conseguimos mobilizar o Diretório Central dos Estudantes e, enfim, houve um impedimento dessa medida.

Fonte: Patrícia da Veiga

Categorias: Política entrevista sociedade

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