
Reflexões para nossas frentes antirracistas
Coordenadora da Caaf, Luciene Dias, fala sobre respeito às diferenças e os feminismos negros
Luciene Dias*
Protagonizamos o que pode ser categorizado como uma verdadeira batalha pela conquista do respeito às diferenças. Por um lado, temos que manter fortes nossas frentes de combate ao racismo e aos preconceitos. Por outro, queremos construir espaços e condições de acesso à cidadania. Assim, é fundamental desvincular definitivamente as noções de diferença e desigualdade. Mais que isso, é importante compreender como e quando o traço estrutural das relações sociais propostas está sustentado na diferença.
Uma das perspectivas apontadas pelos feminismos negros é que a diferença não pode ser meramente comparativa. Isso equivale dizer que o preto não está para o branco, o feminismo não está para o machismo e o ocidente não está para o oriente. São conceitos diferentes e que falam de projetos de dominação, seja de uma raça sobre outra, de um gênero sobre outro, de uma nação sobre outra. A diferença é social e histórica. Ela é marcada pelo sistema político, ideológico, social e simbólico.
O Brasil é um país racista e machista. A falta de equidade na representação política, no mercado de trabalho e nos espaços de poder, somada ao aumento na taxa de homicídio de mulheres negras no Brasil, nos impulsiona às ações. De acordo com o último Mapa da Violência, houve um crescimento na taxa de homicídio de mulheres no Brasil de 3,9% para 4,8% entre 2007 e 2015. O exercício de leitura dos números se complexifica quando notamos que enquanto a taxa de homicídio de mulheres brancas subiu de 3,1% para 3,2%, esse número entre as mulheres negras subiu de 4,4% para 5,4% no mesmo período.
Poderíamos dizer que essa disparidade se dá porque os aparelhos de vigilância não chegam onde deveriam chegar. Mas quem propõe, elabora e administra as Delegacias da Mulher, os sistemas de ensino, lazer, cultura e saúde são exatamente as pessoas que representam o pensamento hegemônico nacional. Chega a ser contraditório porque quem sabe das condições femininas e de negritude são as pessoas negras e as mulheres. Quem sabe das nossas especificidades, senão nós mesmas?
Uma vez tendo compreendido como opera o racismo e o machismo, temos que tomar a “posição de sujeito”, temos que “tomar a palavra” e transformar a igualdade negativa imposta pela escravização que subjugou toda pessoa negra no Brasil em qualidade positiva: a igualdade na construção das relações sociais. Ou seja, aproximar pessoas, resgatar trajetórias silenciadas pela escravidão e ressignificar relações sociais para construir equidade. Em um movimento de resiliência. Se vivemos a falta de alcance aos direitos civis já elaborados, uma das grandes descobertas é que o problema está nas leis e não nas pessoas.
Por isso, a necessidade da formação de linhas de frente para a elaboração de políticas afirmativas. Mudar a cara de quem agencia a construção de políticas é um passo sem o qual ficam praticamente inviáveis elaborações que contemplem a diferença. Um corpo docente eminentemente branco não pode trazer para o campo das ações, políticas que de fato contemplem as necessidades de aprendizagem de estudantes negros e negras. Uma gestão, política ou institucional, não pode inovar com uma equipe eminentemente masculina e heteronormativa na luta contra o machismo e o sexismo.
Para elaborarmos políticas afirmativas consistentes, temos que de fato ocupar a linha de frente. Não podemos ter o protagonismo de um grupo homogêneo e hegemônico. A linguagem, outra perspectiva dos feminismos negros, é também um lugar de combate e, por ela, podemos reescrever, reconciliar e renovar nossas relações sociais. Não podemos manter uma representação majoritariamente branca em um país majoritariamente negro, uma representação masculina em um país de mulheres, uniforme em uma conjuntura plural. A diferença positivada na mudança das relações sociais convergentes para o respeito e a equidade pode, de fato, ser uma boa campanha. As ações afirmativas começam no momento em que rompemos a barreira do silenciamento imposto pela subalternidade.
*Professora da Faculdade de Informação e Comunicação e Coordenadora de Ações Afirmativas da UFG