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Universidade Federal de Goiás
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Primeira estudante em circunstância transexual defende mestrado

Em 29/07/16 11:44. Atualizada em 02/08/16 15:25.

Ester Sales Matos é a primeira mulher em circunstância transexual a concluir uma pós-graduação strictu sensu em Goiás

Angélica Queiroz

Fotos: Adriana Silva

A sociedade brasileira ainda tem pouco conhecimento sobre a população travesti, transgênera, intersexual e transexual (TTIT). Esse desconhecimento e o preconceito que vem com ele, historicamente, excluem essa população da escola e, consequentemente, da academia. No entanto, essa realidade está começando a mudar. Na UFG, 2016 é um ano histórico para essa luta. Ester Sales Matos, 32 anos, é a primeira estudante em situação transexual a concluir um mestrado em uma instituição goiana.

 

Ester Sales Matos

 

Seu estudo “A Operacionalização do Método de ἐποχή (Epoché) e Redução na Fenomenologia de Edmund Husserl pelas Vias Cartesiana e Psicológica”, apresentado no início do mês de junho, foi desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFG. A estudante, que é membro fundadora do Coletivo Interacadêmico Universitário de Mulheres e Homens em Circunstância Transexual e Intersexual, Pessoas Transgêneras e Travestis, Familiares e Apoiadores da Causa Trans na UFG (TransAção), já está se preparando para participar de processos seletivos para doutorado, no qual pretende relacionar seu trabalho sobre consciência (subjetividade) com o tema “sexualidade”.

Para Ester Sales, sua conquista é importante para toda a população TTIT, porque abre portas. “Estamos em 2016 e eu sou a primeira em circunstância transexual a fazer um mestrado em Goiás. Demorou muito, mas que bom que esse momento chegou para dizer que qualquer outra pessoa, seja mulher ou homem em circunstância transexual, transgênero, intersexual ou travesti têm capacidade de fazer o mesmo, de não só ser fenômeno de pesquisa de algum pesquisador, mas também de pesquisar, de gerar conhecimento oficialmente”, afirma. Segundo a mestre, isso quebra uma série de paradigmas. “Passamos a fazer pesquisa porque somos tão capazes quanto qualquer outra pessoa”, destaca.

Ester Sales lembra que outra estudante transgênera já ingressou no mestrado na UFG, também na Filosofia. “Eu penso que, como a Filosofia gera outras ciências, essa coincidência histórica é muito positiva”, afirma. Para a mestre em Filosofia, outros estudantes TTIT logo devem ingressar nos programas de mestrado e doutorado da UFG, porque já há vários deles em diversos cursos de graduação da instituição. Atualmente, 15 estudantes usam nome social na Universidade, segundo a Coordenadoria de Inclusão e Permanência. “Daqui a pouco esse pessoal também vai se inquietar e ir para a pós-graduação. Essa comunidade vai cada vez mais avançar. Estamos aos poucos entrando na universidade e é isso que importa”, comemora.

UFG foi espaço libertador

A estudante, que já havia concluído um programa de especialização latu sensu, nasceu no Rio Grande do Norte, foi criada no Pará e veio para a UFG fazer seu mestrado. Começou frequentando grupos de estudo, depois cursou uma disciplina como aluna especial e foi aprovada para o mestrado em 2013. Ester relata que a UFG foi um espaço libertador para ela, porque sua transição física também ocorreu no mesmo período em que esteve na Universidade, após ter ingressado no Projeto TX, do Hospital das Clínicas. “Fui mudando as roupas aos poucos, quando fui percebendo que meu corpo também mudava, de forma muito pedagógica, até ser natural e não causar estranheza”, relata.

Ester Sales e outros integrantes do Coletivo TransAção fazem parte do grupo de pessoas que lutaram pela implantação do nome social na UFG por meio da Resolução 14/2014 do Conselho Universitário que, segundo ela, está entre as melhores do país. “Nossa política abrange todos os grupos e, por conta disso, estudantes TTIT de todo o país estão procurando a UFG”, comenta. Para Ester Sales, grande parte de seus professores a respeitaram, mesmo antes da legislação, mas enfrentou problemas com alguns docentes. “Eu sofri preconceito na Universidade, sim. Foi um espaço de libertação para mim, mas foi um espaço conquistado com diálogo, com uma postura de seriedade, de trabalho e humanização, junto com outras pessoas que se abriram para conhecer a realidade como ela é e aprenderam a respeitar o ser humano”, lembra.

Para a Coordenadora de Ações Afirmativas da UFG, Luciene Dias, esta defesa é a consolidação de um longo projeto de construção de espaços plurais. “Temos que estar atentas para a necessidade, inclusive, de garantir o avanço das conquistas. Realmente é motivo de orgulho para nós!”, afirma. O Coordenador de Inclusão e Permanência da UFG, Jean Baptista, afirma que a conquista de Ester representa uma conquista possível para estudantes trans de todo o país. “Todas as universidades devem ter o mesmo comprometimento com esta população, construindo, assim, um futuro mais justo”. O pró-reitor de pós-graduação da UFG, José Alexandre Diniz, parabeniza a estudante e destaca que a defesa mostra que a UFG está aberta e valoriza a inserção e inclusão social. “Tentamos constantemente apoiar os alunos que lutam contra preconceitos”, afirma.

 

"Passamos a fazer pesquisa porque somos tão capazes quanto qualquer outra pessoa"

 

Preconceito

A principal dificuldade que Ester Sales teve na universidade foi lidar com a ignorância, fator que, para ela, é gerador do preconceito que faz a população TTIT desistir da escola. Ela acredita que a escola é excludente porque os professores não estão preparados para lidar com a diversidade, principalmente no âmbito sexual. “Eles não estudam sobre isso, geralmente apenas reproduzem os preconceitos que aprenderam socialmente. E acabam violentando seus alunos”, completa.

Quando a exclusão não acontece na infância, comumente ocorre no Ensino Médio, quando começa o despertar sexual e a população TTIT começa a se assumir diante do mundo por meio do corpo e de suas roupas. “Dependendo desse comportamento e de como é aquela comunidade escolar, a pessoa é excluída rapidamente, uma exclusão muito forte; e procura subempregos para sobreviver, vivendo à margem da sociedade, o que faz com que não chegue à universidade, sobretudo uma pública”, ressalta.

Ester Sales lembra que, mesmo os que chegam ao ensino superior, param na graduação. “Conheço casos de alunos que tiveram que sair porque professores não sabiam lidar com eles. Por isso o nome social, como primeira política pública conquistada, é uma vitória tão grande”, comemora. Ela também explica que, com o nome social, a pessoa se sente protegida porque não precisa mais ser exposta e os professores são obrigados a respeitar seu nome de autoidentificação, não ficam nem sabendo o nome civil. “Se ele não tem o bom senso e a educação de saber lidar e respeitar o próximo, tem uma lei que o obriga, o papel garante”.

O caminho para superar o preconceito, segundo Ester Sales, é a educação. “Se a pessoa se abre para aprender, vai se tornando um ser humano melhor, que respeita mais as diferenças. A convivência transforma as pessoas. É um processo. Nosso papel é pedagógico. Respeitar o próximo e saber lidar com o outro é educação. E isso não tem diploma. Isso é humanidade”, completa.

Para que a Universidade comece a caminhar nesse sentido, o Coletivo TransAção luta para a inserção de uma disciplina de sexualidade humana nos currículos dos cursos de graduação, especialmente na área da saúde e nas licenciaturas. “Vivemos em uma sociedade ignorante, que transforma a sexualidade em um tabu, trata as questões como assunto vulgar. A disciplina é fundamental hoje e espero que cursos se movimentem. Muita gente aceita esse sistema e aprendemos que não devemos aceitar, que temos que nos movimentar e construir mudança”, conclui.

 

 

Categorias: inclusão Edição 81