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Universidade Federal de Goiás
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Precisamos falar sobre a morte

Em 29/09/16 14:31. Atualizada em 04/10/16 11:42.

Mesa-redonda discute cuidados paliativos, luto e apoio para família, pacientes e profissionais da saúde

Em junho deste ano o casamento de uma paciente com câncer em fase terminal, Maria Oneide, no Hospital das Clínicas da UFG,  foi notícia na imprensa, evidenciando a necessidade de apoiar e tornar mais leve os últimos dias desses pacientes. Alguns dias depois ela faleceu. O caso despertou a atenção do hospital, que, após o ocorrido, tem investido na criação de um departamento de cuidados paliativos.

A morte é uma situação previsível na vida de todo ser humano, mas nunca estamos preparados para ela. Em pacientes com doenças terminais, esse despreparo humano fica ainda mais evidente. Por um lado, o paciente precisa assimilar a situação, por outro a família precisa também entender e apoiar, além de lidar com o próprio sofrimento da perda iminente.

Para discutir esse momento tão delicado e dolorido na vida de pacientes, de seus familiares e da equipe médica, convidamos o professor da Faculdade de Enfermagem, Marcos André de Matos, o médico paliativista do Hospital das Clínicas da UFG, Ricardo Borges e a psicóloga, Carolline Borges.

Ascom, TV UFG e Rádio Universitária

 

Deveríamos falar mais sobre a morte? Como se preparar para entendê-la?

Marcos André – Como a morte faz parte do nosso ciclo vital, é importante que a sociedade de uma forma geral discuta sobre essa temática. Da mesma forma que nós nos preparamos para nascer, também temos que nos preparar para a morte, que faz parte de um processo natural, e entender que ela faz parte do nosso ciclo de vida.

Carolline Borges – Nós não estamos acostumados a nenhum tipo de perda. Perder é frustração e vemos como algo que não demos conta, o que nos dá sensação de impotência ou de falta de controle. Não estamos preparados para perder. A morte é uma perda, claro que com um nível de sofrimento muito maior, mas que também faz parte desse rol de perdas que não costumamos trazer para nossas vidas e para as quais não costumamos nos preparar.

Ricardo Borges – Isso é muito pessoal, mas algumas vezes vemos pacientes mais preparados que os familiares. Essa angústia frente à possibilidade da perda de um ente querido gera muito sofrimento e, na hora da tomada de decisões, que são decisões às vezes muito difíceis e muito delicadas, essas sensações de impotência e fragilidade acabam dificultando mais o processo. É claro que a maioria das pessoas tem uma dificuldade muito grande de passar por esse processo com tranquilidade e com alívio do desconforto que é vivenciar a possibilidade da morte.

 

Carolline Borges 

Carolline Borges

"Trabalhamos dentro de uma tríade: família, paciente e equipe. Em cuidados paliativos essa tríade precisa funcionar"

 

Não estamos preparados para enfrentar nossa própria finitude?

Marcos André – Faz parte da nossa cultura não tratar desse tema. Infelizmente o próprio contexto que nós temos após uma morte, com sepultamento e a forma de velar as pessoas, faz com que esse estigma e preconceito em relação à morte fique ainda maior.

Carolline Borges – Falar sobre morte também não é fácil para nós profissionais. Talvez seja por isso que precisemos criar um contexto hospitalar que envolva a preparação, inclusive dos profissionais, para vivenciar esse processo, porque fazemos parte da mesma cultura que essa família e que esse paciente, então nada mais assertivo do que também nos prepararmos e começarmos a falar sobre esse assunto.

Ricardo Borges – Um ponto interessante para analisarmos é que a morte é cada vez mais medicalizada. O que acontecia antes desse boom tecnológico que passamos no século XX é que as mortes eram muito mais humanas no sentido do acolhimento daquele paciente com uma doença terminal, a morte acontecia em casa com muito mais frequência. Hoje a morte é mais fria, mais isolada. Isso amedronta também as pessoas que enfrentam doenças que podem levar à morte. E o cuidado paliativo – apesar de não ser um movimento tão recente, mas que ainda carece de ser ampliado no contexto da saúde pública – vem para trazer esse manto de proteção, afeto e alívio do sofrimento, essa percepção de senso de controle frente a essa situação que é inevitável e que todos nós sabemos desde o nosso nascimento. Só assim temos condições de proporcionar uma morte razoável, boa.


Como o cuidado paliativo pode ajudar na qualidade de vida dos pacientes terminais?

Ricardo Borges – O cuidado paliativo é uma modalidade de cuidado baseada em princípios. O profissional de saúde, não só o médico, mas toda a equipe, como o profissional que dá o suporte espiritual ou psicológico, precisa entender que a medicina paliativa é baseada em princípios que têm que tomar frente em qualquer decisão que você vá tomar junto a esse binômio paciente-família. Um dos grandes princípios é o alívio do sofrimento. Muitas vezes na obstinação em tentar aliviar uma doença acabamos passando por cima do conforto do paciente. E um dos princípios básicos do cuidado paliativo é esse, é ver o conforto do paciente em primeiro lugar, qualquer que seja o sofrimento: físico, espiritual, social ou existencial.

Carolline Borges – Todos os princípios são voltados para a pessoa, porque até então cuidávamos da doença ou dos sintomas. Com os cuidados paliativos tratamos o paciente. Então, todos os princípios que envolvem o cuidado com a pessoa adoecida é que vão ser valorizados dentro dessa modalidade. Na verdade iniciamos esses cuidados dentro das instituições, mas existe a necessidade desses cuidados em ambientes domiciliares, com os home cares, por exemplo.

Marcos André – O cuidado paliativo não foca a doença, mas a pessoa que está no processo de adoecimento. Então nós temos o resgate dessa humanização na morte. O atendimento a domicílio seria o ideal se nós tivéssemos uma estrutura de saúde pública, principalmente para que esses cuidados paliativos fossem realizados em casa, porque seria uma forma mais humanizada, uma forma com mais afeto e onde o familiar poderia enfrentar junto esse processo de morte e, posteriormente, de luto. Mas infelizmente os nossos sistemas de saúde ainda não permitem fazer esse atendimento.

Ricardo Borges – Depende muito das condições financeiras do paciente e isso é uma lástima, porque a equidade da oferta de serviços ainda está longe do ideal. Não existe uma grande política nacional de cuidado paliativo, mas existem iniciativas que permitem que essa modalidade seja aplicada. Um dos grandes problemas é a capacitação de profissionais que tenham condições de oferecer esse serviço em qualquer que seja o cenário – domicílio, hospital, UTI, unidades asilares. Qualquer que seja o local, o cuidado paliativo carece de profissionais que tenham esse olhar diferenciado. Até porque, muitas vezes, você vai ser o mesmo profissional que oferecerá um cuidado com potencial de cura e, se a doença sai dessa perspectiva, você é quem precisará ter um olhar diferente para esse paciente que está morrendo. Equipes específicas para ajudar até a própria equipe a enfrentar esse processo ainda não são formadas em quantidade suficiente.

 

Ricardo Borges 

Ricardo Borges

"Quando conseguimos oferecer esse cuidado paliativo de forma integral, levando em consideração todos os aspectos, com certeza o processo de morte será menos doloroso e o luto será melhor, vai ser menos patológico"

 

Qual a importância do apoio psicológico nesse momento?

Carolline Borges – Trabalhamos dentro de uma tríade: família, paciente e equipe. Em cuidados paliativos essa tríade precisa funcionar. Nós temos o canal de comunicação como a grande cartada para que isso funcione: a equipe precisa se comunicar bem e transmitir a notícia de forma adequada; a família precisa se sentir à vontade e criar um vínculo com os profissionais dessa equipe se tornando mais segura e com sensação de controle; fornecer mais autonomia ao paciente e à própria família; trazer a família para essa conversa que acabamos sendo tolhidos de conduzir durante uma vida.

Marcos André – É extremamente importante também para o profissional de saúde, porque ficamos entre todos esses conflitos que a família e o paciente vivem. Um dos princípios do cuidado paliativo é proporcionar qualidade de vida para o paciente e para a família, e também ter empatia com o paciente. Isso também traz problemas de saúde para o cuidador, porque ele vivencia esse processo. Então o psicólogo é tão importante para o paciente e para a família quanto para o profissional de saúde, especialmente por conta da falta de disciplinas específicas sobre esse assunto nos projetos político-pedagógicos dos cursos de graduação.

Ricardo Borges – Eu tive a oportunidade de trabalhar em assistência domiciliar durante muitos anos e agora estou ajudando na formação de um grupo de um hospital grande, que é o Hospital das Clínicas da UFG. Uma das grandes barreiras que percebemos, quando implementa-se um serviço que se propõe a oferecer cuidado paliativo, é preparar o profissional de saúde. Lidar com a proximidade da morte não é fácil para ninguém. Todos nós, seres humanos, temos essa dificuldade, essa limitação. Cuidar do profissional de saúde, portanto, é essencial.

Carolline Borges – É recomendável, inclusive, que outro profissional psicólogo seja chamado para atender essa equipe, porque o profissional que faz parte da equipe de cuidados paliativos também está vivenciando todo o processo, por isso ele não seria o profissional que auxiliaria essa equipe, porque ele também faz parte dela. A recomendação é que busquemos outro profissional.

 

Esse auxílio deve continuar mesmo depois que o paciente falece, durante o luto?

Marcos André – O cuidado paliativo envolve não só o processo de morrer, mas também o processo de luto. No entanto, infelizmente há uma escassez de projetos e políticas que visem o atendimento ao luto, principalmente da equipe de enfermagem. Nós ficamos 24 horas cuidando do paciente e acabamos sentindo as dores, ficamos o tempo todo mensurando essa dor, administrando os medicamentos e acabamos ficando muito impotentes perante as fragilidades do paciente. Então seria muito importante que nós tivéssemos auxílio de psicólogos e trabalhássemos o luto, porque também  sofremos com a perda desse paciente.

Carolline Borges – Infelizmente ainda é muito escassa essa abertura nas instituições de uma forma geral. É necessário abrir um canal de comunicação para falar sobre esse sofrimento junto com os profissionais que passaram pelo processo também.

Ricardo Borges – Queria deixar claro que o cuidado paliativo, apesar desse medo, vem como uma ferramenta para ajudar a vivenciar esse processo. Ele exige conhecimento técnico específico para lidar com todas as fases do processo de morte. À medida que a doença se torna avançada, o processo de morte vai dando alguns sinais, e é necessário controlar qualquer causa de sofrimento a tempo. Quando conseguimos oferecer esse cuidado paliativo de forma integral, levando em consideração todos os aspectos, com certeza o processo de morte será menos doloroso e o luto será melhor, vai ser menos patológico. O cuidado paliativo não extingue o luto, porque a dor da perda precisa ser vivenciada, mas de forma saudável. Por exemplo, quando acontece o pacto do silêncio, muitas vezes o luto fica mais difícil de ser elaborado. Quando a comunicação é um pouco mais fluida e nas tomadas de decisão são respeitadas a autonomia do paciente e da família, com certeza a passagem pelo luto vai ser mais elaborada. Mas é claro que a equipe também precisa acolher essa família em luto.

 

Marcos André 

Marcos André

"Na verdade, a eutanásia não é legal no Brasil, mas nós temos cuidados paliativos. O cuidado paliativo surge a partir do momento em que o tratamento que visa a cura não tem mais efetividade"

 

E a eutanásia e a escolha consciente da hora da partida? A dignidade do paciente é mais importante que a manutenção da vida?

Ricardo Borges – A eutanásia passa pelo princípio jurídico da autodeterminação do sujeito, ou seja, nos países onde a eutanásia é permitida parte-se do pressuposto de que eu, como cidadão, tenho o direito de decidir sobre a minha vida. Em países onde essa autodeterminação não é aceita, há um entendimento de que a vida pertence ao Estado e é ele quem tem a capacidade de decidir pela vida deste indivíduo. Então, em países onde a eutanásia é permitida, esse princípio da autodeterminação faz com que a pessoa, caso opte por dar cabo da própria vida, seja amparada do ponto de vista técnico. Em alguns países a eutanásia é permitida mesmo que a pessoa não esteja enfrentando uma doença terminal, ou seja, a pessoa está vivendo normalmente e tem o direito de tirar a própria vida. Na maioria dos países a eutanásia é permitida desde que a pessoa tenha o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal, quando ela pode adiantar o momento da morte. Muitas vezes, para não passar pelo sofrimento que ela imagina que vai passar, ela pode abreviar a sua vida. No Brasil a eutanásia não é permitida. Os profissionais não podem abreviar a vida de uma pessoa a pedido desta. Em outros países, existe outra modalidade, que é o suicídio assistido: a pessoa também tem o direito de decidir por abreviar a sua vida, mas não é a equipe que induz a morte da pessoa. A pessoa recebe uma prescrição de medicamentos que causam a morte e os toma voluntariamente. Do ponto de vista ético e moral, são situações muito semelhantes, mas essa modalidade dá a sensação de que o profissional está lavando as mãos para não ser o responsável por abreviar aquela vida. Do ponto de vista moral, no Brasil há o entendimento de que a pessoa não tem essa autodeterminação. No entanto, o Conselho Federal de Medicina no seu código de ética permite ao médico oferecer os cuidados paliativos aos pacientes que estão enfrentando doenças potencialmente fatais para oferecer não a eutanásia, mas o que chamamos de ortotanásia, que é você aliviar o sofrimento e permitir que a morte chegue no momento em que ela chegaria mesmo, determinada pela evolução daquela doença, com mais dignidade.

Carolline Borges – Na verdade é fazer com que o paciente não passe por procedimentos invasivos, principalmente que não trariam a cura à doença e, pelo contrário, trariam sofrimento, o que também é outro princípio dos cuidados paliativos: a não maleficência, a beneficência do cuidado ao paciente. É muito difícil conversar com a família sobre isso. Se é difícil para nós da equipe, que ainda precisamos conversar muito sobre o assunto para poder ter condições para atuar, imagina falar desse assunto para a família que, a princípio, pode entender que a ortotanásia é a eutanásia, vai fazer essa confusão. Portanto, desmistificar isso, abrir essa comunicação e se colocar disponível a esses familiares e pacientes, faz com que essas dúvidas e mitos sejam esclarecidos.

Marcos André Como esses conceitos não são explícitos para a população, ela acaba tendo falta de formação e informações equivocadas. Na verdade, a eutanásia não é legal no Brasil, mas nós temos cuidados paliativos. O cuidado paliativo surge a partir do momento em que o tratamento que visa a cura não tem mais efetividade. Duas pesquisas feitas na Europa aplicaram questionários à população perguntando em relação à eutanásia, se as pessoas eram contra ou a favor. Cerca de 50% se manifestaram a favor. Após uma explicação sobre o que são os cuidados paliativos, cerca de 40% desses 50% que a princípio se manifestaram a favor, mudaram de opinião. Ou seja, como as pessoas não conhecem essa modalidade de tratamento que visa a qualidade de vida e a autonomia do paciente durante o processo de morte, elas acabam não fazendo essa opção.

Fonte: Ascom/UFG

Categorias: Mesa-redonda Edição 83 morte cuidados paliativos