A quem afeta a reforma trabalhista?
Revalino Antônio de Freitas, Olympio José Abrão e Iêda Leal discutem o assunto
Operários - Tarsila do Amaral
Ascom, TV UFG e Rádio Universitária
Enquanto a discussão da reforma da Previdência vem tomando conta do cenário político, outra reforma vem sendo discutida paralelamente e deve afetar boa parte da população: a reforma trabalhista. Basicamente a grande mudança é a maior valorização dos acordos coletivos. Diante do cenário atual, será que o Brasil está pronto para dar essa decisão a empresas e sindicatos? As empresas consideram que as leis trabalhistas amarram a relação de trabalho e dificultam o crescimento. Mas o mercado hoje está em condições de negociar esses direitos de forma justa com o trabalhador?
Para discutir o assunto convidamos o professor da Faculdade de Ciências Sociais, Revalino Antônio de Freitas, o presidente do Conselho Temático de Relações do Trabalho da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (Fieg), Olympio José Abrão, e a vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em Goiás, Iêda Leal.
A proposta de reforma trabalhista prevê que negociações entre sindicatos e empresas prevaleçam sobre o que é estabelecido na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A estrutura de sindicatos existente hoje no Brasil é capaz de dar segurança ao trabalhador com relação à garantia de direitos?
Iêda Leal – Nos preocupa muito essa tentativa de flexibilização. Se tivermos a garantia de que o que está na CLT vai ser respeitado, teremos condições de tentar abrir um diálogo para que as coisas possam se dar da melhor forma, mas não dá para abrir mão dos nossos direitos. O que vai ser dos trabalhadores se o que prevalecer for apenas um acordo em detrimento de uma legislação? E uma legislação que não é tão boa quanto parece, que realmente precisa de algumas mudanças, mas não para prejudicar o trabalhador. A necessidade de se fazer um amplo debate e chegar em um denominador comum de que o Brasil precisa crescer, que precisamos trabalhar e os trabalhadores precisam colaborar para o crescimento do país é uma coisa. No entanto, querer que o trabalhador pague o preço pela desorganização do Brasil, não temos condição de aceitar. Queremos o diálogo e o diálogo passa primeiro por escutar os trabalhadores e também os patrões. Mas, necessariamente, temos que começar o diálogo, e não fazer mudanças da forma que está sendo proposta agora. A necessidade de se fazer uma reforma é porque existem sérios problemas e querem resolver apertando o cinto do trabalhador. Aí não tem acordo!
Querer que o trabalhador pague o preço pela desorganização do Brasil nós não temos condição de aceitar - Iêda Leal
Olympio José – A proposta do governo não fala da negociação coletiva. Ela é uma minirreforma que trata de alguns pontos de flexibilização de contratos de trabalho. A CNI, a Fieg e as federações estão de acordo com a reforma, mas achamos que ela é muito tímida, que não é tão abrangente. Evidentemente que respeitando a CLT e as normas de segurança, a proposta que defendemos é que a negociação seja livre entre sindicatos de colaboradores e sindicatos dos empresários. No entanto, estamos preparados para isso? Confesso que não. Porém, temos que dar o primeiro passo e começar esse entendimento, e passar talvez por uma fase de transição, mas o futuro das relações de trabalho no Brasil e no mundo passam por esses acordos coletivos. Todo ano os sindicatos sentam à mesa para negociar convenções coletivas. Hoje em dia o que fazemos é negociar índice de aumento. Os próprios sindicatos não têm força, estamos tirando a força dos sindicatos.
Revalino Antônio – Há um espaço a crescer na discussão sobre as relações capital-trabalho. Como a maioria das relações, ela não é uma relação simétrica, muito pelo contrário. É óbvio que na relação capital-trabalho e numa sociedade igual a nossa, na qual a proteção social é residual e não uma proteção social de fato aos trabalhadores, num amplo campo que garanta condições de trabalho, quando se pensa numa relação salarial ou trabalhista, é óbvio que a condição do mercado é superior. Eu não estou discutindo o que é melhor ou pior, no caso. Estou apenas tentando mostrar que a relação nesse caso é muito assimétrica. Não estou dizendo também que deve deixar de ser assimétrica, mas em qualquer sociedade mais civilizada, inclusive via Organização Internacional do Trabalho, as relações dos estados que têm sistema de proteção social é um sistema de proteção social forte que permite que patrões e empregados possam negociar de uma forma muito mais precisa para discutir as questões pontuais que dizem sobre o dia a dia do trabalho. Mas para isso a proteção social tem um amplo leque para dar garantias aos trabalhadores. Isso no Brasil é extremamente frágil. Quando a CLT foi instituída, o Brasil era mais avançado do que vários países do mundo em alguns aspectos. Um exemplo são as férias, que não existiam na maioria dos países. Depois que isso mudou, os outros países passaram a ter férias maiores e tudo o mais e nós paramos no tempo, não avançamos.
Foi aprovada recentemente a terceirização de atividades-fim. Quais são as implicações desta proposta? No serviço público, a terceirização sem limite não poderia comprometer a qualidade dos serviços, uma vez que são exercidos por um público flutuante, sem estabilidade, sem vínculo duradouro com as instituições?
Revalino Antônio – Eu vou pegar o exemplo da universidade. Várias atividades aqui foram terceirizadas. Historicamente, e a literatura sobre a sociologia do trabalho mostra isso, todo processo de terceirização significa, antes de mais nada, um descompromisso com o objeto de trabalho. Não há um compromisso efetivo com o que está sendo feito. A terceirização é ótima para o mercado, mas para a sociedade, que é o consumidor final, ela é perversa, na medida em que a qualidade do serviço cai. E não há literatura nenhuma que mostre o contrário.
...todo processo de terceirização significa, antes de mais nada, um descompromisso com o objeto de trabalho - Revalino Antônio
Olympio José – Eu queria entender o porquê de haver tanta resistência com a terceirização. Hoje ela ocorre no mundo inteiro e, no Brasil, o setor público é justamente o setor que mais emprega terceirizados. Ao não querer discutir a lei que determina como funciona a terceirização, porque hoje não existe uma lei, estamos deixando de fora uma população enorme de trabalhadores no Brasil, empregados de empresas que terceirizam serviços, que estão sem nenhuma segurança na lei. Eu não entendo tanta resistência em discutir e aprovar uma lei. No caso do setor privado, existem empresas que contratam mão de obra terceirizada, outras não. O que o professor disse da qualidade do serviço, a empresa privada sente na hora porque o cliente some. Se o terceirizado está atendendo mal, ele vai perder o cliente. Eu queria entender esse bloqueio, porque hoje uma população enorme de trabalhadores está descoberta, não existe uma lei para eles.
Iêda Leal – Acredito que são situações em que precisamos compreender bem mais, inclusive a população. Sobre o serviço público terceirizado, estamos assistindo que está acontecendo tanto na saúde como na segurança em Goiás. Na hora que acontece alguma situação, como nos presídios, não se encontra quem é o responsável. Nós defendemos o serviço público e a entrada é pelo concurso, precisamos garantir isso. Agora, a regulamentação da terceirização precisa ser feita, porque existe uma exploração de mão de obra. Alguns governantes têm obsessão por terceirizar os serviços, pois não acreditam no serviço público. São pessoas que estão, definitivamente, no lugar errado. Nós precisamos defender o serviço público, porque uma universidade, uma escola, um hospital, onde as pessoas podem construir uma carreira, se dedicam e têm um desempenho para garantir que todo o trabalho será feito, é diferente. Agora, não se pode querer um serviço público sem ter as condições. A educação em Goiás, por exemplo, está há 15 anos sem concurso público. A luta para regularizar a vida das pessoas que prestam serviço para as empresas é legítima, mas precisamos proteger o serviço público. A população precisa entender que existe uma luta de proteção ao serviço público para garantir a entrada, a permanência e a formação durante o serviço para melhor atender o público. É isso que tem que ser feito. E não terceirizar porque alguém não faz o serviço corretamente. Isso significará que o terceirizado estará sendo vigiado para desempenhar o serviço. Não entendemos que o trabalho tenha que passar por essa situação, mas acredito que é preciso regulamentar, sim, o serviço para parar com a exploração. As pessoas não dão conta da regulamentação na iniciativa privada e acham que agora todo mundo tem que terceirizar o serviço. E nós vamos ficar perdidos. Precisamos recuperar o trabalho público no Brasil e fazer esse debate de forma plena.
Olympio José – No setor privado, entendemos que a terceirização é uma forma moderna de gestão empresarial. O que não concordamos é com a regulamentação que existe hoje, que proíbe a extensão à atividade-fim. A empresa só pode terceirizar portaria, limpeza, esse tipo de atividade. Com relação ao setor público, entendemos que o Brasil é muito grande, por isso nossa carga tributária é altíssima. O Estado tem que garantir qualidade na educação, saúde e segurança, mas pelo tamanho, acaba tendo que terceirizar para se modernizar e prestar serviço de qualidade. Em nossa visão é uma gestão moderna e que, para o setor privado brasileiro, não ter a segurança jurídica de poder utilizar esse serviço, como hoje, é um entrave e um custo muito grande para a produção brasileira.
Iêda Leal – Vejo a necessidade do diálogo, da conversa e do tratamento. Lógico que o Brasil é enorme e saúde, segurança e educação são fundamentais, mas têm certas coisas que não têm a menor condição de terceirizar. Não podemos terceirizar a coordenação de uma escola, a entrada dos professores. Precisamos aprofundar esse debate, mas não há o que discutir: terceirização na educação, por exemplo, não procede.
Revalino Antônio – Esse assunto suscita mais discussão ainda, sobretudo sobre essa questão do Estado e da carga tributária.
A possibilidade de aumentar a jornada de trabalho para até 12 horas diárias e com intervalos menores que uma hora de almoço, mesmo com o pagamento de horas extras, não vai autorizar uma exploração do trabalhador além de sua capacidade?
Revalino Antônio – Temos que pensar que o tempo de trabalho não diz respeito apenas ao ponto de vista linear das horas. Isso é a horizontalidade do tempo de trabalho. Há uma questão que é mais grave ainda, que é a intensificação, a verticalização do tempo de trabalho. No início a ideia da automação foi saudada como o fim do trabalho. Isso foi tolice, porque ela intensificou ainda mais o trabalho, aumentando seu ritmo. Até 15 anos atrás, quando discutíamos a questão de saúde do trabalho no campo da sociologia do trabalho, as principais questões eram Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e outras doenças ocupacionais. Hoje a questão central é a doença mental, justamente pela intensidade e o ritmo do trabalho. Essa discussão de ampliar a jornada de trabalho por si só já é preocupante, mas também o problema que paira acima disso que é a intensificação do trabalho. E isso não tem sido discutido.
Olympio José – Infelizmente as leis trabalhistas tratam todos por igual. Evidentemente que um trabalho de 12 horas não pode ser estendido para todo mundo de forma ininterrupta. Tem normas de segurança do trabalho. O que nós pregamos é que o acordo coletivo, feito entre patrão e empregado via sindicatos, possa flexibilizar e que alguns setores possam estender a jornada, outros não. Então não é uma coisa geral. A proposta do governo foi muito tímida, fala muito em contratos temporários de trabalho e flexibilização de férias. Não se pode tratar por igual porque não são todos iguais.
No setor privado entendemos que a terceirização é uma forma moderna de gestão empresarial - Olympio José
Iêda Leal – Eu acho que essa história de 12 horas é a volta à escravidão, portanto não vamos discutir isso. Não podemos discutir estender a carga horária dos trabalhadores numa mesa de discussão. Nós temos que reduzir para garantir que mais pessoas trabalhem. Com a redução da carga horária, nós vamos ter mais trabalhadores. É tão difícil pedir para alguém trabalhar mais, é como se estivéssemos pedindo para a pessoa morrer mais rápido. Tem que ser o contrário. É preciso entender que qualquer pessoa, tanto no serviço público como no privado, precisa ter rendimento. Ninguém vai render estendendo sua carga horária, pelo contrário. Nós queremos a redução da carga horária do trabalhador, queremos que a família possa se encontrar mais e queremos construir outro Brasil. Discutir é uma coisa, agora querer impor que as pessoas trabalhem mais, fiquem mais doentes, morram mais rápido, nós não concordamos. Escravidão já acabou há muito tempo!
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