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Terceirização rima com precarização

Em 27/04/17 14:09. Atualizada em 05/05/17 15:34.

Para especialistas, mudança vai impactar diretamente nas relações de trabalho

Texto: Angélica Queiroz | Ilustração: Freepik

Foi sancionada, no final do mês de março, a Lei da Terceirização (lei nº 13.429), que autoriza a terceirização irrestrita do trabalho no Brasil, o que inclui a chamada atividade-fim, essência de qualquer empresa. Mas o que isso significa? O que pode mudar na vida do trabalhador? O Jornal UFG conversou com pesquisadores do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho (Nest) da Faculdade de Ciências Sociais para saber o que dizem as pesquisas sobre o assunto e qual o futuro que se delineia para os próximos anos. Para eles, a terceirização está diretamente relacionada com a precarização do trabalho e significa a retirada de direitos históricos conquistados pelos trabalhadores brasileiros.

O processo de terceirização tem como principal característica o repasse de determinadas etapas do processo de produção ou de serviços a outras empresas que, é claro, visam lucro. Revalino Freitas, professor do Nest, afirma que a terceirização em si não é nenhuma novidade e já existiu em outros momentos em diversas sociedades, atingindo, historicamente, principalmente as populações mais vulneráveis do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens e migrantes. “Existe uma tendência, de tempos em tempos, do sistema retomar formas pretéritas de produção que julgávamos já ter superado”, explica.

A grande mudança com a sanção da lei é que antes só era permitido que fossem terceirizadas as atividade-meio da empresa, a partir da ideia de que uma empresa se concentraria apenas em sua atividade-fim e poderia descentralizar as outras atividades. “Agora a empresa pode terceirizar tudo. Isso quer dizer que podem existir empresas sem nenhum empregado”, ressalta Revalino. “A legislação trabalhista já era burlada pelas empresas de diversas formas, mas antes existia a possibilidade de as pessoas exigirem seus direitos na justiça do trabalho. Agora não”, completa a professora Tatiele Pereira de Souza, também do Nest.

Os pesquisadores ressaltam que experiências e pesquisas sobre a terceirização mostram inúmeros prejuízos ao trabalhador, como remuneração mais baixa, já que parte do dinheiro vai para a empresa intermediadora; perda de benefícios como plano de saúde, vale alimentação e transporte; rotatividade; falta de acesso a equipamentos de proteção individual e, consequentemente, mais acidentes graves de trabalho. Além disso, o trabalhador terceirizado normalmente não se sente parte da empresa, não cria vínculo e não “veste a camisa”. Isso impacta na qualidade do trabalho e, consequentemente, do produto oferecido. Assim, o consumidor vai se distanciando cada vez mais daquilo que é a própria empresa e perde a referência com o produto.

 

terceirização


Uberização do trabalho

Revalino explica que o capital atingiu, nos últimos anos, uma nova fase e hoje supera o Estado como principal ator. Para ele estamos assistindo a um processo de erosão dos direitos sociais e trabalhistas, o que muitos pesquisadores têm chamado de uberização do trabalho, em referência ao modelo de organização e remuneração adotado pela Uber, que distancia-se da regulação do assalariamento formal, acompanhado geralmente pela garantia dos direitos sociais e trabalhistas. “Esse modelo é uma desregulação de tudo e tira do Estado a responsabilidade de intervir, precarizando as relações de trabalho. Os principais prejudicados são os próprios trabalhadores, que perdem direitos e ainda acham que estão se dando bem porque é essa a ideia que as empresas vendem”.

O professor afirma que a mudança atende aos interesses dos empresários e acaba com a insegurança jurídica deles, ao mesmo tempo em que transfere essa insegurança aos trabalhadores, que perdem o direito de reclamar vínculos trabalhistas, dando total liberdade aos empresários. “A insegurança jurídica agora está completamente do lado dos trabalhadores”, elucida.

Tatiele explica que, com o aval da lei, agora muitas empresas vão poder terceirizar todo o serviço, com subcontratos e a “pejotização” do trabalhador, que é tratado como pessoa jurídica e, assim, não tem direitos trabalhistas. A professora exemplifica o processo de subcontratação com a pesquisa de doutorado de Jaqueline Vilasboas, realizada sobre o polo de confecções de Jaraguá. A pesquisa revela que, em muitos casos, todo o processo de produção é subcontratado, sem custo trabalhista. “O trabalhador tem certo vínculo com as empresas, prazos e modelos a cumprir, mas sem nenhuma relação contratual e nenhum direito. Isso pode significar aumento da produção, mas em que condições e a partir de quais consequências para os trabalhadores?”.


Fragilidade brasileira

Os pesquisadores chamam ainda a atenção para a fragilidade do mercado e do sistema de proteção social no país. “No Brasil o trabalho não é um direito, apesar do que diz a Constituição. A cultura é do trabalho enquanto obrigação. Priorizamos o trabalho intelectual e não valorizamos os outros. Nessa condição, a ideia de terceirização é aceita de maneira branda porque aqui o trabalho sempre foi fragilizado, desmerecido e desrespeitado”, lamenta Revalino. “Além disso, num momento de forte desemprego como o que estamos vivendo, as pessoas são obrigadas a fazer concessões mil por conta da concorrência pela vaga”, completa.

Tatiele pesquisou, em seu trabalho de mestrado, a construção de identidade e organização do trabalho de servidoras terceirizadas da limpeza em três instituições. A conclusão é que essa flexibilização do trabalho acarreta em diversas perdas para esses trabalhadores, que, como estão vinculados a mais de uma empresa, não sabem sequer de quem cobrar direitos. “A relação entre trabalhador e capital deixa de ser direta”, resume. “A gente já falhou em permitir a terceirização de atividade-meio, como se uma função fosse mais importante que a outra, quando todas são essenciais para o bom funcionamento de uma empresa”, observa.


Reforma da Previdência tem tudo a ver

Tatiele ressalta ainda que o conjunto de reformas propostas pelo governo, como a trabalhista e a da Previdência, estão relacionadas com a aprovação da Lei da Terceirização. Ela explica que uma das consequências da terceirização é a rotatividade dos trabalhadores. “Sendo assim, eles vão ficar períodos sem contribuir com a Previdência. Junte isso com o aumento do tempo de contribuição proposto e a possibilidade de trabalhadores terceirizados terem acesso a aposentadoria integral será mínima”. Segundo ela, essas pessoas que já estão em condições de trabalho altamente precarizadas vão ficar em uma situação ainda mais vulnerável. “Esse conjunto de reformas impacta em toda a possibilidade de construção de uma sociedade pautada na ideia de um estado de bem-estar social, que garanta direitos sociais e trabalhistas, o direito à cidadania do indivíduo”, afirma Tatiele. “Ou seja, é um sistema perverso para o trabalhador em todos os sentidos”, conclui Revalino.

Categorias: sociedade edição 87