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Universidade Federal de Goiás
Bruno Hendler novo

PANORAMA

Em 08/04/19 08:14. Atualizada em 08/04/19 08:19.

Política externa brasileira erra ao negligenciar a Ásia em prol do alinhamento automático com os EUA

Bruno Hendler*

Em meio aos atritos entre Congresso e Palácio do Planalto, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, afirmou que o "governo Bolsonaro é um deserto de ideias". No tocante à política externa, um deserto de ideias seria muito menos nocivo aos interesses do país do que o mar de ideias estapafúrdias que inunda a atual liderança do Itamaraty e é materializado pelos discursos do chanceler Ernesto Araújo.

Enquanto viaja aos Estados Unidos, Chile e Israel em função de uma suposta afinidade ideológica, Bolsonaro relega a China e a Ásia ao segundo plano. Até mesmo o governo Temer, que buscou uma aproximação com os EUA e com a OCDE, reconheceu a crescente relevância dessa parte do mundo e enviou seu então chanceler, Aloysio Nunes, a um périplo por sete países asiáticos (Cingapura, Tailândia, Indonésia, Vietnã, China, Japão e Coreia do Sul) em maio de 2018. A atual negligência planejada pode se tornar danosa aos interesses do Brasil no exterior e reflete o mar de conceitos antiquados e retrógrados que ora somos apresentados pelo atual chanceler.

Duas considerações merecem destaque, uma sobre interesses pragmáticos e outra sobre valores e princípios na política externa. No tocante aos interesses, o Brasil é grande e relevante demais para buscar o alinhamento automático com qualquer outra nação. Ainda que o grosso da pauta exportadora seja pouco variado e calcado em produtos primários (sete commodities compõem 50% do valor total), as relações internacionais do Brasil são muito mais complexas do que no século XIX e envolvem uma série de processos que deveriam nos aproximar do Sul Global e, principalmente, da América do Sul, para buscar mercados consumidores, estabilidade regional e aliados na reforma das instituições internacionais. Naturalmente, isso não implica dar as costas aos países desenvolvidos, de onde se pode trazer tecnologia de ponta e projetos de cooperação em áreas sociais, de educação, de saúde, entre outras. Hoje a China representa os dois lados: exerce o papel de ator do Sul Global cujo mercado é importantíssimo para o Brasil e que faz um revisionismo soft da ordem mundial centrada no Ocidente desenvolvido; e é um país do Norte Global, no sentido de que pode se tornar um grande parceiro em setores estratégicos de economia civil e militar.

Em seu discurso de posse, Ernesto Araújo afirmou que a política externa brasileira fala "para agradar os administradores da ordem global". Pelo contrário, do Barão do Rio Branco a Lula, passando por Vargas, Jânio, Jango, Médici e Geisel, o Brasil tem um histórico notável de posicionar-se a favor da resolução pacífica de controvérsias, de questionar o uso da força por países do Norte, de buscar a reforma do Conselho de Segurança da ONU e de barganhar com as grandes potências em troca de ganhos materiais. A postura "ativa e altiva" da gestão Lula-Amorim esbarrou em limitações e teve seus ganhos questionados? Sem dúvida. Mas a construção do espaço sul-americano e da esfera de cooperação no Atlântico Sul, bem como o protagonismo entre países emergentes, como o BRICS e o IBAS, contradizem a afirmação do atual chanceler e são legados que deveriam ser mantidos como interesses de Estado, independente de partidos políticos.

Sobre os princípios, nada mais apropriado do que citar um dos maiores compositores populares do Brasil, Belchior, para criticar as incoerências no pensamento do chanceler Araújo, do presidente Bolsonaro e de outros olavistas não apenas sobre a posição do Brasil no cenário internacional, mas sobre a realidade em geral. Esse pessoal está usando uma "velha roupa colorida que não [lhes] serve mais" e ama um passado que não existe, sem perceber que "o novo sempre vem".

O globalismo e o marxismo cultural são os novos moinhos de vento da empreitada quixotesca do chanceler. O Regime Militar travou sua própria batalha quixotesca contra o comunismo de forma pragmática, reprimindo levantes domésticos com inúmeras violações de direitos humanos e se aproximando de países do bloco socialista em prol de ganhos materiais de comércio, de aquisição de tecnologia e do aumento do poder de barganha em relação aos EUA. Já a proposta do atual chanceler carece de qualquer proposição prática e se limita à valorização de valores judaico-cristãos ocidentais mesclada com uma releitura romântica da história do Brasil. É claro que os símbolos nacionais devem ser enaltecidos, mas com uma visão crítica de que foram construídos às custas de sofrimento e exclusão, e não apenas com "amor, coragem e fé".

Um dos grandes méritos do Barão do Rio Branco foi perceber a transição hegemônica Inglaterra-EUA e aproximar-se da potência em ascensão em busca de apoio nas arbitragens de fronteiras. Getúlio Vargas fez algo parecido, primeiro com a barganha da diplomacia pendular entre EUA e Alemanha nazista e depois se aliando ao esforço de guerra dos norte-americanos em troca de ganhos econômicos e estratégicos. Na atual transição de poder e riqueza dos EUA para a China, afastar-se desta em nome da proteção dos valores ocidentais é um erro tão grosseiro quanto o alinhamento com os norte-americanos sem contrapartidas. A relação do Brasil com os EUA é antiga e tem um espectro já consolidado de agendas de cooperação e de conflito em que se podem negociar concessões e exigências. Já com a China, ainda estamos na fase do mapeamento dos pontos de convergência e divergência, e fechar as portas para as possibilidades oferecidas pelo gigante asiático (e também para os riscos de negligenciá-las) significaria perder o bonde da história.

* Bruno Hendler é professor substituto do curso de Relações Internacionais da UFG e doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. O artigo é baseado em um trecho da entrevista concedida pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos. A entrevista completa pode ser acessada aqui.

Fonte: Secom/UFG

Categorias: colunistas