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Universidade Federal de Goiás
Panorama

PANORAMA

Em 15/05/20 13:00. Atualizada em 18/05/20 13:18.

Metáforas de guerra para discutir pandemia ajudam Governo Federal a justificar substituição de quadros técnicos

 

Guerra ao COVID-19: para que tratar uma crise sanitária como conflito?

* Matheus Hoffmann Pfrimer e Ricardo Barbosa, Jr.

Neste momento, são mais de 13.000 mortes por COVID-19 no Brasil. Com perto de 900 mortes reportadas em um só dia dessa semana. Mesmo que os números sejam subnotificados fica evidente que a quantidade de mortes cresce de forma desenfreada e sem previsão de contenção. Isso ocorre porque a política continua a se sobrepor às questões de saúde, sociais e, até mesmo, sanitárias. Nos últimos dois meses, o Governo Federal tem utilizado metáforas de guerra em sua comunicação sobre a pandemia de COVID-19, tratando corriqueiramente o vírus como um ‘inimigo invisível’. Por que o Governo Federal insiste em enquadrar a pandemia e sua resposta a ela por meio de metáforas de guerra? E o que significa tratar o vírus do COVID-19 como um inimigo?

Numa intervenção recente publicada na Dialogues in Human Geography (Diálogos em Geografia Humana), refletimos sobre tais questões. No artigo intitulado ‘A guerra do Brasil a COVID-19: Crise, não conflito—Médicos, não generais’ chamamos atenção para como os termos militaristas têm sido empregados para comunicar a resposta brasileira ao vírus e alertamos sobre as consequências negativas de retratar a crise de saúde pública que vivemos como conflito. Nosso argumento possui duas dimensões explicativas que se complementam: a securitária e a espacial.

O enquadramento político é a chave para moldar a percepção em torno de fenômenos sociais, tais como a pandemia. O emprego de estratégias retóricas e seus discursos impactam na forma a partir de qual se percebe a realidade social. Neste sentido, as metáforas de guerra não são uma coincidência nem utilizadas por acaso. Termos militares expressam sensações de urgência, prioridade e sigilo. Por isso, assuntos de defesa não são sujeitos ao debate público ou à opinião de todos. Sobre assuntos de guerra somente opinam aqueles que são dotados de autoridade militar.

Ao enquadrar o vírus como ‘inimigo’, a pandemia passa a ser percebida como um ‘conflito’ não como uma ‘crise’, transformando uma questão de saúde pública em um assunto de defesa. Assim, a resposta do Governo Federal à pandemia da COVID-19 é pensada a partir da racionalidade militar. Como consequência, autoridades sanitaristas são subjugadas por autoridades militares. Em outras palavras, o discurso de segurança leva à prática securitária.

O enquadramento de guerra tem permitido, inclusive, que o Governo Federal justifique a substituição dos quadros técnicos da saúde por militares. Nesta semana foi noticiado que desde que Nelson Teich assumiu o Ministério da Saúde, há menos de um mês, no mínimo sete militares foram nomeados para postos-chave desse ministério antes ocupados por civis.

Se o uso de metáforas de guerra é intencional, o que o motiva? O Governo Federal busca projetar uma sensação de ‘paz’ e ‘estabilidade’ interna, para que se possa ‘voltar ao normal’, de modo a reabrir principalmente a economia. Por isso, o tratamento do vírus como ‘inimigo’. Acontece que, se inicialmente o inimigo era ‘invisível’, agora ele passa a ser alinhado com ‘inimigos’ externos específicos. Isso porque, para tirar o foco das falhas do governo em oferecer respostas eficazes à pandemia e, ainda, projetar estabilidade interna, é necessário que haja turbulência ‘lá fora’, no exterior.

A ideia de proximidade e distanciamento ganha relevância por meio de expressões geográficas que manifestam e transformam o espaço em sentimento de familiaridade ou estranhamento. Por esse motivo, os termos geográficos são importantes para se compreender a construção de narrativas espacializadas do poder, ou o que se chama de ‘geografias imaginativas’.

Dentre os principais episódios de construção deste cenário supostamente bélico, encontra-se o tão divulgado ‘resgate’ dos brasileiros da província de Wuhan, na China. Tanto a imprensa quanto as mídias oficiais do governo divulgaram o evento em tom nacionalista, construindo a ideia de que o Brasil não deixou os seus cidadãos em um lugar apresentado como ‘distante’ e ‘perigoso’ e os trouxe para próximos de si. Se antes a China, o maior parceiro comercial do Brasil, foi tacitamente enquadrado como ‘inimigo’, este alinhamento ficou explícito após a COVID-19 ser retratada como o ‘vírus chinês’ em tweet do filho do Presidente. Se soma a isso, o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela, que se tornou uma prioridade, sem que existisse um motivo de saúde pública para tal. Essas geografias imaginativas procuram construir uma percepção de que a ameaça associada à pandemia está fora do território nacional, mediante a associação com inimigos ideologicamente determinados como a China e Venezuela. 

Ao nomear inimigos externos, o ‘inimigo’ que inicialmente era ‘invisível’ ganha referência. Isso permite à retórica militarista do governo construir o entendimento de que a ameaça da COVID-19 é externa, assim suscitando uma falsa sensação de estabilidade e segurança interna. Esta estratégia retórica-espacial junta-se aos esforços do Presidente de minimizar a pandemia no âmbito interno, como em discursos nos quais caracterizou a COVID-19 como uma ‘gripezinha’. Se agregam a isso as suas insistentes iniciativas de desqualificar as medidas de distanciamento social dos governadores e prefeitos.

Texto na íntegra disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2043820620924880

 

Referências:

Pfrimer, M.H., & Barbosa Jr, R. (2020). Brazil’s war on COVID-19: Crisis, not conflict—Doctors, not generals. Dialogues in Human Geography. https://doi.org/10.1177/2043820620924880

 

* Matheus Hoffmann Pfrimer é doutor em Geografia Política pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Relações Internacionais na Universidade Federal de Goiás (UFG). matheuspfrimer@ufg.br

* Ricardo Barbosa, Jr. é mestrando em Geografia na University of Calgary, Canadá. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás e Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. ricardo.barbosajr@ucalgary.ca

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos, de inteira responsabilidade de seus autores.

 

Fonte: Secom

Categorias: colunistas