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Universidade Federal de Goiás
José Ilírio sem fundo

“A discussão não é como, mas quem deve pagar mais e menos impostos”

Em 08/09/20 14:11. Atualizada em 08/09/20 14:36.

Professor da UFG fala sobre problema tributário no Brasil e participação em comissão para subsidiar discussões da reforma no Senado

Kharen Stecca

O Sistema Tributário brasileiro é oneroso para os mais pobres, vantajoso para os mais ricos e complexo para as empresas. Diante disso, discute-se há mais de 20 anos a necessidade de promoção de uma reforma tributária no país e mais uma vez o governo traz a tona sua necessidade. Para estudar um modelo ideal para essa reforma o Senador Luiz do Carmo (MDB) criou um grupo formado por especialistas de diversas áreas, convocados exclusivamente para estudar a fundo o formato das alterações na legislação tributária até agora e qual o impacto delas para o país. Um dos membros convidados é o professor da Faculdade de Administração, Ciências Econômicas e Contábeis da Universidade Federal de Goiás, Ilírio José Rech. Ele é doutor em Contabilidade e Controladoria. Ele fala ao Jornal UFG sobre os problemas tributários no país e como será o trabalho da comissão.

José Ilírio sem fundo

Como resumir o problema tributário no Brasil hoje?


Ilírio José Rech - O Brasil possui um sistema tributário altamente regressivo, injusto e complexo entre tantos outros predicados nada elogiosos. Regressivo por que tem por base tributar o consumo indiscriminadamente e não a renda e o patrimônio. Os mais pobres pagam mais tributos, proporcionalmente sobre sua renda, do que os ricos. Enquanto os pobres gastam seus ganhos (salário, honorários, receitas de pequenos serviços e outros tipos de ganhos da classe baixa) com comida, roupa, transporte, energia, remédios, que tem elevadas taxas de tributação, os mais ricos compram viagens, barcos, aviões, imóveis, planos de saúde e escolas etc. etc., cuja tributação é, proporcionalmente, muito menor de que aquela incidente sobre os itens de consumo básicos.
Com isso, além de ser regressivo torna-se injusto por exigir daqueles que possuem menor capacidade econômica (a base da pirâmide social) um maior esforço contributivo aumentando as desigualdades sociais e a concentração de riqueza. Por fim, complexo por existir um emaranhado de normas que muitas vezes nem o fisco, nem as empresas sabem o valor do imposto devido ou qual obrigação acessória a ser cumprida, gerando um volume astronômico de contencioso tributário. Hoje estima-se que as empresas brasileiras gastam em torno de 1.800 horas de serviços por ano com questões tributárias, enquanto a média mundial estimada pela OCDE é de 160,7 horas. A complexidade prejudica, principalmente, a pequena e média empresa que não possui condições de contratar especialistas para encontrar formas de “planejar os tributos” ou contestar os lançamentos realizados pelo fisco, beneficiando as grandes empresas e multinacionais.

Como acredita que será o trabalho da comissão? É possível pensar hoje numa reforma que permita ao Brasil a resolução de problemas econômicos e sociais?

Ilírio José Rech - A comissão foi criada pelo Senador Luiz do Carmo (MDB) que teve a iniciativa de convidar pessoas e entidades preocupadas com a discussão tributária para debater e apresentar sugestões de melhorias nas propostas atualmente em analise no congresso. Dessa forma, o trabalho da comissão é auxiliar o Senador em busca de uma reforma mais justa e que contemple os anseios da população brasileira. Ressalte-se que a comissão tem apenas vínculo moral com o Senador sem poder para alterar suas convicções, mas a partir do diálogo e do convencimento é possível avançar com as propostas em discussão. As expectativas são de um trabalho árduo e construtivo com capacidade para melhorar a reforma. No entanto, destaco a falta de dados sólidos e consolidados sobre o sistema tributário brasileiro que podem embasar as projeções e análises da comissão. Vamos esperar cenas dos próximos capítulos.
Com relação a se pensar uma reforma com poder de resolução dos problemas econômicos e sociais, creio que a atual conjuntura não favoreça uma reforma com vistas a justiça social que beneficia as camadas mais pobres da população brasileira. A distribuição das forças políticas no congresso está muito concentrada na mão de representantes de grupos econômicos e setores especulativos e pouco na representação da classe trabalhadora e da sociedade organizada. É notória a força da bancada ruralista e evangélica e com isso hoje o congresso tem menor preocupação com uma reforma que beneficie as classes menos favorecidas. Essa distribuição de forças se reflete nas propostas em discussão no congresso, haja vista a falta de discussão da tributação de grandes fortunas, distribuição de dividendos e especulação imobiliária e financeira. Creio que a resolução dos problemas econômicos e sociais brasileiros passam por maior distribuição de renda e riqueza. Sem a discussão de mudanças na base da tributação a reforma perde seu poder de diminuir as injustiças sociais e a solução de problemas que afetam a maioria da população brasileira.

O senhor disse em matéria publicada no Jornal Opção que este não é o melhor momento para a reforma tributária devido a pandemia. Por que? Qual o cenário ideal pós-pandemia para pensar nisso?


Ilírio José Rech - Não existe um cenário ideal para a implementação de grandes mudanças/decisões, mas existem cenários onde é temerário implementá-las. Os tempos de grandes abundancias ou escassez não são bons para grandes decisões, pois podem nos levar pela euforia ou pelo medo a decisões equivocadas, baseados em imagens distorcidas da realidade. A pandemia, além de sua letalidade e fatalidade, provoca a sensação (para muitos reais) de que não há ou haverá recursos suficientes para todos. Em um momento em que a sociedade vê minguando seus recursos e oportunidades e torna-se propício para todo tipo de desonestidade e que cada pessoa ou grupo procure “garantir o seu” em detrimento da maioria. Essa sensação pode desequilibrar ainda mais as forças políticas que estão na discussão da reforma tributária. Esse momento pode enviesar as decisões pela fragilidade emocional e facilidade de comover a sociedade para a necessidade de reduzir/aumentar tributos que em outras circunstâncias não seriam aprovados. Além disso, o Brasil está discutindo mudança nas questões tributárias a mais de 20 anos sem um consenso nas mudanças necessárias/prioritárias. Aprovar uma reforma que pode mudar significativamente a distribuição de riquezas no Brasil em um momento de pandemia/fragilidade pode levar a deformações ainda piores e mais danosas a justiça social. Não estou dizendo com isso que ela não deve ser discutida, mas decidir e implementar agora é muito temerário.

A proposta do governo, segundo o senhor disse na matéria, é um plano de intenção e não uma reforma. Por quê?


Ilírio José Rech - O Governo apresentou um projeto de lei que prevê mudanças na forma de arrecadação de dois tributos (Pis e Cofins) e prometeu enviar a posterior, não se sabe quando e nem a mando de quem, um projeto com as demais “fases”. Apesar de as mudanças propostas nos dois tributos serem significativas, em que pese a redução das obrigações acessórias e formas de cálculo, não se pode chamar isso de reforma tributária. Hoje não chamaria nem de um plano de intenção, e, sim uma forma de simplificar o tratamento de dois tributos. Se a ideia do governo é “fatiar” a reforma, a pergunta é por que não começar com as mudanças que afetem a outra ponta da pirâmide e vez de começar com tributos que afetam significativamente a base da pirâmide. Por que não discutir imposto sobre grandes fortunas, já previsto na constituição, sobre os dividendos que afetaria poucas pessoas e alcançaria maior justiça fiscal e social. Parece-me que o governo quer “cansar” a sociedade com discussões que só mudam como o imposto será pago e, não por quem deve pagar mais ou menos impostos. Alias, o atual grupo politico que domina o governo não tem um projeto econômico social para o Estado brasileiro e para a nação brasileira. A reforma tributária passa pela discussão desse projeto de nação e de Estado. Eu entendo que uma reforma tributária passa pela definição de como o Brasil pretende se posicionar diante do cenário econômico. Afinal, queremos ser um país produtor de commodities ou promover a indústria da transformação? Queremos ser um país com estímulo ao desenvolvimento de novas tecnologias, pesquisas e inovação ou continuar sendo um país de mão obra barata e precária? Essas respostas permeiam os objetivos de uma reforma tributária e quem deve produzi-las é o governo em conjunto com o congresso nacional e a sociedade brasileira.


Qual sua opinião sobre benefícios fiscais e sobre a forma como eles são utilizados hoje no Brasil?


Ilírio José Rech - Os benefícios fiscais são uma forma de promover ajustes para melhorar a distribuição da riqueza, ou no caso dos incentivos para estimular investimentos ou comportamentos em determinada região ou população. Mas devem, em sua essência, ser pontuais quanto ao objetivo e temporários quanto a sua duração para dar maior poder de beneficiar quem de fato tem necessidade, ou estimular investimentos necessários. No entanto, na atual conjuntura brasileira, se tornaram alvo de lobbies de grandes grupos econômicos que não promovem a distribuição da riqueza e não tem necessidade de incentivos. Basta verificar a quantidade de renúncias fiscais que as três esferas de governo têm praticado nos últimos anos. Isso só tem provocado mais déficit fiscal, sem mudar a quantidade de empregos ou aumento de produção, como alegado nos vários decretos para aprovar as renúncias fiscais e conceder os benefícios. Além disso, as várias edições dos REFIS, como forma de benefícios fiscais, só fizeram criar uma cultura de que é melhor ficar devendo os tributos e esperar um “perdão” ou redução das dívidas tributárias, o que cria uma cultura perniciosa para o empresário responsável pelo recolhimento tributário.
Na minha opinião os benefícios devem ser direcionados a população necessitada. Para isso é imprescindível que se pense formas para que os tributos pagos de modo injusto pelos mais pobres, como destaquei no inicio da entrevista, sejam imediatamente devolvidos aos mesmos, seja via programas sociais ou o próprio crédito em conta. O incremento dos programas sociais, bolsas de estudos, incentivos a pesquisa e inovação são exemplos de incentivos que deram certo nos tempos recentes e que a exemplo de muitos países são indispensáveis para fazer um Brasil mais justo e de igualdade de oportunidades.


O Brasil pode reviver a CPMF? Como vê as propostas de retomada dessa cobrança?


Ilírio José Rech - A CPMF talvez fosse um tributo menos injusto em relação às classes menos favorecidas, mas tem como efeito de menor estímulo a circulação do dinheiro e, com isso, seus efeitos nefastos na economia. Nesse momento não vejo vontade política em retornar a discussão sobre esse imposto.
Sobre o debate da reforma tributária, gostaria de dizer mais alguma coisa, professor?
O Brasil está passando da hora de usar o aparato tecnológico para melhorar a questão da arrecadação tributária. As estimativas atuais é de que em torno de 25% de o que deveria ser arrecadado ser desviado por sonegação tributária ou ineficiência nas cobranças dos débitos, sem contar com o contencioso tributário na casa dos R$ 4 trilhões. Com tanta tecnologia, supercomputadores, inteligência artificial e capacidade criativa do brasileiro é possível que a cobrança de impostos seja menos burocrática e mais eficiente. É necessário encontrar formas para a automatização da cobrança dos impostos evitando a evasão e a sonegação tributária e aumentar a transparência, tanto pelo lado do fisco como do lado de quem recolhe os tributos.
É importante destacar que a maior parte da carga tributária não é suportada pelas empresas e empresários como alguns pensam ou querem nos fazer pensar. A carga tributária nos moldes atuais é suportada pelo consumidor. A grande discussão que deve ser travada na reforma tributária é de que tipo de consumidor deve arcar com maior peso no seu consumo e quem deverá suportar o menor peso. Para mim não há dúvidas que os beneficiados devem ser as pessoas das classes menos favorecidas, mas isso não está claro para a sociedade brasileira e nas propostas de reformas em pauta. Essa discussão é indispensável para uma reforma que promova o desenvolvimento econômico, distribuição da riqueza e justiça social.
Além disso, é necessário destacar a falta de acesso às bases de dados do sistema tributário brasileiro. Com isso a capacidade de pesquisa sobre a área fica significativamente prejudicada além de afetar a transparência para toda a sociedade brasileira.

 

Fonte: Secom UFG

Categorias: Entrevista Humanidades FACE