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Universidade Federal de Goiás
Violência

Maria sofreu agressões, mas não foi a única

Em 28/07/17 13:57.

Pesquisa conclui que marcas são permanentes e comportamento violento do agressor pode ser transmitido às gerações futuras

Texto: Vinícius Paiva

Ilustração: Ingrid Costa

Violência

Era maio de 1983. Em fortaleza, terra do sol. Uma família com pai, mãe e três filhas. Um tiro. Maria da Penha Maia Fernandes acabava de sofrer uma tentativa de assassinato pelo próprio marido, Marco Viveros. A vizinhança estava assustada, especulava-se um assalto. Enquanto isso, Marco validava o burburinho e performava na sala com um pijama rasgado e uma corda no pescoço, como se também fosse uma vítima. As filhas que também eram agredidas, assustadas. Forte, Maria sobreviveu, mas ficou presa para sempre numa cadeira de rodas. Meses após a recuperação, ela quase foi eletrocutada pelo mesmo homem, mas os gritos de desespero alcançaram os ouvidos da babá de suas filhas. O marido? Foi condenado após Maria lutar na justiça. 23 anos depois, em 2006, ela foi homenageada nomeando a Lei 11.340, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

De acordo com o Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres, o número de vítimas do sexo feminino no Brasil aumentou de 3.937 em 2003, para 4.762 em 2013, o que representa 13 homicídios diários. No ranking, Goiânia é a quinta capital mais violenta contra as mulheres no país, com 68 homicídios para 100 mil mulheres. Além disso, a Central de Atendimento à Mulher, pelo Disque 180, contabilizou quase 53 mil denunciantes de violência, sendo que desse total, 77% afirmaram ser vítimas semanais de agressão e em 80% dos casos, a vítima tinha contato afetivo com o agressor.

Bater na mulher machuca a família inteira

O Núcleo de Estudos Qualitativos em Saúde e Enfermagem com ênfase na Vulnerabilidade Social, da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás (GO), entrevistou mulheres que passaram ou estão sofrendo algum tipo de agressão por seus parceiros íntimos. As participantes, que tem em média 33 anos de idade, no geral são de classe baixa, tiveram acesso à educação de forma limitada e todas possuem filhos. O estudo verificou a intergeracionalidade do comportamento violento, ou seja, que essas experiências negativas tendem a ser transmitidas de geração para geração, o que compromete todo o cenário familiar.

Violência

Após uma análise criteriosa, a pesquisadora Paula Pereira agrupou os resultados em categorias. O contexto familiar na infância das mulheres que sofreram violência foi a primeira. Nela, algumas entrevistadas expuseram relatos de abandono por parte da mãe ou do pai, vivências de abusos físicos e sexuais e o uso de bebidas alcoólicas por parte dos cuidadores. “Porque a gente passava, ele [padrasto] estava se masturbando na cama... Quando a gente ia se banhar, ele ficava olhando.” Como o ambiente que essas mulheres vivenciaram durante sua infância e adolescência era violento, o desenvolvimento emocional e psíquico de cada uma foi comprometido, além de que seus cuidadores eram modelos inadequados de relação, levando-as a aprenderem comportamentos de submissão e aceitação da violência.

 

Além disso, a intergeracionalidade do comportamento violento também foi analisada, sendo dividida em duas subcategorias: “a violência por parceiros íntimos – a perduração da violência contra a mulher” e “os filhos diante da violência - a manutenção da intergeracionalidade”. Durante a investigação, as entrevistadas narraram suas histórias de afetividades e perceberem que seus relacionamentos se assemelhavam às de seus cuidadores. “Parece que estava repetindo a mesma coisa que acontecia com a minha mãe”. Segundo a pesquisadora, a maioria das participantes inicializou suas relações afetivas prematuramente e sem apoio familiar. “Saí de casa com 15 anos. Foi para casar. De tanto meu pai ser assim [violento], eu me envolvi com meu marido e fiquei com ele”, desabafa outra mulher.

Paula ainda observa que ao estarem inseridos dentro de um contexto de violência e presenciarem as agressões, os filhos estão demonstrando comportamentos agressivos, tanto por meios de hostilidades físicas quanto pela ideação de planos futuros de vingança. Também é notório que os filhos já exteriorizam modificações emocionais vinculadas à violência experimentada. Eles demonstram comportamentos agressivos diante do modelo parental, ou seja, reproduzem o que vivenciam em sua relação familiar, mantendo a violência como algo comum é banal dentro da família. Uma das mulheres traz essa angústia em seu depoimento: “Reflete neles, porque o M [filho] fala que, quando ele crescer, ele vai comprar uma arma e matar meu ex-marido. O outro é muito nervoso. Ele avança na minha mãe, responde... Muito nervoso”.

Ser a força de quem  sofreu 

“Não existe mulher que gosta de apanhar. Existe mulher humilhada demais para denunciar, machucada demais para reagir, com medo demais para acusar e pobre demais para ir embora”. A frase que circula na internet traduz os sentimentos daquelas que estão recobertas de impotência, traumas e falta de apoio das relações afetivas da família, das relações de amizade, e do Estado. Mas a pesquisadora da UFG, Érika Borges, em seu estudo sobre mulheres que vivenciaram situação de violência afirma que esse tipo de violência é estrutural e deve-se à forma como as relações sociais e culturais, instituições, leis e normas são organizadas. “Apesar da possibilidade de romper com os agressores nos primeiros indícios, muitas não o fazem devido à complexidade do problema e ao modo como foram socializadas/educadas para verem o mundo sexista, que prega ódio e sujeição das mulheres como algo natural”, afirma.

Cristina, que sofreu situação de violência em 1986, hoje traz consigo sequelas de queimaduras que também a deixaram com retração da pele que desarticula no pescoço, por conta da agressão cometida pelo ex-namorado. Para ela, a ajuda afetiva da sua família e da equipe médica foram marcos imprescindíveis para a recuperação de suas queimaduras. “Eles vieram para Goiânia, ficaram comigo. Eu tive o suporte do eu tô aqui, você vai ficar bem. Isso acaba servindo de incentivo, eu tenho que ser forte, eu tenho que superar. É um estímulo, não uma obrigação, mas ele funciona, uma terapia do amor, eu tô aqui, eu te amo e te quero bem”.

Violência

Sobre(viver)

Dar um significado novo à vida. Virar a página. Seguir. Recomeçar. As histórias de Maria da Penha e Cristina destoam das demais. Hoje, sobreviventes, essas mulheres são nomeadas, pois contaram sobre seus episódios de violência, seja com a própria voz ou com a presença física de seus corpos. Referências no movimento de mulheres em todo o país, essas mulheres lutam por essas e outras Marias, que tiveram os seus nomes e identidades protegidas nesta matéria porque ainda pontuam ou reescrevem suas vidas conforme suas angustias, medos, desejos e possibilidades. “As dificuldades na recuperação, as sequelas físicas, emocionais, sociais, porque você passa a ser uma pessoa portadora de cicatrizes. Tudo isso dá muita dificuldade em romper essas barreiras, e se olhar no espelho e se aceitar, não são coisas muito simples, mas são coisas possíveis”, afirma Cristina.

 

Fonte: Ascom UFG

Categorias: sociedade Edição 89